Saul Leblon - Carta Maior
O jornal ‘Financial Times’ acumula 125 anos de inoxidável convicção nas virtudes dos livres mercados.
Foi uma das trincheiras ideológicas na construção da hegemonia neoliberal que condicionou a sorte da economia e os destinos da humanidade nas últimas décadas, com os resultados conhecidos que dispensam reiterações.
Ao lado de outra referência no gênero, a também britânica revista ‘The Economist’, o ‘FT’ formaria uma espécie de unidade-mãe no sistema de difusão planetário da lógica das finanças desreguladas e de seus requisitos sociais e institucionais.
Entre eles, o escalpo dos direitos dos trabalhadores .
E sua contrapartida institucional: a asfixia fiscal do Estado, coibindo-o na tributação da riqueza; aprisionando-o na lógica do endividamento; sonegando-lhe o lastro político e econômico para defender a sociedade do assalto dos mercados.
Margaret Thatcher não teria existido como âncora simbólica dessa cosmologia sem as densas emissões da usina de reflexão que disseminou um pensamento, cuja indivisa abrangência mereceu em certo momento o epíteto de ‘único’.
As usinas do jornalismo britânico continuam fiéis aos seus alicerces.
Recentemente deram mostras disso ao fazer eco do conservadorismo brasileiro criticando Mantega. E ironizando Dilma na ‘guerra do tomate’.
Mas há uma diferença entre esse centro emissor e suas repetidoras locais.
Para pior.
Sem deixar de ser o que é, o ‘FT’, através de alguns editores, vem fazendo um streap-tease dos dogmas que ordenaram a pauta da economia nas últimas décadas.
E redundaram na pior crise sistêmica do capitalismo desde 1929.
Um artigo desta semana de um de seus editores, Wolfgang Münchau , sobre a demonização do gasto público, ilustra a disposição de eviscerar certos princípios que implodiram junto com o mercado das sub-primes, em 2008.
No caso das coligadas nacionais, ao contrário.
O apego à pauta velha transmitiria a um leitor desavisado a sensação de que 2008 não existiu no calendário mundial.
A baixa capacidade reflexiva, compensada por pedestre octanagem ideológica, forma o padrão desse dente vulgarizador de traços híbridos.
O Brasil tem um dos jornalismos de economia mais prolíficos do mundo; ao mesmo tempo, um dos menos dotados de discernimento histórico em relação ao seu objeto específico.
Aqui os desafios de um país em desenvolvimento são tratados como crimes contra o mercado.
Aliás, o Brasil é um crime contra o mercado.
Ampliar o poder de compra da população, gerar empregos, expandir o investimento público, erradicar a fome alinham-se na pauta dominante entre os ‘ingredientes da crise’.
Subir juro é aclamado como solução.
Os exemplos se sobrepõem como as folhas de um manual suicida.
A mais recente campanha da mídia local em defesa do choque de juros veio em linha com o recrudescimento das incertezas internacionais.
A Europa deriva , a China ensaia uma mutação para dentro do seu mercado; a convalescença norte-americana dá um passo à frente e outro atrás.
E o Brasil precisa de um choque de juros.
Porque o tomate rendeu um colar a uma senhora chamada Ana Maria Braga numa semana. E despencou de preço na outra.
Num momento em que o principal problema do capitalismo mundial é falta de demanda, o jornalismo especializado transforma em problema o trunfo do mercado interno.
Os mais afoitos, exortam a demissões em massa.
A ordem unida dos tacapes, em 2012, quando o governo não cumpriu a meta cheia do superávit primário –e agora, que o ‘anátema’ ameaça se repetir– atesta as diferenças de qualidade e discernimento entre a matriz e as repetidoras periféricas do pensamento mercadista.
As distâncias tendem a se aprofundar de forma doentia.
O calendário eleitoral adiciona novos antolhos a uma pauta que se apega cegamente à missão de interditar o debate e vetar as soluções para os desafios de uma nação em desenvolvimento.
A cantilena diuturna contra o investimento público, as obras públicas, os bancos públicos tenta adestrar a opinião da sociedade contra ela mesma.
E por tabela contra um governo que tenta –com as limitações reconhecidas pelo próprio– recolocar o Estado no seu papel.
O de indutor e planejador de grandes obras nacionais de infraestrutura. Cruciais para redimensionar a escala de uma logística desenhada para 1/3 da sociedade.
A recente reportagem do Fantástico sobre os atrasos e falhas na construção da Ferrovia Norte-Sul enquadra-se nesse esforço de desqualificação ideológica e eleitoral.
Calcula-se (há pareceres do TCU sobre isso) que 2/3 da malha ferroviária brasileira de 28 mil km foi dizimada no processo de privatização dos anos 90.
A informação não abona o inaceitável andamento de alguns projetos vitais ao desenvolvimento do país.
Mas recomenda cautela e foco no debate.
Se o objetivo é buscar alternativas eficientes , não se pode omitir o efeito deletério da privatização no setor.
Os trilhos da pauta dominante não comportam todos os fatos.
Os interditos reiteram um acervo de parâmetros e dogmas que a matriz de difusão original já trata, em alguns casos, como renomada gororoba.
Lixo neoliberal sem comprovação empírica ; não raro, ancorado em fraude, como se verificou na recente desmoralização da dupla ortodoxa Kenneth Rogoff e Carmen Reinhart .
Campeões da ideologia da austeridade fiscal, a dupla guarneceu suas teses com o rudimentar artifício de eliminar dados incompatíveis com as premissas da demonização do gasto público‘.
Enquanto vozes liberais do ‘Financial Times’ se despem desse entulho, nosso jornalismo fantástico não se libera jamais dos velhos preconceitos.
Aprimoram-se na arte fantasiosa de reduzir tudo o que não é mercado a um desastre de proporções ferroviárias.
Wolfgang Münchau , editor do ‘FT’, decididamente está longe de ser um sujeito antimercado.
Mas sobreviveria com suas ideias como repórter em qualquer uma das nossas vigilantes editorias de crimes contra o mercado?
Confira, abaixo.
OS PERIGOS DAS TEORIAS FRÁGEIS
Wolfgang Münchau
‘Financial Times’
John Kenneth Galbraith rebaixou, celebremente, seu colega economista Milton Friedman ao dizer: “O azar de Milton foi que as suas políticas foram experimentadas”.
A mesma observação pode ser feita sobre Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff. Na Europa, em especial, autoridades pró-austeridade colocaram em prática políticas econômicas baseadas em suas análises, com consequências catastróficas, tanto humanas como econômicas. A tragédia dos dois economistas de Harvard não foi o mau uso das planilhas do Microso’FT’ Excel, mas o mau uso do Microso’FT’ PowerPoint. Eles exageraram seus resultados. Ao fazê-lo, seguiram a regra de ouro do jornalismo de tabloide: simplificar e, então, exagerar.
Desde a publicação em 2011 de seu livro “Oito Séculos de Delírios Financeiros – Desta Vez É Diferente”, que foi sucesso de vendas, e desde suas pesquisas subsequentes sobre a relação entre endividamento e crescimento, os professores não deixaram dúvidas: acreditam que os dados mostram haver um limite de endividamento de 90% do Produto Interno Bruto (PIB), a partir do qual o crescimento econômico decai rapidamente. Muitas autoridades interpretaram essa regra como uma convocação para reduzir as dívidas abaixo desse patamar, em nome do crescimento. Os professores Reinhart e Rogoff, portanto, tornaram-se a madrinha e padrinho intelectuais da austeridade.
A tese de que uma dívida acima de 90% do PIB inibe o crescimento embute dois mitos, o do limite e o da causalidade. Pesquisadores de Massachusetts mostraram que dados corrigidos revelam uma relação negativa moderada entre crescimento e dívida
Para vermos a enorme influência deles nos debates europeus, vale a pena citar uma parte do discurso de Olli Rehn, chefe econômico da Comissão Europeia, ao Conselho de Relações Exteriores, em junho de 2011: “Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff cunharam a “regra dos 90%”", disse. “Ou seja, os países com dívida pública superior a 90% de sua produção econômica anual crescem de forma mais lenta. Altos níveis de endividamento podem tirar espaço do dinamismo empresarial e da atividade econômica e, portanto, dificultar o crescimento. Essa conclusão é particularmente relevante em um momento em que os níveis da dívida na Europa estão agora se aproximando do limite de 90%, que os EUA já ultrapassou.”
É de se presumir que Rehn não leu os estudos originais, mais ambivalentes em suas conclusões, como costumam ser os estudos acadêmicos. Autoridades, como Rhen, estão sempre atentas ao surgimento de teorias que sejam plausíveis e estejam em linha com suas principais crenças. Na Europa, a maioria das autoridades não tem muito contato com macroeconomistas com enfoques inovadores. Claramente, a maioria das autoridades acha contrário à lógica um cenário em que governos gastem dinheiro em recessões. É algo que vai contra sua própria experiência, em especial, quando são de países da Europa Setentrional.
Elas podem ter lido a história da Grande Depressão, mas ainda assim acham que a resposta keynesiana é menos plausível do que a austeridade pró-cíclica. Então, para os responsáveis por políticas conservadoras, quando dois dos economistas mais respeitados do mundo aparecem dizendo-lhes que sua intuição sempre esteve certa, isso representa o melhor dos mundos. Surgia, finalmente, a mensagem que eles sempre quiseram ouvir.
A tese de Reinhart e Rogoff, da forma como as autoridades a compreendem, incorpora dois mitos separados. O primeiro é o da existência de um limite de 90%. O segundo é o da causalidade. O primeiro foi desacreditado na semana passada por Thomas Herndon, Michael Ash e Robert Pollin, pesquisadores da University of Massachusetts Amherst. Seus dados, corrigidos, mostram uma relação negativa bastante moderada entre crescimento e dívida. Economistas sempre vão brigar sobre abordagens estatísticas, por exemplo, se é mais aconselhável usar a média ou a mediana e outras questões do tipo. Ainda assim, não importa por qual ângulo se olhe, não há uma quebra estrutural na marca dos 90%. Não há quebra estrutural em nenhuma marca.
Isso é imensamente importante para a discussão de políticas econômicas. Desmonta a noção dos 90% como um número mágico – com o qual as autoridades europeias estão agora obcecadas, da mesma forma como costumavam estar com déficits orçamentários anuais que não excedessem os 3% do PIB, algo para o que não havia base teórica.
A redução de todo o quadro a um simples número foi acompanhada por um exagero sobre o impacto. A relação causal podia seguir a direção do alto endividamento rumo ao baixo crescimento, como sugerem os autores; ou o caminho contrário; ou em ambas as direções. Ou a relação pode ser enganosa. Ou algo completamente diferente pode ser a causa de ambos. Se a causalidade seguir o caminho contrário, a história é muito menos entusiasmante para quem propagandeia políticas econômicas. Também seria possível dizer: as pessoas são pobres porque não têm dinheiro. Se o seu crescimento é negativo, sua taxa de endividamento sobe pelo simples motivo que ela é expressa em relação ao PIB nominal.
As estatísticas não podem dizer o que causa o quê. Para isso é preciso uma teoria. Macroeconomistas, no entanto, não têm uma teoria sobre o nível ideal de endividamento. A única resposta conhecida é que isso depende – das taxas de juros reais, do crescimento, do tipo de economia, do regime cambial e de muitos outros fatores.
Diferentemente dos professores Reinhart e Rogoff, Friedman tinha uma teoria quando impulsionou o monetarismo no fim dos anos 1960 e nos anos 1970. Não havia erros de datilografia no equivalente às planilhas de Excel dos anos 1960. Ele tinha evidências empíricas sólidas. A teoria posteriormente falhou, mas é possível entender por quais motivos os presidentes de bancos centrais haviam comprado a ideia na época. A regra dos 90%, em comparação, é inacreditavelmente frágil. E mesmo já tendo sido refutada, vai continuar a direcionar o debate político por algum tempo.
Quanto aos professores Reinhart e Rogoff, suspeito que eles, também, vão ser lembrados principalmente pelo fato de que suas políticas econômicas foram experimentadas.
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