quinta-feira, julho 26, 2007

Plano piloto

Para historiador, Congonhas é símbolo de uma urbanização imitada dos EUA, que determinou a deterioração das metrópoles

ERNANE GUIMARÃES NETO
DA REDAÇÃO

Inaugurado em 1936, Congonhas ultrapassou o pioneiro Campo de Marte (1920) em volume de passageiros num período em que ainda ficava distante do centro de São Paulo; mas o centro da cidade migrou para mais perto dele.
Aeroporto de maior movimento no país, incrustado numa região de alta densidade populacional, ele pode ser mais do que uma vítima de um crescimento urbano desordenado: para o historiador Nicolau Sevcenko, Congonhas é o símbolo de um projeto de modernização malsucedido.
"O que redefiniu o papel de Congonhas, em grande parte, foi uma mudança na concepção urbanística ocorrida depois da Segunda Guerra Mundial", disse em entrevista à Folha o professor da USP, que associa a extenuação do aeroporto à desvalorização dos transportes ferroviários no Brasil.




FOLHA - Durante a ampliação de Congonhas nos anos 50, o Pavilhão de Autoridades foi inaugurado em 1954, antes do Terminal de Passageiros (inaugurado em 1955 e concluído em 1959) e antes da conclusão das obras nas pistas (1955). Dá para fazer um paralelo entre esse fato e a forma como pensamos as obras públicas hoje?
NICOLAU SEVCENKO - Essa formulação serve como análise cristalina do processo, desde seu início até o que assistimos hoje, de quanto esse modelo tem assumido a feição cosmética de construir a cidade como espetáculo, como vitrine, numa situação em que o conjunto dos problemas fica escondido, camuflado.
O que prevalece é a ostentação, a especulação, a corrupção e a exclusão.

FOLHA - O aeroporto de Congonhas surgiu como símbolo de sofisticação e desenvolvimento de uma cidade que se reafirmava, pouco depois da Revolução Constitucionalista; hoje, tornou-se um monstro trágico no meio da urbe?
SEVCENKO - Em princípio, acho que não; mas qualquer pessoa pode entender que o que aconteceu agora é um descalabro provocado por uma situação de incompetência da administração presente.
Criou-se tal mazorca no sistema de tráfego aéreo brasileiro que, tendo acontecido o que aconteceu, em escala tão catastrófica, todo mundo haverá de concordar -mesmo aqueles que resistiam- que, nas condições em que Congonhas tem operado, não poderá continuar.
Algo terá de ser mudado em grande escala, e muito rapidamente.
É terrível dizer que a gente possa aprender com uma calamidade dessa, mas vamos ter de tirar alguma lição.
A primeira, e mais urgente, é redimensionar o sentido de Congonhas dentro da cidade, no contexto do tráfego aéreo de São Paulo e do país.

FOLHA - Comparando a evolução da cidade à evolução do aeroporto, já era de esperar essa crise aérea desde quando?
SEVCENKO - Precisamos pensar numa escala histórica mais ampla e complexa. Quando o aeroporto foi projetado e construído, era uma região relativamente afastada. Não tinha esse impacto urbano e ambiental que passou a ter.
O que redefiniu o papel de Congonhas, em boa parte, foi a mudança na concepção urbanística ocorrida no pós-guerra. Foi o grande divisor de águas na relação entre cidade e aeroporto: a mudança na política urbanística dos EUA no pós-guerra.

FOLHA - O que caracteriza essa mudança?
SEVCENKO - O governo dos EUA deu-se conta de que era extremamente fácil destruir uma malha rodoviária, paralisando um país que dependesse de ferrovias. Os bombardeiros americanos rapidamente neutralizaram a malha ferroviária alemã.
O desafio eram as "autobahns", rodovias de alta velocidade construídas no contexto da guerra, que eram as artérias pelas quais circulava a economia. Depois da guerra, os EUA mudaram sua política, promovendo uma desurbanização: cidades são vulneráveis, estradas de ferro são vulneráveis.
O projeto americano foi desinvestir na cidade e conectar os subúrbios por grandes vias expressas, ligadas a redes de aeroportos. Só populações pobres seriam largadas nas cidades; empresas também seriam redistribuídas, para evitar pólos industriais vulneráveis.

FOLHA - A ampliação de Congonhas na década de 1950 seguiria essa lógica?
SEVCENKO - Como os EUA emergiram da guerra como a economia vitoriosa, mais próspera, vitrine da sociedade do consumo, o conceito de "modernização" se confundiu com "americanização". Americanização era priorizar o transporte rodoviário e o aeroviário em detrimento do ferroviário.
E "suburbanização" é o que se vê no modo como, no final dos anos 40 e nos anos 50 e 60, há um processo de reconfigurar o desenho urbano em razão da zona sul, do parque Ibirapuera.
O parque é coligado ao eixo de vias expressas, que se liga diretamente ao aeroporto. A avenida 23 de Maio faz um ângulo monumental com a Nove de Julho, que não por acaso tem como pináculo simbólico o Obelisco e o Monumento às Bandeiras [de Victor Brecheret].
São Paulo voltou-se completamente para esse lado, para essa simbologia da modernidade, que é o Ibirapuera com o Museu de Arte Moderna (MAM) e o pavilhão da Bienal, vitrines da modernidade.
Coisa semelhante acontece em Belo Horizonte: o parque da Pampulha, o Museu de Arte da Pampulha e a via expressa em conexão com o aeroporto.
A mesma coisa no Rio, com o parque do Flamengo, o MAM, a via expressa e a conexão com o aeroporto Santos Dumont.
Nem precisamos falar de Brasília, que nasceu sob o signo do avião: o Plano Piloto é um avião e a cidade a princípio só era acessível por avião.

FOLHA - Essa valorização do entorno do aeroporto foi acompanhada pela construção de prédios...
SEVCENKO - Essa imitação colonialista de uma situação típica dos EUA -pois não havia o temor de bombardeio aéreo no Brasil-, incorporada por elites que queriam ser modernas sendo americanizadas, trouxe seqüelas que até hoje são responsáveis pela maneira como esta cidade é completamente caótica e amarrada.
Em particular, implicou no desinvestimento no transporte ferroviário e sua estrutura urbanizada, o metrô.

FOLHA - Nos anos 60, o aeroporto de Congonhas era ponto de encontro e lazer -ia-se ao restaurante ver pousos e decolagens. O aeroporto, com sua arquitetura art déco/futurista ao gosto da classe média, é sintoma da preponderância do símbolo de status sobre a funcionalidade?
SEVCENKO - Exatamente. Isso prejudicou a economia, pois se optou por dois sistemas mais onerosos que o ferroviário.
Essa é a diferença entre por que é tão caótico, dramático viajar nos EUA e por que é tão agradável e simples viajar pela Europa: porque a malha ferroviária foi preservada, e o investimento na redistribuição do transporte de massa em redes de metrô tornou a situação praticamente equacionada.
Os EUA hoje lutam desesperadamente para reverter os erros cometidos, numa política, que vem desde os anos 80, de revalorizar o centro histórico das cidades, atrair novamente a população aos centros urbanos, como ocorre em Nova York, Boston, Chicago e Baltimore.
Talvez precisássemos de um desastre dessa escala colossal para que se comece a repensar o conjunto de enganos desse modelo que pune o país dos pontos de vista econômico, social e da qualidade de vida da população.

FOLHA - Pelo movimento histórico, diria que as sociedades paulista e brasileira estejam amadurecendo para perceber essa situação?
SEVCENKO - Acredito que não. São situações de choque, como as duas calamidades sucessivas [as quedas do Airbus-A320 da TAM, na terça, e do Boeing da Gol, em setembro passado] e o quadro de descalabro clamoroso, que talvez se comece a pensar em alternativas.
Porque, até então, isso não estava no debate público.

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