terça-feira, abril 09, 2013

A miséria familiar

Carta Capital

Sentado à única mesa de seu apartamento na Dean Street, em Londres, sobre a qual havia papéis, poeira e toda sorte de utensílios, Karl Marx pôs-se a escrever para mudar a consciência do mundo. Mas, enquanto trabalhava, ele nunca estava só. Um dia seus filhos criaram uma brincadeira na qual o cavalo seria Marx. Atrelado a uma fila de cadeiras de pés quebrados, o pai deveria obedecer a um chicote imaginário acionado pelas crianças atrás dele. A diligência ora aceleraria, ora interromperia o curso segundo o desejo de seus cocheiros nutridos a pães e batatas. Enquanto as ideias para o livro em torno do golpe de Luís Napoleão, O 18 de Brumário de -Luís Bonaparte, ferviam na cabeça de Marx, ele obedecia ao ruidoso comando infantil sem perder a ternura. Pelo contrário, convencera-se de que seria possível perdoar à cristandade muita coisa, porque ela nos ensinara a adoração da criança. Os filhos, ele dizia, é que deveriam ensinar os pais.

Talvez por isso, naquele mesmo ano, ele que tinha por hábito distribuir as poucas moedas do bolso aos meninos de rua no Natal, tenha se sentido uma irremediável vítima da orfandade. Franzisca, que estivera entre aqueles delicados cocheiros, sofrera um grave ataque de bronquite e morrera logo após o aniversário de 1 ano, como era de uso entre os 15% das crianças inglesas de então. Estatísticas, segundo Marx, contribuíam para situar a exploração capitalista e compreender o pensamento de uma sociedade a partir de sua estrutura econômica, mas não seriam capazes de lhe fazer aceitar a perda. A família não tinha dinheiro para comprar o caixão de Franzisca.

A esposa Jenny colocou o corpo da menina no quarto dos fundos do apartamento e deslocou todas as camas para a frente, onde a família dormiria até que conseguisse os recursos necessários. Esses não vieram do amigo de toda a vida Friedrich Engels, provedor de sua subsistência, outro pai e outra mãe para seus filhos, porque até o General, como eles o chamavam, não tinha um tostão em 1852. Um exilado francês deu 2 libras para que eles comprassem um caixão, então postado ao lado daquele do irmão de Franzisca, -Fawksy, no cemitério a poucos quarteirões de casa. Contudo, por seus dois meninos, e até por um de seus bebês, morto com 1 mês de idade, eles não chorariam tanto como o fariam por Musch. Aos 8 anos, o rosto, a inteligência e o humor do pai, o menino evitara mostrar os braços finos a Jenny durante sua agonia final. Ele não suportaria vê-la sofrer, e foi Marx quem esteve à sua cabeceira até o fim.

Um dos maiores pensadores do século XIX nada seria sem sua família, diz-nos a pesquisadora dessas histórias, a norte-americana Mary Gabriel, em Amor & Capital – A saga familiar de Karl Marx e a história de uma revolução (Zahar, 968 -págs., R$ 89,90 o livro impresso, R$ 49,90 o e-book). Escrito com clareza e acuidade informativa, munido da pena da humanista e do -requinte da literatura realista, o livro também inova ao centrar a ação em uma intimidade feminina sem a qual, para Marx, a vida seria impossível. “Inicialmente considerei fazer uma biografia de Jenny”, conta Gabriel em entrevista a -CartaCapital, “mas depois que li sobre -suas filhas pensei que seria mais enriquecedor se eu me -ocupasse de todas as mulheres de Marx. Essa -história, porém, deveria ser centrada no homem da vida delas, o que ele de fato foi, para o bem ou para o mal”.

Como fontes para seu trabalho, entre as centenas de estudos e biografias envolvendo um pensador que parece ter tido a obra esquadrinhada linha a linha mesmo antes de sua morte, há 130 anos, haveria as bem escritas cartas de Jenny e suas memórias inconclusas. “Minha grande frustração foi não ter podido encontrar o manuscrito original de sua autobiografia”, conta a pesquisadora, por duas décadas editora da agência de notícias Reuters em Washington e Londres. “A versão publicada tem elipses em lugares-chave nos quais a informação parece ter sido omitida.” A supressão que ela mais lamenta envolve o nascimento do filho da babá Helene Demuth, batizado Freddy em homenagem a seu alegado pai, Engels. Mas o pai verdadeiro era Marx, revelou o próprio Engels a uma incrédula Eleanor. Emudecido em razão de doença, o General, inquirido por ela sobre quem seria o pai de Freddy, escreveu-lhe o nome do amigo sobre uma lousa, com giz. Mas, do rumoroso fato, o que Jenny teria sabido?

“Inesquecível parceira amada”, dizia Marx sobre a aristocrata, bela e aguerrida revolucionária cujo irmão, ministro do governo prussiano, Jenny tratava com carinhosa gratidão. Embora seguidamente Marx precisasse sair pela porta dos fundos de seu lar em dívidas, deslocado a Bruxelas, à Trier natal, a Paris ou à Holanda em busca de saldar dívidas, reunir-se com os companheiros ou fugir dos perseguidores políticos, viver sem Jenny lhe pesava a um ponto insuportável. “O meu amor por você, assim que você se afastou de mim, mostrou sua verdadeira face, um gigante, e nele todo o vigor da minha mente e todo o ardor do meu coração estão comprimidos”, escreveu-lhe Marx, a quem os íntimos chamavam Mohr.

Para Jenny, restavam a paciência e o envolvimento ao revisar pela noite as provas dos textos do marido. Ela recebia pobres como reis em sua casa sempre aberta, mas julgava impossível viver o cotidiano sem o modelo familiar conhecido. Embora seus ideais tinissem de novos, agia à moda antiga, submissa a um homem a quem reputava genialidade. E às três filhas que lhe restaram, Jennychen, Laura e Eleanor, insinuaria que idêntico fervor lhes seria inescapável.
Jennychen almejava uma vida como atriz, enquanto se dedicava aos múltiplos talentos como escritora, ensaísta e tradutora. Eleanor ardia pela militância e pelos palcos e Laura não parecia empolgada ao se casar com o revolucionário francês Paul Lafargue, ao lado do qual foi encontrada morta, ele também envenenado em aparente suicídio. Para elas Marx imaginara uma vida em que as finanças estariam estáveis por conta do casamento. Lafargue, em especial, fora aceito na família não pela militância marxista (“Se existe uma coisa certa é o fato de que eu não sou marxista”, assegurou Marx ao genro), antes por ser um médico de solidez familiar. Mas o autor de O Direito à Preguiça, reverenciado anos depois pelo líder russo Lenin, revelou-se errático como os maridos das outras irmãs, todos franceses, indiferentes à sorte de suas esposas.

“Marx era um homem tipicamente do século XIX, no sentido de que não reconhecia a situação das mulheres”, acredita Mary Gabriel. “Ele nem mesmo conseguia ver que condenava as filhas a vidas miseráveis ao não encorajá-las a dedicar seus maravilhosos talentos e mentes a uma existência distante do casamento. Eis um dos maiores enganos de Marx. Creio que ele foi diretamente responsável pelo fim trágico das filhas.” Antes de morrer, e logo depois de perder a esposa, ele viu Jennychen sucumbir a uma infecção generalizada, cercada por quatro filhos pequenos, vítima da solidão, encargos físicos e dívidas acumuladas pelo marido. Eleanor, enganada pelo insensível companheiro de jornada, suicidou-se após a morte de Marx.


Ao jornalista americano John Swinton, que lhe perguntou sobre o que ele imaginava constituir “a lei definitiva do ser”, o pensador respondera: “A luta!” No seu caso, ela fora também íntima e mental. Marx demorava para concluir seus livros, talvez porque julgasse constante a necessidade de atualizá-los e considerasse urgente lançar-se à ação. Mal conseguira concluir o Manifesto Comunista para a revolução de 1848. O Capital, “épico sobre conquistadores e conquistas”, como o define Mary Gabriel, levou quase duas décadas para ficar pronto, enquanto o General Engels precisou estar a postos para concluí-lo a partir das anotações hieroglíficas do companheiro morto. “Marx não conseguia parar de pesquisar”, diz Gabriel, cujo próprio trabalho durou dez anos para ser terminado. A autora estará na Bienal do Livro do Rio em agosto. Nesse momento, de sua residência italiana na costa adriática, ela escreve sobre cinco pintoras expressionistas abstratas americanas dos anos 1940 e 1950.

“Marx era um perfeccionista, e sua vida e de sua família foram duramente atingidas por isso”, afirma. “Ele jamais viveu de seus escritos, a não ser no período em que trabalhou como jornalista para um periódico nova-iorquino. Apesar de necessitar desesperadamente dele, o dinheiro seria a menor de suas preocupações.” Por seu lado, Jenny viveu com o que lhe coube. Mas, depois da morte do quarto filho, esmoreceu. “Não foi fácil perder a coragem”, escreveu em uma de suas belas cartas. “Tudo o que fazemos pelos outros é tirado de nossas crianças.” O marido, contudo, teve a oportunidade de lhe mostrar que não trabalhara em vão. Em 30 de novembro de 1881, uma década e meia depois de a primeira edição de O Capital ter sido publicada sem repercussão crítica, ele leu a Jenny o que escrevera Belfort Bax em um periódico: “O livro encarna o funcionamento de uma doutrina em economia comparável, por seu caráter revolucionário e importância abrangente, ao sistema de Copérnico em astronomia ou à lei da gravitação e da mecânica”. Marx viu os olhos dela nesse momento “maiores, mais adoráveis e mais luminosos do que nunca”. Jenny, que sofria de câncer, morreu dois dias depois, aos 67 anos.

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