O objetivo deste blog é discutir um projeto de desenvolvimento nacional para o Brasil. Esse projeto não brotará naturalmente das forças de mercado e sim de um engajamento político que direcionará os recursos do país na criação de uma nação soberana, desenvolvida e com justiça social.
segunda-feira, abril 29, 2013
Arrocho e fraude: o poder da ideologia
Da Carta Maior
Saul Leblon
Reportagem do 'El País', deste domingo (28), faz o que nenhum veículo do dispositivo conservador brasileiro cogitou: entrevista o estudante de economia Thomas Herndon, de 28 anos; ele ganhou fama mundial ao fulminar a credibilidade de dois centuriões da ortodoxia fiscal, os economistas Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff.
Herndon prepara seu doutorado na Universidade de Massachusetts, nos EUA.
Reinhart e Rogoff são titãs de Harvard, ademais de egressos da alta cúpula do FMI.
Entre 2001 e 2003, Rogoff ocupou nada menos que o cargo de economista-chefe da instituição; Reinhart era sua assistente.
O grande mérito de Herndon foi agir diante dessa catedral ortodoxa com impiedosa independência intelectual.
Ele não aceitou como intocáveis as premissas que sustentavam o edifício teórico da dupla consagrada dentro e fora da academia.
A saber, que o endividamento público é intrinsecamente nefasto ao transitar na faixa dos 90% do PIB.
Há exatamente três anos, os dois publicariam no ‘American Economic Review’ um ensaio ancorado na ‘comprovação’ estatística de que a ultrapassagem dessa marca fatídica inviabilizaria o crescimento econômico.
Apenas um parêntesis ilustrativo do peso material que tem as ideias: nesse momento, os socialistas franceses se imolam em praça pública agarrados a uma política de austeridade que visa exatamente reverter o endividamento público, na marca dos 92% do PIB. (Leia a reportagem de Eduardo Febbro, direto de Paris)
A maldição fiscal não é novidade na carreira do mago Rogoff.
Como economista-chefe do FMI, ele já prescrevia a caldeirada de arrocho & rabo de escorpião mesmo sem tê-la demonstrado ‘cientificamente’ ainda.
A genuflexão a essa receita foi inoculada em cérebros intelectuais, operacionais e midiáticos nos quatro cantos do planeta.
O FMI, seus ‘rogoffs’ e aprendizes cuidaram de injetar cepas daquilo que, no fundo, revestia de legitimidade os interesses rentistas acantonados na dívida pública.
A agenda do desenvolvimento, propriamente dita, foi devastada por essa infecção contagiosa.
Seu efeito revelou-se tão ou mais devastador que a doença supostamente maligna que pretendia curar: o gasto público.
Herndon passou os olhos nas estatísticas que comprovavam o anátema e não ficou satisfeito. Solicitou as planilhas completas aos autores.
Quando as teve em mãos hesitou mais uma vez.
Havia extrapolações de inconsistência óbvia; pior, dados que afrontavam a premissa da austeridade haviam sido eliminados das séries finais.
As evidências eram fortes, mas peso da ideologia é maior ainda.
O doutorando esfregou os olhos mais de uma vez na esperança de clarear a visão embaralhada pelo cansaço. Pediu ajuda à noiva, uma socióloga especialista em estatística.
Ela revisou as séries cuidadosamente. E confirmou: “Não creio que você esteja errado”.
O resto é sabido.
A fraude macroeconômica mais estonteante da ultimas décadas, brinca a reportagem, funcionou para o Estado do Bem Estar Social como as ‘armas de destruição em massa” funcionariam para a invasão do Iraque por Bush.
Herndon acha um pouco exagerada a comparação. Mas concorda com a essência da analogia: ‘Porque estão adotando políticas a partir de premissas falsas’, diz.
O coquetel de arrocho e premissas falsas, bem como seu personagem símbolo, a partir de agora, não são estranhos ao Brasil.
Kenneth Rogoff dirigia o FMI durante a disputa presidencial brasileira de 2002.
Em setembro daquele ano, o Ibope divulgou uma pesquisa em que o então candidato do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, retomava a trajetória ascendente.
Depois de um período com resultados negativos, Lula ganhou mais dois pontos consolidando-se na liderança, com 41% das intenções de voto.
O tucano José Serra, seu principal adversário, cairia para 18%, um ponto a menos.Mas já se revelava um corisco no quesito rejeição: 29%.
A pesquisa encomendada pela 'Globo' foi divulgada numa terça-feira, véspera da reunião anual do FMI, em Washington.
Na quarta e na quinta-feira seguintes choveriam raios, cobras, lagartos e escorpiões sobre o Brasil.
Autoridades do Fundo emitiriam previsões catastróficas e receitas sombrias para o futuro do país e de seus eleitores.
Tudo naturalmente escandido com a conhecida isenção dos veículos do dispositivo midiático conservador.
Na 'Folha', o então correspondente Marcio Aith, que viria a ser chefe de imprensa de Serra na outra derrota tucana, em 2010, exercitava o seu futuro com o dedo preso no gatilho: “Alternativa, agora, é mais arrocho, diz FMI”. Em seguida ajustava o alvo: “Fundo elogia equipe econômica do Brasil (a do PSDB) e rebaixa perspectiva de crescimento do país...” ('Folha de S. Paulo', 26-09-2002)
No ‘Estadão’, o quadro de avisos viria igualmente encharcado de ostensiva agressividade.
Com o título “Ajuste no Brasil será feito com dor, diz FMI”, o texto era temperado de vaticínios agourentos aspergidos por ninguém menos que o rigoroso economista-chefe do organismo, Kenneth Rogoff.
As sentenças de Rogoff seriam impressas e disseminadas, então, com a mesma inquebrantável genuflexão do espírito que hoje acomete nossos jornalistas especializados em lubrificar a terapia do choque de juros.
Tudo devidamente chancelado pelo ‘rogoffismo’ local, vocalizado por sábios tucanos e professor banqueiros, de conhecidos serviços prestados à Nação.
Como diria Millôr Fernandes, se não é uma garantia, já é uma tradição.
Ela explica por que o estudante Thomas Herndon não tem o destaque merecido nos grandes diários nacionais.
Seria o mesmo que Bush admitir que as armas de destruição em massa serviram apenas de álibi para destruir o Iraque. E tomar de assalto os seus poços de petróleo.
Leia, a seguir, trechos do 'Estadão', com as sugestivas advertências de Rogoff, na reta final das eleições de 2002.
“Ajuste no Brasil será feito com ‘dor’, diz FMI”
Estadão 25-09-2002
O principal objetivo da política macroeconômica do Brasil, no médio prazo, deve ser reduzir o endividamento público, disse nesta quarta-feira o economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI), Kenneth Rogoff, na coletiva que abriu a reunião anual do FMI e do Banco Mundial.
Para quem conhece a linguagem sutil e diplomática do Fundo, fica claro que um aviso está sendo dado ao próximo governo: se não houver uma reversão significativa do sentimento negativo do mercado em relação à solvência pública, o FMI deve brigar por um superávit maior.
Rogoff foi até mais explícito na entrevista ao dizer que um "programa fiscal forte" requer "um forte grau de consenso social e político". Mais adiante, ele reformulou a expressão para "um alto grau de consenso social e apoio político".
Rogoff afirmou que o ajuste é particularmente difícil porque o grande endividamento faz com que as taxas de juros sejam muito altas. E isto, por sua vez, cria a necessidade de que o superávit primário (que exclui os gastos com juros) seja ainda maior.
Em um importante documento divulgado nesta quarta, o FMI deixa claro que encara o superávit primário de 3,75% do Produto Interno Bruto (PIB), com o qual o Brasil está comprometido, como um nível mínimo (que poderia ter de ser aumentado) nos próximos anos.
O FMI também explicita que considera que o elemento político - a incerteza sobre a continuidade da atual política de forte ajuste fiscal - é uma das principais causas da turbulência no Brasil.
O FMI deixou claro que considera que há um importante fator político na atual turbulência no Brasil. Referindo ao aumento de 750 para 1.500 pontos do risco-Brasil entre março e junho deste ano, a sessão sobre o Brasil da Perspectiva diz que há várias razões, mas que "talvez, mais fundamentalmente, os participantes do mercado começaram a focalizar a sua atenção nas incertezas políticas associadas com a eleição presidencial de outubro e as suas implicações para a atual política econômica".
Mais adiante, referindo-se à piora da situação brasileira a partir de junho, o texto diz que "os mercados ficaram cada vez mais nervosos sobre o resultado das eleições e o que ele poderia significar para a sustentabilidade das finanças públicas no Brasil, especialmente em seguida às
pesquisas de intenção de voto no início de julho". Esta foi a fase em que Luiz Inácio Lula da Silva e Ciro Gomes lideravam a disputa. "Para aliviar estas preocupações", conclui o relatório, "é crítico que se crie a confiança de que uma política econômica apropriada vai permanecer depois das eleições".
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