Claro que a nossa imprensa, com a transbordante qualidade técnica que possui, se fixou essencialmente na questão do aborto ao analisar as o primeiro documento produzido pelo Papa Francisco.
É óbvio que ninguém esperava que o Papa fosse transigir com o aborto, embora tenha reduzido e muito o tom de histeria com que se trata o assunto.
Mas, com isso, deixou-se praticamente de lado o essencial da exortação Evangelii Gaudium (A alegria do Evangelho) feita por ele.
Onde, ao falar de uma “nova tirania”, a dos mercados, disse algo que não podia ser mais claro: “esta economia mata”.
Pouca gente analisou o conteúdo essencial da exortação papal.
A coleguinha Cynara Menezes, na CartaCapital, é uma das poucas a fazê-lo.
“Os alvos de Francisco são não só os ricos como também os apóstolos do livre mercado: “Alguns defendem (…) que todo o crescimento econômico, favorecido pelo livre mercado, consegue por si mesmo produzir maior equidade e inclusão social no mundo. Esta opinião, que nunca foi confirmada pelos fatos, exprime uma confiança vaga e ingênua na bondade daqueles que detêm o poder econômico e nos mecanismos sacralizados do sistema econômico reinante. Entretanto, os excluídos continuam a esperar.”
Mas, alertado pelo meu velho e querido amigo de lutas e sonhos, o Luiz Carlos Santos – filho e imagem replicada do inesquecível Alberto, rica figura – vou além.
Francisco produziu – além da crítica ao pensamento neoliberal – também uma manifestação veemente contra a ordem econômica neocolonial, que é a consequência geopolítica daquele pensamento.
Ele não poderia ser mais claro do que foi no parágrafo 190 de seu documento:
190. Às vezes trata-se de ouvir o clamor de povos inteiros, dos povos mais pobres da terra, porque «a paz funda-se não só no respeito pelos direitos do homem, mas também no respeito pelo direito dos povos». Lamentavelmente, até os direitos humanos podem ser usados como justificação para uma defesa exacerbada dos direitos individuais ou dos direitos dos povos mais ricos. Respeitando a independência e a cultura de cada nação, é preciso recordar-se sempre de que o planeta é de toda a humanidade e para toda a humanidade, e que o simples fato de ter nascido num lugar com menores recursos ou menor desenvolvimento não justifica que algumas pessoas vivam menos dignamente. É preciso repetir que «os mais favorecidos devem renunciar a alguns dos seus direitos, para poderem colocar, com mais liberalidade, os seus bens ao serviço dos outros». Para falarmos adequadamente dos nossos direitos, é preciso alongar mais o olhar e abrir os ouvidos ao clamor dos outros povos ou de outras regiões do próprio país. Precisamos de crescer numa solidariedade que «permita a todos os povos tornarem-se artífices do seu destino», tal como «cada homem é chamado a desenvolver-se».
Terei eu perdido o senso ao ver aí uma clara alusão às guerras de dominação em nome da “liberdade” e da “democracia”, como estas que a África e o Oriente Médio têm conhecido.
Acho que não fui só eu, porque a direita norte -americana está descendo a lenha em Francisco. Rush Limbaugh, uma espécie de Reinaldo Azevedo radiofônico dos EUA, disse que o que sai da boca do Papa é “marxismo puro”.
Embora os nossos tucanos tenha vergonha de falar assim, eles deveriam ler o trecho do parágrafo 55 que diz:
A crise mundial, que investe as finanças e a economia, põe a descoberto os seus próprios desequilíbrios e sobretudo a grave carência duma orientação antropológica que reduz o ser humano apenas a uma das suas necessidades: o consumo.
56. Enquanto os lucros de poucos crescem exponencialmente, os da maioria situam-se cada vez mais longe do bem-estar daquela minoria feliz. Tal desequilíbrio provém de ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira. Por isso, negam o direito de controle dos Estados,encarregados de velar pela tutela do bem comum. Instaura-se uma nova tirania invisível, às vezes virtual, que impõe, de forma unilateral e implacável, as suas leis e as suas regras. Além disso, a dívida e os respectivos juros afastam os países das possibilidades viáveis da sua economia, e os cidadãos do seu real poder de compra.
E não são só eles, não. Também os donos da mídia fariam bem em ler:
53. (…)Não é possível que a morte por enregelamento dum idoso sem abrigo não seja notícia, enquanto o é a descida de dois pontos na Bolsa. Isto é exclusão.(…)Hoje, tudo entra no jogo da competitividade e da lei do mais forte, onde o poderoso engole o mais fraco. Em consequência desta situação, grandes massas da população vêem-se excluídas e marginalizadas: sem trabalho, sem perspectivas, num beco sem saída. O ser humano é considerado, em si mesmo, como um bem de consumo que se pode usar e depois lançar fora. Assim teve início a cultura do «descartável», que aliás chega a ser promovida. Já não se trata simplesmente do fenômeno de exploração e opressão, mas duma realidade nova: com a exclusão, fere-se, na própria raiz, a pertença à sociedade onde se vive, pois quem vive nas favelas, na periferia ou sem poder já não está nela, mas fora. Os excluídos não são «explorados», mas resíduos, «sobras».
A Igreja, que não dura dois mil anos por ser tola, mas por pressentir os caminhos do ser humano, desembarcou da onda neoliberal que surfou nos tempos de João Paulo II.
Peço licença ao Chico Buarque para repetir o seu “E eu que não creio/Peço a Deus por minha gente” e afirmou: quando Roma, pesada como é, se move, é sinal de que o mundo já se moveu.
O discurso neoliberal do tucanato já se foi. E eles não perceberam.
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