sábado, fevereiro 27, 2010

Crise abalou a ideologia do FMI, diz Paulo Nogueira Batista Jr.

O Fundo Monetário Internacional (FMI) está mudando. Depois de publicar um estudo que ataca um de seus principais dogmas, as metas de inflação muito baixas, agora é a vez de economistas da instituição darem uma guinada em antiga posição do Fundo: um novo estudo sugere que os países recorram a controles de fluxos de capital para frear a vasta movimentação de recursos e evitar o surgimento de bolhas financeiras no futuro.
Um FMI heterodoxo, crítico de recomendações tidas antes como modelares? “Não iria tão longe, mas há uma mudança de paradigmas em curso”, afirma ao iG, de Washington, o economista Paulo Nogueira Batista Jr., diretor-executivo no FMI para o Brasil e mais oito países da nossa região.

Segundo o diretor, vários fatores explicam a mudança de rota na visão do Fundo, mas a crise financeira internacional dos últimos dois anos foi o seu principal motor. “Por ter seu epicentro nos países desenvolvidos, essa crise abalou profundamente as certezas existentes sobre um certo receituário”, diz Nogueira Batista.

Crítico desse receituário, o professor licenciado da Fundação Getulio Vargas de São Paulo aproveita para ironizar o impacto das mudanças entre analistas brasileiros: “Isso facilita a aceitação de medidas que o Brasil tomou e possa vir a tomar. Afinal, em muitos meios influentes no País, tudo o que é feito e dito em inglês logo assume ares de sabedoria”.

iG: O FMI acaba de publicar dois trabalhos que sugerem mudanças significativas nas análises e recomendações da instituição. Embora haja uma observação expressa nos dois estudos, a de que eles não necessariamente representam a opinião da direção da instituição, é possível dizer que o Fundo está mudando?

Paulo Nogueira Batista Jr.: A ressalva de que o trabalho não representa a visão da instituição é mais ou menos padrão. Mas convém lembrar que os dois documentos foram publicados e amplamente divulgados pelo próprio Fundo. Foram feitos por economistas da casa, entre os quais o economista-chefe Olivier Blanchard. Por isso têm um caráter significativo de mudança. Não é como se fosse apenas um estudo do Blanchard, há um peso da instituição aí.

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iG: Mudança para um FMI heterodoxo?

Paulo Nogueira: Eu não iria tão longe. Mas diria que há uma certa mudança de paradigmas. Parece existir agora uma disposição de rever e até mesmo abandonar algumas ortodoxias antigas e arraigadas, que vinham sendo criticadas pelo Brasil e por outros países em desenvolvimento.

iG: As mudanças decorrem das críticas ou da crise?

Paulo Nogueira: São vários fatores. Primeiro é preciso reconhecer a atuação do próprio Dominique Strauss-Kahn (desde 2007 o diretor-geral do FMI), que tem trabalhado para mover a instituição de uma maneira mais eclética. Outro fator é a atuação dos países em desenvolvimento, como o Brasil, não só para as críticas que fizeram ao Fundo como para as políticas que adotaram de forma bem-sucedida. Mas, sem dúvida nenhuma, o mais importante para essa mudança nas análises e recomendações foi a crise financeira dos últimos dois anos.

Por ter seu epicentro nos países desenvolvidos, essa crise abalou profundamente as certezas existentes sobre um certo receituário. Abalou as estruturas ideológicas e hegemônicas não só no Fundo, como nos governos, na imprensa e nos meios acadêmicos. Digamos, todo o mainstream economics foi abalado. Obviamente isso afetou o FMI, que era parte desse esquema mais amplo. Daí o aggiornamento que o Fundo está fazendo.

iG: Mas, em geral, o mundo rico e organismos internacionais como o FMI sempre pregaram para os países em desenvolvimento algo diferente do que as nações desenvolvidas fizeram. Pelo menos é o que dizem analistas como Ha-Joon Chang num livro que se tornou célebre, o “Kicking Away the Ladder” (na edição brasileira, Chutando a escada). Com a crise tendo o epicentro no mundo desenvolvido, essa mudança não significa apenas que o foco das recomendações mudou?

Paulo Nogueira: É verdade que o estudo do Olivier Blanchard (Repensando a política macroeconômica) diz respeito mais aos países desenvolvidos. Não que tenha comentários relevantes para os países em desenvolvimento. Mas o sentido importante da mudança é que esses estudos estão fazendo críticas às políticas do centro, que eram consideradas modelares para os países em desenvolvimento. Criticam, por exemplo, políticas financeiras que foram um fracasso retumbante nos Estados Unidos e na Europa. Eram consideradas o melhor caminho a serem seguidas pelos outros. A sorte é que nunca embarcamos inteiramente nessas ideias. Embarcamos em parte, em alguns períodos mais do que outros.

iG: Por exemplo?

Paulo Nogueira: Em determinados momentos o Brasil aderiu mais às ideias que hoje o Fundo começa a criticar: no governo Collor, na maior parte do governo Fernando Henrique, no primeiro mandato do presidente Lula.

iG: Qual o momento da mudança de direção no governo Lula?

Paulo Nogueira: Foi com a saída do ministro Antonio Palocci do Ministério da Fazenda, a entrada do ministro Guido Mantega, o lançamento do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) e uma certa flexibilização da política do Banco Central no segundo mandato, que ocorreu apesar de não ter havido mudança completa na direção do banco. Aliás, o Banco Central nunca abandonou totalmente os instrumentos regulatórios.

Nossa regulação de supervisão do sistema financeiro, no geral, foi melhor que nos países desenvolvidos, o que nos ajudou no enfrentamento da crise internacional. Mas também é possível dizer que nosso sistema financeiro não teve tempo de embarcar em todas as maluquices que americanos e europeus estavam fazendo (risos). Talvez se tivessem tido mais tempo seguiríamos as maluquices também.

iG: Como diretor-executivo do FMI, o senhor participa das discussões internas sobre essas análises e recomendações. Internamente há mesmo um ambiente de mudança?

Paulo Nogueira: Essas ideias que estão presentes nos dois estudos publicados agora foram debatidas constantemente na diretoria nos últimos dois anos. Foram temas recorrentes, mesmo antes da chegada do Olivier Blanchard.

iG: Há divisões internas?

Paulo Nogueira: Não há uma divisão mecânica simples, mas de maneira geral os mais apegados ao receituário que agora está sendo revisto eram os países desenvolvidos. Mas, como se vê, eles estão perdendo o debate.

iG: Uma mudança maior no FMI diz respeito à alteração no sistema de distribuição de poder decisório. No fim do ano passado, Brasil, China, Índia e Rússia obtiveram o direito de veto sobre as principais decisões do NAB (sigla, em inglês, para New Arrangements to Borrow, ou Novos Acordos de Empréstimos, destinado a suplementar as cotas de financiamento do Fundo). Mas esse debate ainda está indefinido. Caminhará de fato para um fortalecimento da participação dos países em desenvolvimento nas decisões da instituição?

Paulo Nogueira: O primeiro passo para isso foi dado na reforma de 2008, que desconcentrou o poder decisório e aumentou o peso dos países em desenvolvimento. Outras reformas importantes também já ocorreram, em relação a empréstimos e condicionalidades. Essas mudanças foram feitas em grande parte por iniciativa e influência do Brasil. A reforma de 2008 ainda precisa de ratificação parlamentar. A ratificação já passou na Câmara, mas ainda não no Senado. Esse é um passo inicial. Mas a reforma mais importante é agora.

iG: A reforma das cotas do FMI?

Paulo Nogueira: Essa reforma do peso dos votos de cada país ou grupos de países é, sem dúvida, a mais importante e mais difícil. Os acordos no âmbito do G-20 definiram o prazo de janeiro de 2011 para a conclusão da reforma. Nosso objetivo é que ela seja significativa e provoque um realinhamento das cotas do Fundo. A grande disputa é entre os países emergentes, em especial Brasil, China e Índia, contra europeus, que quase sempre estão sobrerepresentados, com algumas exceções. Para você ter uma ideia, a União Europeia tem mais de 1/3 dos votos, mas o seu peso no Produto Interno Bruto mundial é um pouco mais de 20%. A Europa tem de reduzir seu peso, encolher para abrir espaço aos países emergentes. EUA e Japão têm peso mais ou menos semelhante ao peso deles no PIB mundial.

iG: Americanos e japoneses apoiam a redistribuição de poder de voto no FMI?

Paulo Nogueira: Apoiam. Até porque não têm muito medo de perder poder. O medo é entre os europeus.

iG: Os dois estudos tratam de temas-tabus, o questionamento de metas de inflação muito baixas e o controle no fluxo de capitais. Como o senhor analisa a relação do Brasil com esses dois temas?

Paulo Nogueira: O Brasil tem certa experiência de controle de capital. Fez nos anos 70, nos anos 90 e agora, durante a crise, fez de novo. A nossa experiência não é ruim. Desde o fim do governo Sarney (1985-1990), a onda predominante foi de liberalização da conta de capitais. Isso vingou nos governos Collor, Fernando Henrique e primeiro mandato de Lula. Isso começou a mudar no segundo mandato de Lula. Aí o Brasil começou a ter uma preocupação maior com os controles de capital. No caso da inflação, em 2007, quando cheguei aqui, o FMI recomendava que o Brasil reduzisse a meta de inflação e estreitasse o intervalo de confiança.

O Ministério da Fazenda não aceitou a sugestão (a meta de inflação permanece até hoje no nível em que estava na época: 4,5%, com intervalo de dois pontos percentuais, para mais ou para menos, em torno do centro da meta. A maioria dos principais países tem meta de 2% como alvo da política monetária). O Brasil também foi criticado por alguns diretores que diziam que o Banco Central estava comprando muitos dólares nas suas intervenções no mercado de câmbio e que o acúmulo de reservas internacionais era exagerado, tinha custos fiscais muito altos. A crise mostrou que não estavam certos.

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