Nosso complexo de vira-lata é tão grande que já surgiram cronistas conservadores para lamentar que Margaret Thatcher não era brasileira.
O argumento é dizer assim: “Ah, aquilo sim é que era uma pessoa de direita... Não tinha escrúpulos nem queria se fazer de moderada...”
Conclusão: o Brasil é tão ruim e tão atrasado que nem possui uma direita que preste...
É uma reação característica. Pensadores importantes já chegaram a lamentar que, durante o império de Pedro II, nossos liberais não eram verdadeiros liberais porque conviviam pacificamente com a escravidão. Diziam que a prática não combinava com a teoria, que as ideias estavam fora do lugar.
É chique, é sofisticado. É complexo, como está na moda dizer, em Higienópolis e nos Jardins, mas é errado.
A verdade é que as noções políticas raramente estão fora do lugar, como lembrou o professor Venício Lima, em debate recente.
Não custa lembrar uma realidade até banal: ideias não são realidades com vida própria que saem dos livros para a vida concreta, nem obra de pensadores em seus escritórios high-tech, mas instrumentos que servem à luta social de homens e mulheres.
Quem estava fora do lugar eram nossos comentaristas e observadores, que enxergavam um liberalismo idealizado, postiço, ideológico – sem base na realidade. Construíam um mundo imaginário, procurando adaptar a realidade a seus pensamentos.
Deixando de lado casos patológicos e datados, a direita brasileira nunca teve a fisionomia de Thatcher por que sua realidade era diferente. O programa conservador britânico tinha uma função: quebrar o bem estar social, reduzir os direitos dos trabalhadores e destruir instrumentos do Estado para regulamentar a selvageria da economia de mercado. O objetivo era eliminar as instituições que permitiam ao Estado controlar os impulsos irracionais da economia de mercado, que haviam gerado a crise de 1929, efetivando políticas de garantia de crescimento e proteção do emprego que duraram mais de 30 anos.
Num resumo simplificador, pode-se dizer que, com menos Estado, Thatcher pretendia concentrar a renda com o argumento que seria uma forma de estimular o investimento, inclusive externo, e criar empregos. Pagando salários menores e oferecendo menores garantias, os empresários teriam maiores estímulos para investir, dizia o thatcherismo. Para tanto, era preciso eliminar os sindicatos, que garantiam uma jornada de trabalho mais suave, com pausa para o chá, vencimentos razoáveis e um sistema de saúde pública com uma eficiência sem igual no mundo desenvolvido.
Importando o debate para o Brasil, a pergunta é: como se poderia fazer isso, num país que já construiu, espontaneamente, digamos assim, uma das sociedades mais desiguais do planeta, onde ainda no início do século XXI se denuncia a existência de formas atualizadas de trabalho escravo?
Como fazer um programa extremo numa realidade já por si extrema?
Não havia e nunca houve um Estado de bem-estar no Brasil, motivo pelo qual não poderia surgir uma direita thatcherista, movimento de caráter regressivo. Havia fantasmagorias, como a República Sindical e a ameaça subversiva que a imprensa adorava denunciar em 64.
Mas o programa do golpe tinha um caráter preventivo, destinado a impedir mudanças que nem sequer haviam ocorrido ou se encontravam apenas em gestação muito inicial.
A desigualdade e o atraso eram tão grandes que Washington impôs ao governo de Castello Branco um compromisso de realizar a reforma agrária – que jamais saiu do papel, evidentemente, mas pode ser visto como uma demonstração do abismo social absoluto em que o país se encontrava.
Do ponto de vista da direita, não havia o que mudar. Havia o que conservar.
A situação é diferente, hoje. O modestíssimo mas real conjunto de políticas de distribuição de renda e melhorias sociais iniciado no país a partir da década passada colocou de pé um sistema de garantias e proteção social que, mesmo minúsculo em relação às necessidades reais, já é considerado insuportável pelos barões históricos.
Nos últimos anos eles se dedicam a construir templos de oração aos economistas da chamada escola austríaca. Inspiradores de Margaret Thatcher, eles consideravam os Estados de bem estar social como a antessala do comunismo.
Nossos conservadores assinam manifestos radicais, escrevem livros de baixo conteúdo e alta sonoridade. Seus autores mais ativos têm espaço garantido na maioria dos meios de comunicação. Combateram a política de cotas, denunciaram o Bolsa-Família como estímulo à preguiça, condenam o juro baixo e, quando não pega mal, já se mostram preocupados com o desemprego baixo e o salário mínimo alto.
Revelando compromissos superficiais com a democracia, questionam a ocorrência de tortura durante a ditadura e sempre dão um jeito que dizer que o golpe de 64 evitou um mal maior...
Não é preciso se impacientar, minha gente. O thatcherismo está vindo aí.
Depois de ajudar a forjar a crise que desabou em 2008, mantém-se no controle dos governos europeus, que aplicam programas de destruição de conquistas dos assalariados e da população pobre construídos no pós-Guerra.
Resta perguntar por seus compromissos democráticos.
A dificuldade da direita brasileira em apresentar um candidato para 2014 reside aí. Ela tem vários nomes à disposição. Também sabe, muito bem, o que pretende fazer, caso retorne ao Planalto.
Só não sabe como fazer isso por meio do voto. Este é o ponto em que a vida real se encontra. A população tem deixado claro, a cada levantamento, que aprova o que está aí e não vê razão para mudar.
Se o ambiente permanecer assim, a disputa do ano que vem aponta para a quarta vitória consecutiva de Lula e Dilma.
Os antecedentes do thatcherismo, nos países ao sul do Equador, chegam a ser horripilantes.
Falando sério. Apenas uma visão seletiva e instrumental de democracia explica o apoio absoluto a Augusto Pinochet, que Thatcher assegurou até o fim dos dias, inclusive quando todos os crimes da ditadura chilena se tornaram conhecidos – e se descobriu até que o general havia acumulado uma imensa fortuna clandestina em casa.
Nostalgia? Incoerência?
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