Desconheço como anda a formação dos militares brasileiros, mas sei que a Escola Superior de Guerra, por exemplo, tem se aberto a ouvir diferentes pontos de vista sobre a realidade do país. O dirigente do MST, João Pedro Stédile, já fez palestra na ESG sobre a questão da reforma agrária, assim como o deputado federal Aldo Rebelo, do PCdoB, partido combatido diretamente pelo Exército durante a guerrilha do Araguaia, nos anos 70.
Essa abertura, digamos assim, poderia levar os próprios militares a encabeçarem um movimento pelo esclarecimento dos abusos cometidos durante a ditadura, de 1964 a 1985. O interesse de limpar a imagem das Forças Armadas compete, primeiramente, a seus próprios integrantes. Os torturadores não foram só militares, vide o delegado Sérgio Fleury e outros notórios conhecidos, assim como o golpe de 64 também não foi exclusivamente militar, com forte e importante participação de segmentos civis.
As Forças Armadas costumam ser respeitadas em seus países até o momento em que agem contra seu próprio povo. Os militares brasileiros têm uma tradição de lutas importantes, como pela abolição da escravatura, pela república e contra as oligarquias que dominaram esta mesma república em seus primeiros períodos. O seu grande passo em falso foi o golpe de 64, mas mesmo que não o reconheçam como tal, deveriam condenar seus pecados, como a imperdoável tortura, em nome da recuperação da sua credibilidade.
Se os velhos generais já não ousam fazer isso, a iniciativa deveria caber ao jovem oficialato, mais arejado, que nada têm a ver com as manchas do passado. Ou melhor, só não terá mesmo a ver se as enfrentar de frente e tratar de removê-las da história das Forças Armadas brasileiras.
Nos anos 20, os jovens oficiais brasileiros se rebelaram contra as oligarquias da República Velha e protagonizaram momentos importantes da nossa história, como o levante do Forte de Copacabana, as revoltas militares do Rio Grande do Sul e de São Paulo e a Coluna Prestes, que marchou durante mais de dois anos pelo país sem jamais ser derrotada pelas forças conservadoras.
Os jovens militares daquela época lutavam por reforma constitucional, pelo voto secreto, contra a corrupção, enfim pelos anseios das camadas urbanas brasileiras que já não aceitavam as práticas políticas arcaicas da República Velha ruralista. Estavam sintonizados com a população e dispostos a se sacrificar por ela.
O verdadeiro Exército brasileiro é também o do general Lott, o soldado absoluto, o poderoso ministro da Guerra de JK, que jamais usou tal poder além dos estritos limites de sua função. Lott evitou um golpe de Estado no Brasil, em 1955, tramado pelas mesmas forças que em 1964 se aliariam aos militares para promovê-lo. Em 1961, na renúncia de Jânio, Lott reforçou sua postura legalista ao ser preso por defender a posse do vice-presidente João Goulart.
No livro “O dia em que Getúlio matou Allende”, Flávio Tavares conta uma história jamais comprovada e nunca desmentida que se ajusta aos princípios éticos de Lott. “Ao saber que seu neto Nelson, membro da resistência à ditadura tinha sido preso e torturado quase à morte, Lott vestiu a velha farda de general, armou-se com a pistola regulamentar e foi ao quartel da Polícia do Exército, na rua Barão de Mesquita, no Rio. Lá, abordou o major torturador-chefe, o chamou de “indigno de envergar a farda” e deu-lhe um tiro na frente da oficialidade. O torturador teria morrido no ato. Recolocou a pistola no coldre e retirou-se do quartel sem que ninguém se animasse a interromper-lhe o passo. Para evitar revelar a dimensão da tortura às próprias Forças Armadas, o caso teria sido abafado.”
A prática da tortura por integrantes das Forças Armadas e/ou com o conhecimento destas é uma traição à memória de Lott. Em seu nome e no dos inspiradores do tenentismo, os jovens oficiais precisam lutar por revelar essa história de vez, com a identificação de todos os envolvidos.
Mair Pena Neto
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