Nos anos 1990, o Estado foi tratado como problema para os liberais no poder. Nos últimos dez anos, ao induzir o crescimento com distribuição de renda, foi solução. Desafio é ampliar os investimentos
Por: Vitor Nuzzi
Em 20 anos, o Brasil passou por dois modelos de gestão distintos. O Estado, que era um problema pelo dogma liberal, passou a solução na visão dos chamados desenvolvimentistas. As comemorações pelos dez anos de governo sob a gestão do PT, após oito anos de administração tucana, precipitou o debate de 2014. Para Fernando Henrique Cardoso, “ficar o tempo todo olhando para trás” parece picuinha e o melhor é comemorar a “vitória do Brasil”. Luiz Inácio Lula da Silva, diz que não tem medo de comparação.
O economista Marcio Pochmann, presidente da Fundação Perseu Abramo, observa que o país passou – ou ainda passa – por uma longa transição, de uma economia de “financeirização da riqueza”, nos anos 1980 e 1990, para uma economia “sustentada pelos investimentos produtivos”. Saiu da condição de oitava economia mundial, em 1980, para a 13ª em 2000. Agora, caminha para ser a quarta. Para isso, os investimentos são fundamentais.
O diretor executivo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) pelo Brasil e Suriname, Ricardo Carneiro, vê muitas diferenças entre as gestões FHC e Lula. No primeiro período, ele identifica a influência do chamado Consenso de Washington, do final dos anos 1980, que trazia princípios de liberalização e globalização da economia. “O resultado é ruim. Os indicadores sociais e econômicos (no governo FHC) não são bons. É um dos períodos da economia brasileira comparáveis ao da década perdida (1980), com abertura e privatização rápidas, sem muito critério, para atingir determinados objetivos fiscais.” A “herança boa”, para Carneiro, foi o controle da inflação. Houve, sim, um início de implementação de políticas sociais, mas em escala reduzida.
Segundo Carneiro, o governo Lula iniciou um movimento em direção a políticas mais progressistas, entre as quais a do salário mínimo, que o diretor do BID considera a marca da gestão do período 2003-2010, destacando a marcha das centrais sindicais pela valorização da remuneração. “É a grande política do governo Lula. Aliás, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, está descobrindo isso agora.”
A economista Tania Bacelar, professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), vê erros e acertos, mas considera o ambiente macroeconômico “muito” melhor, com a inflação sob controle, a redução da dívida pública e o crescimento das reservas internacionais. “Do ponto de vista do crescimento, acho que a gente não melhora significativamente”, diz a professora, também diretora da Consultoria Econômica e Planejamento. Tania reconhece a importância do controle da inflação pelo governo Fernando Henrique. Mas identifica uma “grande mudança” na gestão Lula quanto ao aumento da renda e do emprego formal e à redução das disparidades, a partir da combinação de políticas sociais e econômicas. A professora também destaca a valorização do salário mínimo. “Foi muito positivo sobretudo para o Nordeste, onde 70% da população ocupada ganha até dois salários mínimos, e metade ganha no máximo um. Tanto que o Norte e o Nordeste lideram as vendas no varejo.”
Ousadia
A economista vê como principal desafio, agora, fazer deslanchar o investimento. “É nossa variável estratégica”, observa. Em economês, investimentos são as aplicações necessárias para se melhorar o potencial produtivo de um governo ou empresa. São, por exempo, os recursos empenhandos em melhoria e ampliação de estradas, portos, aeroportos, geracão de energia, em ciência e tecnologia, máquinas e equipamentos, qualificação de pessoal. Em linhas gerais, economistas estimam que o Brasil precisa de uma taxa de investimentos correspondente a 25% do Produto Interno Bruto (PIB) para crescer 5% ao ano. Desde os anos 1980, esse percentual oscila entre 15% e 20%. O objetivo do governo Dilma é chegar a 23%.
Para Tania, a presidenta está fazendo mudanças importantes no sentido de preparar o país. “Ela já está construindo o segundo momento. Já está sinalizando para a frente.” No caso, discutir onde o Estado deve e não deve investir e onde deve entrar o investimento privado – em rodovias, portos e aeroportos, por exemplo.
Em sua análise, o desmonte ocorrido em períodos anteriores deixou o setor público desprovido de estruturas executivas. Isso provoca, inclusive, dificuldades na execução do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Por isso, Tania acredita que Dilma está iniciando um debate interessante. “É uma ousadia para um governo do PT rediscutir o papel do Estado”, afirma. Para Ricardo Carneiro, após anos de crescimento sustentado, basicamente, pelo consumo, com o aumento da renda e do acesso ao crédito, o país esbarra em alguns “tetos”, como infraestrutura e balança de pagamentos. O terceiro está na disponibilidade de mão de obra no mercado de trabalho. “O crescimento demográfico é menor, a oferta de trabalho está diminuindo, pessoas entram mais tarde (no mercado). O emprego com carteira assinada cresceu mais no setor de serviços, em que a qualificação média não é tão grande. Era necessário criar mais empregos em setores com requisitos técnicos mais substantivos, em cadeias com maior valor agregado.”
Os indicadores na última década derrubaram a tese de que o custo do trabalho formal seria um entrave para a abertura de empregos. De 2003 a 2010, o país criou mais de 15 milhões de vagas com carteira assinada, o triplo do período 1995-2002. Em relação ao desemprego, embora os dados não sejam mais comparáveis, porque houve mudança na metodologia do IBGE justamente em 2002, é possível dizer que as taxas ficaram muito tempo em dois dígitos. No ano passado, a média foi de 5,5%, a menor da série.
Acomodação
Atual secretário de Desenvolvimento Social de Feira de Santana (BA), o sociólogo Ildes Ferreira vê mudanças importantes nas duas últimas décadas, “em parte como resultado da ação do Estado”. Mas lembra que houve menor crescimento populacional. O número médio de pessoas por família passou de seis, 30 anos atrás, para pouco mais de três. “Isso também influencia.” Para Ferreira, a ação do Estado com segmentos mais vulneráveis tem um efeito positivo e outro questionável. “Temos de comemorar não haver mais pessoas com fome”, diz, para em seguida criticar: “O Bolsa Família acomoda as pessoas. Precisa ser redesenhado para a inserção na produção”.
Alvo de críticas conservadoras, o Bolsa Família já corresponde a 0,5% do PIB e firma-se como um dos maiores programas de redistribuição da renda no mundo “É uma crítica conservadora”, reage Tania Bacelar. “Primeiro, (o Bolsa Família) custa pouco. Segundo, o cara não se acomoda com R$ 170. O problema é que as pessoas não têm qualificação. Elas estariam desempregadas. O Bolsa Família mobilizou as pequenas bases produtivas dos municípios. É a padaria,a farmácia...”
Ricardo Carneiro diz que o programa corresponde a aproximadamente 0,5% do PIB. “É um piso de sobrevivência, não de remuneração, como é o salário mínimo.” Ferreira acredita que o avanço foi relativo. “Dá para botar arroz e feijão na panela. Em emprego, educação, avançamos pouco. A distância entre o topo e a base continua muito grande.”
O índice de Gini, que mede a distribuição de renda, vem caindo, como mostra o economista João Sicsú: foi de 0,585, em 1995, para 0,501 em 2011 – quanto mais próximo de zero, menor a desigualdade. Também tem melhorado a distribuição da renda. A participação dos salários no PIB foi de 46,3%, em 2003, para 51,4% em 2009. “Não vivemos em nenhum paraíso. Muito longe disso. Mas, em contrapartida, a situação é muito melhor que a do final dos anos 1990 e início dos anos 2000”, disse Sicsú em texto publicado na revista CartaCapital. “Não haverá desenvolvimento sem desconcentração da renda.”
“Você só avança mesmo se houver uma política mais eficaz do Estado”, diz Ricardo Carneiro, para quem o país ainda tem estrutura tributária distorcida. “É preciso tributar a renda, e não a produção, o consumo.” A professora da UFPE pede investimento público prioritariamente em educação. “Isso mudaria o Brasil”, afirma. Mas, com toda a desigualdade que ainda existe, ela aponta um efeito psicossocial relevante nas políticas públicas, como a garantia da alimentação. “Acordar de manhã e saber que não tem comida para dar aos filhos é inaceitável. Você tem de trabalhar para que não haja mais isso na próxima geração.”
Dez anos depois
Guaribas, no interior do Piauí, a 600 quilômetros de Teresina, foi a primeira a receber o programa Fome Zero, em 2003. Era uma cidade extremamente pobre, com o menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do país, sem água encanada nem energia elétrica. O repórter Lucas Rodrigues, da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), que foi ao local após dez anos, descreve avanços e antigos problemas: “O município conquistou o principal objetivo: acabar com a miséria. Mesmo assim, ainda está entre os mais pobres do país e enfrenta o êxodo dos jovens em busca de emprego em grandes cidades. Segundo o IBGE, entre 2000 e 2007, quase 10% dos moradores deixaram Guaribas”.
A reportagem cita, entre outros, o caso do aposentado Eurípedes Correa da Silva, que chegou a trabalhar de vigia nas poucas fontes de água, racionada nos longos períodos de seca. “Hoje, a água chega, encanada, à casa dele.” Com sete filhos, Eurípedes agora tem televisão e geladeira – a energia chegou ao município – e recebe o benefício do Bolsa Família, que substituiu o Fome Zero. A meta é aumentar de 1.500 para 2.000 o número de residências alcançadas pelo benefício, o que representaria 80% da população. Segundo a coordenadora local do programa, Raimunda Correia Maia, “o dinheiro que gira no município, das compras, da sustentação dos filhos, promove desenvolvimento”.
Os irmãos Alan e Rosângela, também entrevistados, contam que as melhorias não serão suficientes para continuar no município, já que nenhum dos dois encontra trabalho e não é possível sustentar a família, de oito pessoas, com um cartão de R$ 130 do Bolsa Família. E já foram para São Paulo. O casal Irineu e Eldiene, por sua vez, fez o caminho inverso: voltaram e estão organizando uma pousada no centro da cidade. Uma obra mais para o futuro, segundo Irineu. “Estou vendo que a cada ano Guaribas está se desenvolvendo mais.”
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