domingo, fevereiro 28, 2010

NOVO PARADIGMA EM MARCHA?

O Estado

A crise internacional pôs a nu a fragilidade financeira, monetária e fiscal dos países desenvolvidos, que estão sendo obrigados, para estimular o consumo, a operar com taxas de juros reais (excluída a inflação) negativas. A ajuda governamental ao sistema financeiro insolvente criou déficits fiscais e endividamentos públicos sem precedentes.

Os endividamentos elevados vão causar proximamente taxas de juros crescentes, ampliando os já elevados déficits fiscais, que por sua vez ampliarão ainda mais os endividamentos. O elevado nível de desemprego e o endividamento da população reduzem o consumo e os investimentos e isso atinge em cheio a arrecadação pública e amplia a demanda social.

Receitas públicas menores e necessidades de despesas sociais e de juros crescentes agravarão ainda mais os déficits fiscais dos países desenvolvidos e contaminarão as condições de vida de suas populações. Não se exclui, por causa da contração do consumo, a possibilidade de terem de enfrentar a deflação – queda de preços por causa da postergação das compras.

O mais grave é a possibilidade de aparecimento de crises sociais, com desestabilização política. Na Grécia, as crises sociais já começaram.

O presidente do Banco Central Europeu (BCE), Jean-Claude Trichet, afirmou que a situação fiscal dos Estados Unidos e do Japão não era muito melhor do que a da Grécia.

Segundo a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), os déficits fiscais previstos para este ano em relação ao Produto Interno Bruto (PIB) da Irlanda de 12,2% e da Inglaterra de 13,3% superam o da Grécia de 9,8%. E, em tamanho da dívida líquida, Itália (100,8%) e Japão (105%) superam o da Grécia (94,6%). Como destacou Celso Ming, em sua coluna de 21 de fevereiro no Estado, com dados da OCDE: “Ficha por ficha, a dos Estados Unidos está pior do que a maioria dos países europeus. Ostenta um déficit fiscal de 10,7% do PIB e uma dívida (líquida) de 65,2% do PIB ante 6,7% e 57,9%, respectivamente, da área do euro.”

Segundo dados do Fundo Monetário Internacional (FMI) e da agência Bloomberg, nos últimos dez anos (2000 a 2009), o crescimento da economia em escala global foi de 42%, tendo os países desenvolvidos crescido 17,1% e os países emergentes, 75,1%, ou seja, os emergentes cresceram em média nesse período 4,4 vezes mais do que os desenvolvidos.

Para os próximos anos, a maioria das análises prevê que a diferença entre o desempenho de emergentes e desenvolvidos será reforçada, impulsionada, principalmente, pela Ásia, com grande peso para China. A previsão continua sendo de que a demanda doméstica (consumo e investimento privado) será o carro-chefe desse processo.

Ao que tudo indica, a crise serviu para acelerar um novo arranjo geopolítico em construção nas últimas décadas com o avanço da globalização, que radicalizou o processo de concorrência internacional.

A regulação de preços vai se deslocando gradualmente das políticas monetárias locais para os preços ditados pela concorrência internacional. Assim, a política monetária perde força face ao avanço da globalização comercial, que interconectou os mercados. A tendência dos preços a nível global passou a ser mais ditada pelo preço das commodities.

Dentro desse processo da globalização, a expansão natural do capital foi na direção da minimização de custos de mão de obra, de menor tributação e de localização da expansão geográfica do consumo mundial. Os países desenvolvidos têm custos elevados de mão de obra e mercados estagnados ou em declínio e, por isso foram e continuarão perdendo a atratividade que tiveram frente aos emergentes, notadamente da Ásia e em algum grau da América Latina. A consequência desse processo foi a transferência de oferta de empregos dos desenvolvidos para os emergentes, com uma incorporação sem precedentes de elevado contingente de pessoas no mercado de trabalho e de consumo nos emergentes. Essa expansão de consumo, por sua vez, reforça os movimentos do capital para esses países.

Esse movimento caminhou juntamente com os processos migratórios de mão de obra na busca de melhores oportunidades de emprego ocorrendo com a crise retorno da mão de obra a seus países de origem. A tendência desses dois movimentos é uma diminuição das desigualdades salariais em termos locais e globais. Em outras palavras, os salários mais altos e o emprego dos países desenvolvidos vão continuar cedendo terreno para os emergentes.

Ao lado desse processo, vem se desenvolvendo um enfraquecimento de controle político dos países desenvolvidos nos fóruns internacionais. Os países do G-7 (grupo dos sete mais industrializados) começam a ceder espaço aos países componentes do G-20 e são questionadas as representações dos desenvolvidos nesses fóruns.

Esse novo arranjo geopolítico está em processo e, com a crise internacional, que enfraqueceu os países desenvolvidos e fortaleceu os emergentes, a tendência é para aceleração do novo arranjo.

Outra forma de analisar esse processo de crise econômica, financeira e social dos países desenvolvidos é a do esgotamento do modelo de desenvolvimento experimentado desde o início da revolução industrial. Esse modelo se baseou numa concentração de renda e riqueza, o que levou inevitavelmente a crises de superprodução.

O novo modelo, em fase de implantação, se apoia na ascensão de forte contingente de novos consumidores pela geração de emprego e renda de populações antes marginalizadas da sociedade de consumo. Tudo leva a crer que esse novo modelo apresenta maior dinamismo e estabilidade do que o anterior. Dinamismo pela concorrência internacional sem paralelo e estabilidade por se apoiar numa base de consumo bem maior.

Dentro desse quadro, não é de esperar sustentação para a tentativa de retomada do modelo anterior, onde os países desenvolvidos detinham parcela significativa do crescimento da demanda mundial. A gangorra pende cada vez mais para a liderança dos emergentes no papel antes desempenhado pelos países desenvolvidos.

É possível que o novo paradigma econômico já esteja em fase de formação e, caso isso aconteça, a redistribuição de renda tende a beneficiar as populações dos emergentes.

Será que o capitalismo experimentará uma nova fase na qual sua viabilização se dê apoiada numa melhor distribuição de renda e riqueza?

Especialista em finanças públicas

Amir Khair, mestre em Finanças Públicas pela FGV-SP, é consultor. Foi secretário de Finanças da Prefeitura de São Paulo na gestão da prefeita Luiza Erundina (1989-1992). Atualmente é consultor na área fiscal, orçamentária e tributária.

Coordenou a elaboração do Manual de Orientação para Crescimento da Receita Própria Municipal da FGV-SP, sob o patrocínio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Elaborou o Guia de Orientação para as Prefeituras – Lei de Responsabilidade Fiscal do BNDES – e do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, em 2000.

Dentre os trabalhos que realizou, destacam-se as assessorias em gestão financeira nas prefeituras de Belo Horizonte, Salvador, Goiânia, Guarulhos, Ipatinga, Londrina, Angra dos Reis e Juiz de Fora e a criação de um sistema de acompanhamento de gestão fiscal para a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo.

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