Entrevista: Déficit em transações correntes não assusta o ex-ministro, conselheiro informal do governo Lula
A política cambial brasileira é um desastre, mas sua consequência mais imediata – o aumento do déficit em transações correntes – não assusta. O país pode crescer 7% ao ano com endividamento externo nos próximos cinco anos e, antes que se torne um problema, o déficit poderá ser resolvido com a entrada dos dólares oriundos das exportações do petróleo do pré-sal, que começarão a fluir a partir de 2015. O que assusta nesse cenário otimista de crescimento elevado são os efeitos do câmbio valorizado sobre a indústria nacional. Essa é a avaliação do economista Antônio Delfim Netto, professor emérito da Universidade de São Paulo (USP) e ex-ministro da Fazenda e do Planejamento.
O petróleo da camada do pré-sal, para Delfim, é a grande saída para evitar os dois entraves que “sempre limitaram nosso crescimento”: o déficit em conta corrente e a falta de energia. O pré-sal, no entanto, pode chegar atrasado. Graças ao câmbio valorizado, que, segundo ele, “está destruindo o que tínhamos de mais precioso, que era uma indústria extremamente sofisticada e diversificada”, a atividade industrial pode alcançar 2015 fragilizada.
Segundo Delfim, um dos conselheiros econômicos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e sua equipe, o governo agiu de maneira “razoavelmente correta”. A estratégia de fundir e fortalecer grandes grupos nacionais em diferentes setores por meio de operações financiadas pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) é acertada, diz Delfim. “Frequentemente ouvimos certas pessoas criticando essa estratégia com aquela história de que ‘o Estado escolhe os vencedores’. Fazem isso porque eles são perdedores, não foram escolhidos, como gostariam ser.”
Delfim reconhece que os investimentos públicos melhoraram um pouco, mas critica outros gastos do governo federal, como os aumentos dados ao funcionalismo público. “É muito mais fácil gastar em custeio que em investimento. Investimento dá trabalho. Precisa de projeto, administração. Custeio é uma alegria, distribui-se empregos, aumenta salário, algo que dá grande prestígio ao governo”, diz. Para ele, é preciso aproveitar as eleições de outubro deste ano para conscientizar a sociedade de que “existem limites físicos ao crescimento”, que para ocorrer no longo prazo prescinde de um consumo menos acelerado no presente. A seguir, os principais trechos da entrevista de Delfim Netto:
Valor: A crise mundial acabou?
Antonio Delfim Netto : O pior passou, mas temos resquícios, embora isso não signifique uma crise em forma de “W” ou “L”. O nível de atividade na economia real está com um sentimento de entusiasmo, porque voltou a crescer, mas continua um resíduo no sistema financeiro. Agora, o equilíbrio fiscal de alguns países, que tinham razoável equilíbrio antes da crise, piorou demais por causa da ação anticíclica feita no ano passado. O problema mais importante hoje é o risco que se estabeleceu sobre o euro. No fundo, na minha opinião, nenhum daqueles países mais enrascados, como Grécia, Espanha, Portugal ou Itália vai quebrar. Eles vão ter de fazer um ajuste que vai depender da política de cada país, da qualidade de sua administração, mas todos têm um interesse medonho de permanecer no euro. A questão é que esses países já estavam quebrados há muito tempo, mas não era algo visível, porque eles se beneficiavam do euro, que reduziu as taxas de juros dos papéis desses países dramaticamente. Em lugar de aproveitar os juros baixos da moeda única para melhorar sua situação fiscal, reduzindo sua dívida, eles continuaram em situações dramáticas. No caso da Espanha, você tem país robusto, grande, com investimentos externos importantes, mas com uma taxa de desemprego gigantesca e de composição crítica, porque ocorre na faixa entre 20 e 30 anos de idade.
Valor: A situação fiscal dos países europeus é a grande preocupação deste 2010?
Delfim : Todo mundo sempre imaginou que a Europa fosse uma área monetária ótima. Agora está provado que não é possível ter uma área monetária ótima sem ter um governo, sem uma política fiscal ou uma política monetária. Esses países abdicaram de seus poderes. Lá os presidentes e primeiro-ministros são como os prefeitos de regiões dentro de um só país. Os presidentes da Grécia, da Espanha, da Itália são prefeitos para administrar saúde, educação. Essa área monetária ótima para a qual estão caminhando na comunidade europeia chegou num ponto crítico. Bateram no teto. Daqui para frente, precisarão instituir um controle muito maior da parte fiscal dos países membros. Agora é um problema sério.
Valor: Há um ano, havia certo consenso de que o Estado deveria ampliar gastos e incorrer em déficits fiscais, se preciso, para estimular a economia. Hoje, o debate se dá quanto à retirada desses estímulos. O cenário mudou rapidamente?
Delfim : Quando se está em processo recessivo é natural que se use a política fiscal para reduzir os efeitos negativos. Mas é natural que se use a política fiscal no sentido correto. Ninguém propõe aumento de custeio. O ideal seria que cada país tivesse um estoque de projetos de infraestrutura com taxas de retorno baixas – porque se fossem altas o setor privado os faria – que poderia ser rolado pelo Estado num momento de crise. Quando termina a crise, a situação fiscal volta para o equilíbrio. Só que é muito mais fácil gastar em custeio que em investimento. Investimento dá trabalho. Precisa de projeto, administração. Custeio é uma alegria, distribui-se empregos, aumenta salário, algo que dá grande prestígio ao governo.
Valor: É o que tem acontecido no Brasil?
Delfim : Em parte é, mas no caso brasileiro houve um aumento do investimento um pouquinho maior do que as pessoas dizem. É claro que tudo isso é medido em relação ao PIB e essas medidas são terrivelmente enganosas, porque quando se diz que a despesa de custeio do governo está constante em 5% do PIB, as pessoas esquecem que o PIB está crescendo, então se ela permanece constante significa que a despesa aumentou também. É um truque impressionístico.
Valor: O estímulo do consumo foi a estratégia correta?
Delfim : Claro, mas o nível de consumo não cresceu em relação ao PIB, permanecendo constante na casa dos 65% do PIB mesmo depois das medidas. Essa foi uma medida anticíclica de verdade, porque ela vai terminar. Aumento de funcionalismo público não é medida anticíclica.
Valor: Mas isso também não aconteceu?
Delfim : Aconteceu. Acho o governo Lula com muitas virtudes, mas não é uma coisa perfeita. Como todo governo, tem suas idiossincrasias, suas preferências. É um Estado onde o sindicalismo tem um poder muito maior do que tinha, apesar da participação dos sindicatos ter diminuído. O verdadeiro trabalhador teme o sindicato. Mas tudo isso são pequenas coisas dentro de um grande projeto. É uma ilusão tentar diminuir o governo Lula, como é uma ilusão tentar diminuir o governo Fernando Henrique, que cometeu seus erros. Desde 1988 o país foi encontrando seu caminho com um sistema político organizado. Talvez seja o único país subdesenvolvido que não tem nenhum problema maior.
Valor: O que o sr. achou da ação do Banco Central no período?
Delfim : O governo entrou na crise no dia 16 de setembro de 2008 [um dia depois da falência do Lehman Brothers nos EUA]. Por quê? Porque o sistema bancário brasileiro não poderia ficar em tom de deselegância com o resto do mundo. O sistema bancário do mundo parou, o sistema bancário brasileiro tinha de parar também. O Banco Central poderia ter agido mais rapidamente, mas também há justificativas para seu conservadorismo. O funcionário do BC é um homem temeroso, porque está vendo aqueles que fizeram o Proer, que com custo de 3% do PIB higienizou o sistema bancário brasileiro, respondendo a processos do Ministério Público, com bens indisponíveis e tudo o mais. Isso assusta o funcionário. Como é que ele vai tomar risco, se não tem proteção? Acho que isso torna a ação do BC sempre lenta e homeopática.
Valor: O sr. percebe uma ressureição do consenso acerca do Estado grande?
Delfim : É preciso separar as coisas. Estado balofo é um equívoco. A economia de mercado não é o sistema financeiro. A economia de mercado é o sistema produtivo, a economia real. Esse foi vítima, tendo sido encoleirado pelo sistema financeiro, que deveria ser servo do sistema produtivo. Foi uma farra em que todo mundo ganhou e é visível que esse sistema não pode continuar sem um controle eficaz das operações financeiras. Mas isso nada tem a ver com o sistema produtivo. O Estado produtor é uma tragédia, mas Estado indutor é fundamental. Não há desenvolvimento econômico no mundo que não tenha sido feito sem o apoio de um Estado indutor. A maior ilusão é pensar que o desenvolvimento inglês, na revolução industrial, não tinha o Estado por trás. Os americanos então nem se fala. Algumas pessoas imaginam que os EUA sempre foram liberais. Não tem nada disso.
Valor: O sr. vê gente no governo defendendo o Estado balofo?
Delfim : Honestamente, não. É preciso distinguir o partido do governo. O PT tem isso no sangue, não adianta ficar com ilusão. É o Estado que convém ao estamento sindical. Não acredito que algum dos dois candidatos [do PT e do PSDB] tenha uma ideia de Estado balofo. Os dois, acredito, defendem um Estado indutor forte, mas isso nada tem a ver com o Estado cheio de funcionário público fingindo que está trabalhando.
Valor: A oposição critica o governo Lula por, segundo entende, promover um retorno do Estado interventor. O que o sr. acha?
Delfim : Nenhum tijolo do Minha Casa, Minha Vida foi feito pelo Estado. Tudo tem participação do setor privado. Este é o efeito típico do Estado indutor. É uma crítica indevida. O absurdo seria o Estado fazer as usinas de Santo Antônio e Jirau, mas o Estado criar condições para essas usinas é algo fundamental. Acho que o governo tem agido de maneira razoavelmente correta. Frequentemente ouvimos certas pessoas criticando o governo com aquela história de que “o Estado escolhe os vencedores”. Fazem isso porque eles são perdedores, não foram escolhidos, como gostariam ser.
Valor: O cenário pós-2010 é de continuidade?
Delfim : O Brasil é o ‘avant-garde’ do mundo. A situação brasileira melhorou muito mesmo, mas o Lula soube vender isso como ninguém, ele é um ótimo marqueteiro. É claro que os investidores estrangeiros enxergam o Brasil com muitos bons olhos e veem isso porque as perspectivas de crescimento são importantes e são reais.
Valor: O que o sr. mudaria?
Delfim : Estou velho demais para isso. Vejo o Brasil com grande otimismo. Temos todas as condições para engrenar um crescimento de 6% ou 7% ao ano. Com o crescimento populacional diminuindo, isso nos colocará numa situação muito interessante, com consciência ecológica e desenvolvimento dos combustíveis renováveis. O Brasil tem tudo para chegar na metade do século XXI como um país desenvolvido, democrático, um mercado interno com proporções extraordinárias e importante participação política no mundo. Não vejo nenhuma restrição. O pré-sal é uma garantia, que vai aparecer entre 2014 e 2015. Até lá o câmbio flutuante e as reservas que temos vão dar conta desse processo de endividamento nas transações correntes. Não vamos voltar a nos endividar nos níveis que nos endividamos no passado, quando ocorreram crises nos anos 80 e 90. Isso dá uma perspectiva nova para o nosso crescimento. O pré-sal é uma espécie de seguro contra os riscos do passado.
Valor: A aposta nesta década que se inicia deve ser o petróleo?
Delfim : O petróleo é século XX, temos de reservá-lo para seu uso mais nobre, que é a indústria química. O Brasil tem tudo para ser um participante extraordinário nisso. Sem o comércio exterior robusto, nenhuma indústria brasileira consegue a dimensão ótima. O comércio exterior é um complemento fundamental do mercado interno.
Valor: O que o sr. acha da queda na balança comercial, que sai de US$ 25 bilhões no ano passado para pouco acima de zero, como prevê o governo, neste ano?
Delfim : A política cambial brasileira é um desastre. É uma ilusão em um país pobre como o Brasil, cujo câmbio é um ativo financeiro manipulado por forças que ele não conhece, ficar defendendo a ideia de que é o mercado quem produz o equilíbrio cambial adequado. Essa ilusão é dirigida por esse mito do fundamentalismo mercadista de que a taxa de câmbio é um fenômeno natural, que intervir é um pecado capital, uma violação às leis divinas. O real valorizado está destruindo nossas cadeias produtivas. Isso está destruindo o que tínhamos de mais precioso, que era uma indústria extremamente sofisticada e diversificada. Nós temos que continuar insistindo na diversificação das exportações, no aperfeiçoamento dos ganhos de valor adicionado interno.
Valor: Como isso pode ser feito com câmbio valorizado?
Delfim: Fico espantado de ver as mesmas pessoas que diziam que o câmbio de R$ 1,60 era ruim, agora pedindo para o BC vender dólar a fim de evitar que a cotação alcance R$ 2,00. Sabe qual é a explicação disso? É que as mesmas experiências de derivativos tóxicos realizadas por empresas no período pré-crise estão sendo realizadas agora. Acho que o governo deveria explodi-los mesmo. Nós já fizemos o que podíamos fazer por eles. Daqui para frente é usar o regime iraquiano, que é a limpeza do sistema.
Valor: Das empresas que operam com derivativos de câmbio?
Delfim : O hedge é a coisa mais perfeita que existe. Mas quem usou hedge para especular com a cotação não pode continuar. Não tem nenhuma importância, o patrimônio está aí. Arranja-se um comprador, o BNDES dá um dinheiro, substitui-se a gestão e pronto, melhora.
Valor: A China, com seu câmbio desvalorizado praticamente fixo ao dólar, é um exemplo?
Delfim : Não, e, aliás, do jeito que está, se a China não fechar um acordo razoável de valorização de sua moeda veremos aumento do protecionismo e redução do movimento de capitais. Só um país descerebrado pode pensar que o yuan [a moeda chinesa] vai ser uma moeda internacional. Moeda é confiança. Quem confia no Partido Comunista chinês? Nem os comunistas confiam.
Valor: O que o sr. acha dos candidatos a presidente?
Delfim : A gente só vai julgar os candidatos com seus programas. A coisa mais fundamental é chamar a atenção dos eleitores para um debate novo. Há uns candidatos que chamo de “vendedor de óleo de cobra”, que era aquele sujeito do Velho Oeste que vendia uma solução para qualquer problema, de unha do pé encravada a tumor cerebral. Tem outros que vão vender as coisas possíveis. Temos de insistir em determinados assuntos. O eleitor precisa entender que existem sim limites físicos que não são manipuláveis por nenhum vendedor de óleo de cobra. Que crescimento rápido hoje exige menor consumo. Aumento do consumo hoje significa redução do crescimento amanhã. Portanto, por maior que seja o desejo de redistribuir e crescer, existe um limite físico para isso.
Valor: Algum candidato vai defender consumo menor?
Delfim : Essa é a tarefa da mídia. Não é o candidato que vai dizer isso – embora espere que digam.
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