O racismo age das formas mais cruéis que podem existir. Lembro-me quando estudante de nível médio de uma das melhores escolas da rede particular de Salvador. Negros na minha turma somavam três, em um universo de 45 alunos. Era difícil conviver com o racismo velado pela elite que compunha aquele quadro de alunos. Ouvia algumas falas que me causavam indignação, a qual eu mesmo cuidava de reprimir, em um silencio que calava e ocultava muito mais do que a minha voz; aquele silêncio abafava a minha dignidade.
Àquela época, eu começava a perceber o quão difícil seria admitir o posicionamento político de me assumir negro dentro de uma sociedade racista. As piadas racistas me corroíam a alma com uma impiedade sem tamanho. Mas o pior não era ouvi-las, era ter que aceita-las por medo das represálias, da exclusão, do abandono, da solidão… Sim, passei muito tempo sem a coragem de assumir a minha identidade étnica, comungando com os padrões eurocêntricos que me eram impostos. Em troca da falsa aceitação de alguns camuflei muito do meu eu, escondi o descendente de pessoas escravizadas que trago em mim, ocultei as principais características demonstradas pelo povo negro ao longo da história brasileira: resistência e capacidade de reconstruir.
Mas a negritude não se permite esconder por muito tempo. Ela grita e invade sem pedir licença. Não! Não é por falta de educação. É pela necessidade de não se adequar às realidades (im)postas pela ideologia racista que se pretende predominante. Mas qual o porquê de remontar essa trajetória agora? Seria uma necessidade de valorização ou de piedade? Piedade nunca! Mas devo confessar que valorização talvez possa se encaixar neste relato. Sei do valor que trago em mim, assim como reconheço o valor dos meus pares. Porém, algumas ações ainda se fazem necessárias para que a sociedade brasileira passe a reconhecer e valorizar a população negra. Logo, a tentativa de valorização é cabida.
Contudo, a ideia deste relato foi traçar um paralelo com uma outra história. A história de uma pessoa negra, em um universo de onze indivíduos. Onze indivíduos que representam a alta cúpula do Poder Judiciário do Brasil. Onze Ministros que têm em suas mãos o poder de proferir a última decisão em processos judiciais. Onze Ministros que compõem o Supremo Tribunal Federal! Falamos de Joaquim Barbosa, o primeiro Ministro negro do Supremo Tribunal Federal. Quando falamos desta forma pensamos na quebra de um paradigma, o que de fato ocorreu. Foi ele o primeiro Ministro Negro. Mas se pensarmos que o Brasil tem a sua população composta por 51% de negros e que, de maneira inversamente proporcional, possui apenas um Ministro que representa esta parcela étnica em um universo de onze começamos a observar que o racismo também está instalado naquele espaço de poder, desde a sua composição.
Imagino que, assim como eu quando era estudante de nível médio, Barbosa tenha se rendido aos caprichos de uma elite dominante, sob o pretexto de ser aceito enquanto Ministro, de ser aquele que mostra serviço, aquele que, como ele mesmo diz, não faz “chicana”, aquele que parte significativa da população brasileira considera como herói, aquele que pune, que manda prender pela enganosa sensação de justiça das prisões. Será que, assim como eu quando adolescente, Barbosa não se perdeu em meio às armadilhas plantadas pelo racismo? Penso que sim e passo dizer os porquês.
Quando do julgamento a Ação Penal 470, rotulada de processo do mensalão, Joaquim Barbosa esqueceu que a maioria da população carcerária do Brasil é composta por negros. E que esta realidade se apresenta como consequência de um longo, injusto e ainda atual processo de negação do povo negro. Incialmente escravizados e, quando libertos, considerados vadios, o negro sofreu um fenômeno de criminalização histórico. Prova disto é que os únicos índices que continham dados estatísticos da população negra se davam por meio dos boletins policiais, o que, somado à ausência de vontade política de construir ações voltadas para este segmento populacional, impossibilitou a construção de programas que garantissem a vida em condição de dignidade para a população negra. Mas o que o julgamento do “mensalão” tem a ver com o povo negro?
Aliada ao processo de criminalização, ou melhor, entranhada no processo de criminalização, a violação da “presunção da inocência” se constituía e se constitui como o principal fator do grande número de negros, em sua maioria jovens, compondo a população carcerária. Para a sociedade nascemos culpados e devemos nos esforçar para provar a nossa inocência. Qualquer decisão que condene réus, ainda mais privando-os da liberdade, sem provas capazes de comprovar a veracidade das acusações fortalece o racismo entranhado na nossa sociedade, uma vez que cria precedente para que aqueles que são historicamente criminalizados sejam formalmente condenados.
Quando o Ministro Joaquim Barbosa, na Ação Penal 470, carrega a bandeira da condenação arbitrária, sem provas, em total desrespeito à presunção da inocência, condenando homens e mulheres, dentre eles homens que contribuíram genuinamente para a redução das desigualdades sociais e regionais deste país, ele anuncia o risco a que os negros brasileiros estão submetidos. O risco de serem condenados sem qualquer parâmetro de justiça e de razoabilidade, condenados única e exclusivamente pela lógica do racismo.
Sei o quanto é difícil se sentir sozinho Joaquim. Ser voto dissonante não apenas entre onze Ministros, mas perante significativa parcela da população que, doutrinada na perspectiva big house, acredita na veracidade das mentiras repetidas por meio da arma de destruição em massa que camufla a sua perversidade pela sonoridade de um doce “plim plim”. Mas foi assim, por meio da dissonância, que se construíram os nossos heróis: Luiza Mahin; Zumbi; João Cândido, o Almirante Negro; e muitos outros. O poder da resistência se dava por meio da não aceitação da doutrina da elite branca, de carregar em si parte dos seus, do não se deixar levar no mar revolto de tubarões brancos.
Não! Joaquim Barbosa não é o nosso herói. Os nossos heróis não tiveram dúvidas, não esqueceram os seus pares. Não se calaram como eu quando pressionados pela elite racista; não se renderam ao posicionamento das elites brancas direitistas. Mas Joaquim, também, não pode ser considerado o nosso algoz. A sensação da solidão muitas vezes nos trai e o racismo se utiliza destas artimanhas para fazer de nós instrumentos da nossa própria derrota. Cabe a Joaquim fugir da perspectiva da justiça universalista, que se apresenta com argumentos vazios, e que faz com o que os efeitos das decisões atinjam os segmentos mais vulnerabilizados. Mas a nós, negros, cabe o apoio aos nossos iguais para que sintam que o coração que pulsa por igualdade conta com outras milhões de batidas uníssonas pela dissonância que grita, no dia 20 de novembro, dia da consciência negra: “não ao racismo, de qualquer lado que ele se apresente”.
Luiz Paulo Bastos
Advogado do Coletivo de Entidades Negras
Nenhum comentário:
Postar um comentário