Rede Brasil Atual
Presidente equatoriano 'reforça' campanha contra empresa condenada pela justiça a pagar US$ 19 bilhões em indenizações por catástrofe ambiental na Amazônia
São Paulo – O presidente do Equador, Rafael Correa, viajou ontem (17) à região amazônica do país para mostrar “mão suja” que a empresa petrolífera norte-americana Chevron deixou sobre uma parte da floresta. Autorizada pelo governo militar, a companhia operou na província de Sucumbíos, no nordeste equatoriano, entre 1964 e 1992. Deixou centenas de piscinas de petróleo, água de formação e outros elementos tóxicos. Os danos causados ao meio ambiente e às populações locais se transformaram num processo judicial que, em 2011, condenou definitivamente a Chevron a pagar uma indenização de US$ 19 bilhões apenas para remediar a contaminação. O caso começou nos Estados Unidos há quase 20 anos e foi transferido à cortes do Equador a pedido da empresa, que agora diz que o julgamento foi manipulado pelas autoridades do país.
Em sua mais recente viagem ao palco de uma das maiores catástrofes ambientais do século 20, Rafael Correa pegou com a mão resíduos de petróleo de uma das piscinas. Muitas delas foram soterradas pela companhia, sem qualquer tratamento, contaminando lençóis freáticos. Outras permanecem a céu aberto até hoje. Estão abandonadas pela Chevron há 26 anos. Como era esperado, a companhia qualificou a ação do presidente como “show midiático” e insistiu em que Correa deu mostras de uma nova interferência no processo ambiental que milhares de colonos e indígenas da Amazônia instauraram contra a Chevron – que na época em que operava na Amazônia equatoriana se chamava Texaco. O governante disse que lhe coube mostrar a “verdade” da contaminação para responder a uma campanha multimilionária da companhia petrolífera contra seu país. Em suas primeiras semanas de governo, em 2007, Correa já havia se dirigido à região afetada prestar apoio às vítimas.
Correa citou, entre outros temas, um processo que a Chevron prepara contra o governo equatoriano em um tribunal de Haia, pelo qual a companhia pretende exigir a devolução da indenização à qual foi condenada por uma corte de justiça no Equador – e que ainda não pagou. Como não possui mais ativos no país, a empresa alega que não possui recursos para cumprir a decisão judicial. Agora, os autores do processo tentam fazer com que a justiça de outros países, entre eles o Brasil, execute a sentença contra a Chevron para que seus bens possam ser confiscados para o pagamento da indenização. Em território brasileiro, A empresa opera, entre outros, o campo de Frade, na Bacia de Campos, no Rio de Janeiro. E foi responsável por um vazamento de 3.700 barris em 2011.
“Este é um dos maiores desastres ambientais que o planeta já sofreu”, declarou Correa, reiterando que os danos provocados pela contaminação na Amazônia equatoriana supera os conhecidos casos da British Petroleum no Golfo do México, e da Exxon Valdez, no Alasca, ambos nos Estados Unidos. O desastre supera ainda a tragédia ambiental causada pelo petroleiro Prestige na costa galega da Espanha. O presidente pediu à comunidade internacional “reagir contra tanta impunidade” e disse que convocará em breve personalidades mundiais para que apoiem sua campanha para que a Chevron pague as indenizações. Correa pediu ainda que os norte-americanos deixem de consumir produtos da Chevron, companhia que investiu centenas de milhões de dólares em uma campanha para deixar de cumprir suas responsabilidades judiciais.
O presidente enfatizou que o julgamento ambiental empreendido por camponeses e indígenas amazônicos contra a Chevron é um processo movido por particulares e no qual o governo equatoriano não teve interferência, como declara a companhia petrolífera. O dinheiro que virá com a indenização tampouco irá para o Estado. Nem mesmo para as vítimas. A ideia é que todos os recursos sejam dirigidos para a descontaminação do meio ambiente. Segundo Correa, sua reação obedece à campanha iniciada pela companhia petrolífera americana contra sua administração, em sua intenção de não pagar a multimilionária indenização à qual foi condenada no Equador.
Chernobyl Amazônica
Cerca de 30 mil indígenas e camponeses da Amazônia equatoriana movem processo contra a petroleira Chevron-Texaco. Estão em questão uma das maiores tragédias ambientais do século 20 e uma indenização de US$ 27 bilhões
por Texto: Tadeu Breda
O agricultor equatoriano Manuel Salinas já sofria de terríveis dores de estômago quando recebeu em sua própria casa a visita do presidente Rafael Correa, no dia 26 de abril de 2007. Fazia 23 anos que morava em cima de uma piscina de petróleo. Quando chegou a Shushufindi – cidade ao norte do Equador, em plena Amazônia –, não encontrou nenhuma lagoa negra no terreno comprado com dinheiro emprestado do irmão. Havia apenas a terra virgem, onde Salinas começaria pequenos roçados. Era o que sabia fazer em sua província natal, a mil quilômetros dali, de onde saiu depois de uma estiagem.
Pouco a pouco o petróleo ali sepultado começou a brotar. Salinas começou a ter sinais de que sua saúde piorava. Primeiro na pele. Apareceram em seu braço brotoejas e muita coceira, que se alastraram para o peito. Mais tarde vieram problemas gástricos, que o fizeram viajar inúmeras vezes em busca de tratamento na capital, Quito. Hoje não pode trabalhar.
“Tudo que sai desta terra está contaminado”, diz. O agricultor jamais deixou de comer a banana, a mandioca ou o milho que continuam nascendo em sua chácara. Sofreu muito e tem medo de voltar a sofrer com a contaminação, mas não vê outra saída: “A pobreza e a necessidade nos movem”.
Manuel Salinas é um dos 30 mil campesinos e indígenas afetados por uma das maiores tragédias ambientais do mundo, que há quase 17 anos sustenta um processo judicial contra a empresa considerada responsável.
Em 1964, a companhia norte-americana Texaco conseguiu do governo equatoriano uma concessão de 1 milhão de hectares para prospectar reservas de petróleo descobertas debaixo da floresta amazônica. O primeiro poço seria perfurado três anos depois. Antes de encerrar suas atividades no país, em 1992, a empresa instalaria outros 350 pontos de extração numa área que compreende as províncias de Sucumbíos e Orellana.
Em 28 anos, a Texaco retirou das profundezas 1,7 bilhão de barris de óleo e deixou para aquele rincão esquecido do Equador um impacto socioambiental “incalculável”, como define Pablo Fajardo, um dos três advogados que conduzem a ação judicial iniciada nos Estados Unidos em 1993.
Como a Texaco já não atuava no Equador, uma equipe de advogados residentes no país tomou conhecimento do assunto e abriu o processo nos tribunais de Nova York. Dez anos se passaram até que a Justiça norte-americana decidisse que os Estados Unidos não eram o fórum adequado para julgar a questão.
A demanda se encaminhou para o Equador, como queria a empresa. Para tanto, a Corte nova-iorquina deveria atender a algumas condições: o caso não poderia ser arquivado, demorasse o quanto demorasse; a empresa deveria submeter-se à decisão da Justiça equatoriana; e a Corte de Nova York se comprometeria a fazer cumprir a sentença emitida no Equador.
Piscinões
Pablo Fajardo, que em 2003 estava se formando como advogado, assumiu o caso como o primeiro de sua carreira. Antes, esteve ligado à luta pela reparação dos danos. Era estudante de colégio em Shushufindi quando tudo começou. Trabalhou para empreiteiras que prestavam serviço às companhias petroleiras. Uma de suas tarefas era limpar vazamentos. Ao deparar com o que considerou desrespeito social e ambiental, Pablo e seu irmão José inauguraram o Comitê de Direitos Humanos de Shushufindi, que passou a concentrar as reclamações das pessoas prejudicadas pela atividade petroleira.
“O primeiro dano provocado pela Texaco foi o deslocamento forçado que impuseram aos povos ancestrais da região.
Conforme a empresa ia lançando águas tóxicas e óleo no ambiente, indígenas eram obrigados a buscar outros territórios no interior da floresta”, relata. “Algumas etnias, como os Tetetes e Sansahuaris, desapareceram por completo.”
A empresa não teria seguido parâmetros de proteção ambiental vigentes na época.
Por exemplo, não reinjetava no solo líquidos tóxicos originados no processo de perfuração, conhecidos como “água de formação”, substância esbranquiçada que sai das profundezas da terra com um cheiro forte que lembra o de solvente. Fajardo conta que para cada poço escavado a companhia construiu duas, três ou quatro piscinas, onde lançava todo tipo de resíduo.
“A Texaco escavou mais ou menos mil piscinas e despejou 18 bilhões de galões de água de formação diretamente nos rios. Houve centenas de derramamentos que nunca eram remediados. Também regava com petróleo estradas de terra para reduzir a poeira. O combustível obviamente ia parar nos rios”, conta Fajardo. “Vi tudo com meus próprios olhos.”
Faz aproximadamente 18 anos que a companhia – rebatizada de Chevron, após uma fusão acionária em 2002 – deixou de operar na Amazônia equatoriana, mas ainda hoje é possível observar algumas piscinas a céu aberto e perceber outras tapadas com terra. Shushufindi é uma cidade salpicada por torres de queima de gás. Os chamados mecheros estão espalhados pela vizinhança. São frequentes as auréolas de arco-íris oleoso correndo na superfície dos rios. No ar, um leve cheiro de amoníaco irrita os narizes mais sensíveis.
Cheiro de gasolina
A dez metros da casa de Manuel Salinas encontra-se o poço número 38, escavado pela Texaco nos anos 1970. Dele jorrou o petróleo bruto que inunda parte do terreno. Esse mesmo poço – já esgotado – atualmente é utilizado pela estatal Petroecuador para fazer o que sempre deveria ter sido feito: reinjetar água de formação
. Um dia a tubulação que levava o líquido tóxico para o subsolo se rompeu a poucos metros da superfície. A substância putrefata infiltrou-se na terra e atingiu o lençol freático de onde Manuel Salinas tirava a água de beber, cozinhar e do banho. Essa é a história das enfermidades gástricas que por pouco não lhe tiraram a vida.
Quando visitou o local, há dois anos, o presidente Rafael Correa conheceu o poço artesiano utilizado pela família. Puxou um balde do fundo do reservatório, molhou as mãos e disse a seus assessores: “Tem cheiro de gasolina”. A cena está no documentário Crude, que estreou recentemente em Quito, desde o início do ano está na programação de diversas mostras da Human Rights Watch e foi premiado no Sundance Festival. “Quando vi o que a Texaco fez no Equador, senti vergonha de ser americano”, diz Joe Berlinger, diretor do filme mais completo já realizado sobre a batalha judicial entre a população e a companhia petroleira no que chama de “Chernobyl Amazônica”. Em jogo, uma indenização calculada em US$ 27 bilhões.
“Queremos somente a reparação do estrago ambiental. Não estamos pedindo dinheiro para nenhuma pessoa em particular. O que a gente deseja é que a Texaco recupere o dano provocado naquilo que seja possível”, argumenta o advogado Fajardo.
A agricultora Sônia Melânia Chama, 40 anos, mora em cima de uma piscina de petróleo soterrada sem tratamento prévio. Cultiva cacau e mandioca. Sua casa está a poucos metros do poço de extração número 27, explorado pela Petroecuador. De seu quintal é possível ver uma pequena torre que dia e noite incinera o gás que sai da terra junto com o petróleo. Sônia sofreu cinco abortos espontâneos. Ninguém sabe explicar por quê.
Pablo Fajardo sublinha que a perícia realizada pelo especialista independente da Corte de Justiça equatoriana concluiu que, nos últimos 15 anos, a incidência de câncer na região ultrapassa em 2 mil casos a média nacional. “Se limparmos os resíduos tóxicos que estão nas piscinas, os sedimentos dos rios e pântanos, se retirarmos da natureza tudo o que continua provocando mortes e doenças, já é muito. Assim seria possível devolver a dignidade das pessoas.”
É essa dignidade que busca Santiago Chiriap, promotor de saúde intercultural de Yamanunka, reserva onde vivem 1.400 indígenas da etnia Shuar. “Há 28 poços petrolíferos funcionando dentro da comunidade. Deveríamos ter todo tipo de serviço, mas nem sequer possuímos água potável ou saneamento básico”, explica.
Os argumentos de Chiriap apontam a contradição amazônica do Equador. O país retira do petróleo cerca de 40% de suas riquezas. Graças às reservas, tornou-se membro da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep). Ainda assim, a região ostenta os piores índices nacionais de desenvolvimento humano, além de sofrer todos os efeitos colaterais da extração.
O promotor de saúde explica que algumas mortes repentinas ocorridas em Yamanunka levaram-no a investigar a qualidade da água utilizada pela comunidade. Pediu ajuda a universidades e ONGs de Quito e – depois de três anos de análises – chegou à conclusão de que os indígenas ingerem quantidades consideráveis de chumbo, arsênio e hidrocarbonetos junto com a água. Jorge Herrera, diretor do hospital público de Shushufindi, está de acordo: “A água dos nossos rios não está apropriada para consumo humano”.
Empresa se esquiva
A Chevron-Texaco põe em dúvida a credibilidade dos advogados que representam a causa. Em nota em seu site no Equador, acusa Pablo Fajardo de buscar fama e riqueza ao atacar a imagem da empresa. De fato, o advogado é reconhecido por todos em Shushufindi, Lago Ágrio e Sacha, municípios mais afetados pela contaminação. Mas permanece anônimo no resto do país. Parte da imprensa e de instituições norte-americanas o compara a Davi na luta contra Golias.
O advogado mora numa casa de dois cômodos em Lago Ágrio. De lá, vai a Quito pelo menos três vezes ao mês. Sua vida se divide entre dois escritórios abarrotados de documentos. Durante o “tempo livre”, no trajeto de oito horas, estuda inglês da mesma maneira que estudou Direito: sozinho.
A Chevron-Texaco tenta também incluir o Estado equatoriano como réu. Atribui os problemas de saúde na região a falta de infraestrutura, de saneamento básico e de atendimento médico e a “indisposição ou incapacidade do governo e da petroleira estatal para cumprir com suas obrigações”.
Um dos advogados da Chevron, Adolfo Callejas, questiona a culpa pelos derramamentos e pela construção das piscinas de resíduos tóxicos existentes na área. Costuma dizer que o petróleo lançado na natureza não ostenta o logotipo da empresa, é impossível datá-lo, e não se pode saber com exatidão quem foi o responsável pela tragédia: Texaco ou Petroecuador.
A companhia alega ainda que, sob a supervisão das autoridades equatorianas, executou um programa de recuperação ambiental no valor de US$ 40 milhões antes de deixar o país: “As obras foram inspecionadas, certificadas e aprovadas pelo governo, que liberou a Texaco de todas as queixas e obrigações futuras”.
Um documento de caráter “pessoal e confidencial” emitido pelos escritórios da empresa nos Estados Unidos para a sucursal do Equador põe em xeque tais alegações. Carta assinada por R.C. Shields em 17 de julho de 1972, da Flórida, para N.E. Crawford, em Quito, recomenda procedimentos para reportar incidentes ambientais: “Apenas eventos importantes devem ser comunicados. Um ‘evento importante’ é definido como aquele que atrai a atenção dos meios de comunicação ou das autoridades ou que, em sua opinião, mereça ser reportado. Nenhum informe deve ser mantido na base de dados. Comunicados anteriores devem ser destruídos”.
Espera-se para outubro a primeira sentença sobre o caso, a cargo do juiz Juan Núñez Sanabria, da Corte de Sucumbíos. Qualquer uma das partes poderá recorrer da decisão. Para o advogado Pablo Fajardo, não há possibilidade de derrota. “Foram feitas 55 inspeções judiciais e todas demonstram que há contaminação por hidrocarbonetos, que a saúde humana foi prejudicada, que povos indígenas foram afetados, que havia intencionalidade da empresa, que os danos foram provocados por razões econômicas e provavelmente também por racismo.”
Fajardo reconhece que não existem fontes de energia eficientes e suficientes para substituir o petróleo e que a humanidade ainda tem de lidar com o problema. Mas com limites: “Não podemos admitir que se sacrifiquem vidas humanas, ecossistemas e o verdadeiro tesouro do país e do mundo, que é a biodiversidade”.
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