segunda-feira, agosto 13, 2007

Mercados nervosos, analistas neuróticos

Segunda, 13 de agosto de 2007, 11h21


Luiz Gonzaga Belluzzo






As alterações ocorridas ao longo das três últimas décadas na estrutura da riqueza capitalista e na operação dos mercados financeiros tornaram mais complexa a trajetória das economias e mais contraditória a gestão dos Bancos Centrais. O maior peso da riqueza financeira na riqueza total foi acompanhado pela concentração crescente da massa de ativos mobiliários sob controle "coletivista" dos fundos mútuos, fundos de pensão e fundos de hedge. Os administradores desses fundos ganharam poder na definição de estratégias de utilização da "poupança" e do crédito. A abertura das contas de capital suscitou a disseminação dos regimes de taxas flutuantes e o crescimento dos instrumentos de hedge, diante da volatilidade das taxas de juros e câmbio. A "securitização" dos empréstimos bancários e o uso intenso dos derivativos ampliaram, para o bem e para o mal, o papel das flutuações da liquidez no desempenho dos mercados financeiros. As agências de classificação de risco passam a se envolver com os "classificados", prestando serviços de aconselhamento e propaganda, ao mesmo tempo em que pretendem exercer o papel de tribunais com legitimidade para julgar a qualidade dos ativos.
Na década dos 80, a ampliação dos mercados de capitais, ao estimular a colocação direta de papéis de dívida, capturou as empresas mais fortes e mais bem reputadas, deixando para os bancos a clientela de maior risco, empresas mais frágeis e consumidores insaciáveis. Esses mercados teriam a virtude de combinar as vantagens da melhor circulação das informações, da redução dos custos de transação e da distribuição mais racional do risco.

Nos anos 90, para enfrentar a parada dura, os bancos foram à luta: reivindicaram e conseguiram se transformar num supermercado financeiro, terminando a separação das funções entre os bancos comerciais, de investimento e instituições encarregadas do crédito hipotecário, imposta pelo Glass-Steagall Act na crise bancária dos anos 30. Buscaram escapar das regras prudenciais, promovendo a securitização dos créditos. Tangidos pelas forças da concorrência, deram início a um intenso e ainda não encerrado processo de concentração bancária e de expansão internacional.

Apesar de todos os avanços nas técnicas de gestão do risco e do maior rigor imposto pelas regras da Basiléia, o ímpeto da concorrência levou o sistema bancário internacional à incessante violação de todas as normas e à velha e fatal combinação entre euforia, má avaliação dos créditos, concentração setorial de ativos e super-alavancagem. As relações promíscuas e perigosas entre os bancos e os fundos de hedge revelam que as regras da Basiléia foram contornadas facilmente. A enorme concentração nos ativos baseados em créditos hipotecários revela que diversificação do risco é um conto do Barão de Munchausen.

Diga-se que o establishment financeiro americano jamais se conformou com a regulamentação imposta aos bancos e demais instituições não-bancárias pelo Glass-Steagall Act no início dos anos 30. Foi também grande a resistência dos negócios do dinheiro às propostas de Keynes e de Dexter White para a adoção de controles sobre os movimentos de capitais nas reformas do sistema monetário internacional do pós-guerra. Ainda assim, nos sistemas monetários e financeiros constituídos depois da Segunda Guerra mundial, o clima favorável à manutenção do pleno-emprego e às políticas de desenvolvimento permitiu que o pêndulo se inclinasse, durante um bom tempo, para a presença importante dos bancos públicos, para o controle e direcionamento do crédito, bem como para a regulamentação e separação entre as instituições financeiras, com o propósito de impedir o envolvimento dos bancos comerciais com o financiamento de posições especulativas nas bolsas e nos mercados imobiliários.

As turbulências que atormentaram os mercados na semana passada fizeram retornar à pauta do debate econômico o papel dos "fundamentos" na eclosão das crises financeiras. Os economistas do "mercado" invocam os fundamentos quando os surtos especulativos ameaçam sair fora do controle, assim como minha avó materna recorria a Santa Bárbara quando desabavam as tempestades. Devo registrar que Santa Bárbara cumpriu seu papel: enquanto dona Hermelinda rezava, raios e trovões estouravam bem longe da casa. Já os ditos "fundamentos" estão devendo.

O saber convencional proclama outra vulgaridade, decorrente da anterior. Proclama que o crescimento continua sólido e que, portanto, a crise financeira não passa de um episódio temporário. Os estudiosos mais respeitados dos ciclos econômicos sustentam que no capitalismo as crises são produzidas pelo crescimento. Não há notícia de crises permanentes, nem de expansões exuberantes intermináveis. Mas a duração das fases dos ciclos econômicos - tanto as de expansão quanto as de ajustamento - pode ser bastante longa.

A crise japonesa do início dos anos 90 durou praticamente dez anos. A longa purgação não deve ser atribuída apenas à inabilidade dos policy markers. Resultou, sobretudo, dos excessos cometidos durante o período de euforia na bolsa de valores e nos mercados imobiliários.

Nas últimas semanas, analistas e palpiteiros de todos os matizes e tendências invocaram os estudos economista americano Hyman Minsky sobre o ciclo financeiro. Considerado um heterodoxo, o keynesiano Minsky formulou hipóteses sobre a formação de preços de ativos nas economias monetárias em que a liquidez pode, a qualquer momento, se tornar restrita.

A liquidez não é uma propriedade intrínseca de qualquer ativo particular, mas é gerada pela dinâmica competitiva numa economia monetária. Tomadas em condições de incerteza, as decisões privadas não conseguem escapar da compulsão de ganhar a dianteira e bater o concorrente. Trata-se, portanto, de um fenômeno sistêmico, no sentido de que é resultado de um ambiente em que as decisões estratégicas dos protagonistas são miméticas. Estão precariamente apoiadas em expectativas a respeito das expectativas dos demais.

As expectativas de valorização de ativos cuja oferta é relativamente rígida, provoca, de fato, uma "explosão" de preços cuja continuidade é sustentada pela expansão e concentração do crédito na busca desaçaimada dos ativos de maior valorização esperada. A confirmação dos ganhos de capital antecipados reforça a febre especulativa e estimula as famílias, as empresas, os bancos e demais intermediários, com posições próprias, a aumentar o seu grau de "alavancagem" nos mercados de ativos - financeiros instrumentais e imobiliários - favorecendo a progressão do surto "inflacionário".

Nesse clima, é inevitável o rebaixamento dos critérios de concessão de crédito. Os bancos e demais intermediários financeiros, na medida em que as projeções otimistas se confirmavam, lançaram-se à cata de novos clientes. Passaram a inchar suas carteiras de ativos com dívidas de empreendimentos mais arriscados, cuja recuperação estará seriamente ameaçada.

Depois da Grande Depressão dos anos 30 do século passado, as políticas monetárias e fiscais anti-cíclicas inspiradas no keynesianismo cumpriram o que prometiam, ou seja, sustar a recorrência de crises de deflação de ativos e de "desvalorização do capital". A reiteração de intervenções de última instância dos bancos centrais e a geração de déficits fiscais - ao aumentar a dívida pública de "boa qualidade" - impediram a desvalorização da riqueza já existente e ampliaram o peso dos ativos financeiros na riqueza total.

Constitui-se uma nova agenda de convenções antitética àquela que imperou entre o final do século XIX e a Grande Depressão. Criou-se, na verdade, uma situação de "moral hazard" permanente: seja qual for a intensidade do porre de otimismo, os bancos centrais vão interferir para curar a ressaca. Os mercados cultivam a percepção de que as perdas devem ser limitadas.

Assim, as ações de estabilização do Estado Keynesiano favoreceram avanço do processo de "securitização" e de desregulamentação dos mercados. As técnicas de securitização de créditos bancários, o uso de derivativos e a intensa informatização dos mercados permitiram ampliar o volume de transações. Essas massas de capital líquido estão concentradas sob o comando de grandes investidores institucionais. São fundos de pensão, fundos mútuos e - o último rebento da finança moderna - os fundos de hedge que, operando em várias praças financeiras, usam intensamente o crédito bancário para "alavancar" posições em ativos.

Os episódios de euforia global e liquidez excessiva terminariam em "crashes" espetaculares não fossem as intervenções de última instância dos bancos centrais mais poderosos no centro do sistema monetário internacional.

Até agora as políticas monetárias e os arranjos cambiais têm conseguido promover a "fuga para frente" no afã de manter sob controle os Mercados da Riqueza e, ao mesmo tempo, sustentar as taxas de crescimento da economia global.

Nos últimos anos, houve redução da volatilidade nos preços dos ativos e das moedas e maior liquidez para os mercados, ensejando um elevado grau de "alavancagem" das posições assumidas por todos os protagonistas do mercado, desde os consumidores até os hedge funds. Quando os agentes são surpreendidos por movimentos bruscos e não antecipados de preços, as perdas estimadas obrigam à liquidação de posições para cobertura de margem, ampliando desmesuradamente os riscos de mercado, de crédito e de liquidez.

A expectativa de uma queda dos preços dos ativos subjacentes geralmente dá origem a um forte desequilíbrio entre posições compradas e vendidas, o que espreme a liquidez dos mercados. Os bancos, se envolvidos no financiamento de posições nos mercados de "securities", são obrigados a contrair o crédito. Esse movimento defensivo agrava a crise de liquidez, atingindo o conjunto da economia, inclusive as empresas e os setores que apresentam balanços saudáveis e baixa alavancagem.

Desencadeia-se a crise de pagamentos. Operando num regime de reservas fracionárias, os bancos comerciais desfrutam de uma condição peculiar em relação ao demais intermediários financeiros: a prerrogativa de criar moeda e, assim, multiplicar depósitos, isto é, passivos bancários que se convertem em meios de pagamento. Estes depósitos são, portanto, dinheiro e podem ser movimentados por seus titulares com o propósito de adquirir bens e serviços ou pagar compromissos.

A rede de pagamentos formada pelo sistema bancário é crucial para o funcionamento adequado dos mercados financeiros. Ela se constitui na infra-estrutura que facilita o "clearing" e a liquidação de operações entre os protagonistas da economia monetária. Dificuldades nessas instituições, que estão na base do sistema de provimento de liquidez e de pagamentos, se transformam inevitavelmente em dificuldades para o conjunto da economia. Na ausência de socorro tempestivo oferecido por um emprestador de última instância a propagação do pânico leva inexoravelmente à contração do crédito, à ruptura do sistema de pagamentos e à corrida bancária. As autoridades monetárias, representando o interesse coletivo, não podem deixar que prosperem e se aprofundem o processo de contágio, a deflação de ativos e a contração do crédito. É necessário que os bancos centrais estejam dispostos, nestas circunstâncias, a prover abundante liquidez para os mercados em crise.

O trauma num destes mercados tem enorme potencial de contaminação, provocando, em geral, fugas para moedas e ativos considerados de melhor reputação e qualidade. A crise de liquidez rebate pesadamente sobre a solvência dos emissores de ativos de maior risco. Os bancos, financiadores "finais" de posições nestes ativos depreciados, terão que digerir as perdas e, para tanto, vão tentar recompor seus níveis de capitalização e de liquidez, restringindo a oferta de crédito para outros agentes, inclusive aqueles mais bem situados no ranking de avaliação de riscos. Exemplo disso foi a espetacular subida de 400 a 1.000 pontos básicos, nos spreads cobrados às empresas americanas, após os episódios da Rússia, do ataque ao Brasil e da quebra do LTCM.

O hedge fund americano havia apostado, com elevada alavancagem, numa convergência de preços entre papéis de países emergentes e os títulos do Tesouro americano. A crise russa contrariou as previsões dos sabichões: os spreads se ampliaram. Foi pronta a intervenção do Federal Reserve. A atuação do Fed buscou evitar que uma situação marcada pela emergência de risco sistêmico culminasse na eclosão de uma crise sistêmica.

Há dúvidas quanto à natureza da crise atual. Os especialistas divergem: liquidez ou insolvência? O Federal Reserve, o Banco Central Europeu e o Banco do Japão injetaram rapidamente dinheiro no mercado interbancário com o propósito de estancar a contração da liquidez.

No entanto, o desfecho das manobras dos bancos centrais está condicionado às alterações no "estado de expectativas" dos possuidores de riqueza. Keynes no Treatise on Money considerava fundamental para o sucesso da política monetária a divisão de opiniões entre altistas e baixistas. Na Teoria Geral esse fenômeno encontrou uma definição mais precisa no conceito de preferência pela liquidez.

Isto significa que, quando a opinião dos mercados está equilibradamente dividida entre os que apostam na elevação dos preços dos títulos e os que acreditam na sua queda, os mercados funcionam suavemente e não ocorrem alterações capazes de perturbar a trajetória da economia. Se, ao contrário, as opiniões se concentram numa só direção, a ação do banco central tem grande chance de fracassar. Na fase eufórica do ciclo de crédito, as opiniões se concentram na ala "otimista", os bulls comandam a manada. Uma vez deflagrada a "reversão de expectativas", as opiniões do mercado tendem a se concentrar em torno de uma posição "baixista". Nessa situação, a tentativa de injetar a liquidez nos mercados interbancários pode não funcionar. Se o grau de desconfiança e de pessimismo for elevado, os mercados reagirão negativamente. A descrença dará curso à queda de preços dos ativos e, certamente, provocará uma forte contração do crédito.




Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular aposentado da Unicamp, consultor editorial da revista Carta Capital e vencedor do prêmio Juca Pato em 2005.
Terra Magazine

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