O objetivo deste blog é discutir um projeto de desenvolvimento nacional para o Brasil. Esse projeto não brotará naturalmente das forças de mercado e sim de um engajamento político que direcionará os recursos do país na criação de uma nação soberana, desenvolvida e com justiça social.
segunda-feira, dezembro 09, 2013
Leblon: Elite escravocrata prega a educação, mas sem abrir mão dos juros
A escola pode muito. Mas é questionável que vá salvar a pátria, dizia Antonio Candido ao PT, em 2002
A escola resolve o nosso apartheid?
por Saul Leblon, em Carta Maior
Quem vai salvar a pátria?
Um traço constitutivo da agenda conservadora consiste em festejar as derrotas da sociedade brasileira abstraindo a dimensão estrutural do problema.
Ou seja, omitindo sua responsabilidade.
Espremido o foco, o resto fica fácil.
Cria-se uma circularidade; ela confina o debate do futuro no campo da moral.
E a moral, como se sabe, é o apanágio da classe dominante.
Entre nós esse reducionismo determina que o faminto é culpado pela fome.
O Estado, carcomido pelo cupim privatista, é o responsável pela indigência pública.
O lado ‘gobineau’ das elites –em que a genética define a história– tem na educação um compêndio ilustrativo de sua versatilidade e dos seus limites.
Manchetes desta semana esponjaram-se no desempenho sofrível dos estudantes brasileiros no Pisa, edição 2012.
O Programa de Avaliação Internacional de Estudantes da OCDE sabatina alunos de 15 e 16 anos em matemática, leitura e ciências.
A mensagem subliminar do jornalismo conservador era: esse, o país dirigido pelo populismo!
Das 65 nações incluídas no teste, o Brasil foi a que apresentou a melhor progressão no aprendizado de matemática nos últimos nove anos.
O fato de persistir no 58º lugar depois disso (em ciências figura no 59º; em leitura, no 55º, num total de 65) é sugestivo do ponto de partida pantanoso sobre o qual a elite ‘esclarecida’ fixou a escola pública brasileira.
O mais irônico é que a narrativa conservadora define a educação como o único canal legítimo de mobilidade das massas no país.
Por trás desse simulacro de meritocracia esconde-se o círculo de ferro de uma das piores estruturas de distribuição de renda do planeta, que se avoca o direito à eternidade.
Endinheirados que se orgulham de patrocinar ONGs pela redenção educativa, garantem: será assim, através da escola, não da reforma agrária, a tributária ou a urbana, tampouco através do salário mínimo ‘inflacionário’, que a miséria material e espiritual perderá seu reinado neste lugar.
A escola pode muito.
Acertou em cheio o governo ao impor uma regulação soberana sobre a riqueza do pré-sal, que permitirá transferir múltiplos de bilhões de reais à politica educacional nos próximos anos.
Mas é questionável que a escola possa tudo o que lhe atribui a emancipação a frio apregoada pela agenda conservadora.
Ser uma ilha de excelência, capaz de abrigar e exorcizar o oceano de iniquidades ao seu redor, parece mais um enredo de aventura nas estrelas do que o horizonte histórico de uma nação.
Os analistas do Pisa parecem corroborar essa avaliação.
Eles afirmam que a metade do ganho brasileiro em matemática, por exemplo, foi uma decorrência de mudanças no entorno social dos alunos.
Uma parte do noticiário conservador interpretou esse dado de forma desairosa, como se fora um atestado de fracasso do MEC. Outra, omitiu-o.
Compreende-se.
Investigá-lo talvez levasse à conclusão de que as políticas demonizadas pela mídia – como o Bolsa Família, a valorização do salário mínimo, crédito barato, subsídio à habitação popular etc– ajudaram o estudante brasileiro a ter maior poder de aprendizado.
Um exemplo: estudantes do ensino médio beneficiados pelo Bolsa Família nas regiões Norte e Nordeste têm rendimento melhor do que a média nacional (82,3% e 82,7%, contra taxa brasileira de 75,2%).
Outro: pesquisa feita na Universidade de Sussex, na Inglaterra, em 2012, revela que quanto maior é o tempo de participação das famílias no Bolsa Família, maior é o aproveitamento escolar das crianças. Segundo a pesquisa, a taxa de aprovação dos alunos do 5º ano aumenta 0,6 ponto percentual para cada R$ 1 de aumento no valor médio do benefício per capita pago às famílias.
A influência da entorno social na escolarização não é privilégio de sociedade pobre.
Tome-se o caso dos EUA.
O país retrocedeu cerca de 20 pontos na classificação global do Pisa- 2012.
Em 2009 ocupava a 17ª posição; caiu agora para a 36ª, abaixo da média geral em ciências e matemática.
O que mudou nos EUA entre 2009 e 2012?
A sociedade norte-americana mergulhou na sua maior crise desde a Depressão de 1929.
Uma em cada cinco crianças norte-americanas vive atualmente em ambiente de pobreza. A renda média das famílias com filhos recuou cerca de US$ 6.300 (tomando-se 2001 como base de comparação). Com a implosão da bolha imobiliária, um milhão de estudantes de escolas públicas viram suas famílias serem despejadas . As taxas de desemprego aberto e oculto hoje superam a faixa dos 13%. O grau de recuperação do mercado de trabalho na presente crise é o mais lento de todas as recessões anteriores.
A sobrevalorização do papel da escola na agenda conservadora brasileira padece de outros flancos de coerência.
Há uma distância robusta entre o que se fala e o que se pratica quando se mede o hiato em moeda sonante.
O piso salarial do magistério brasileiro hoje, R$ 1560,00, é um dos mais baixos do mundo. A perspectiva de corrigi-lo para modestos R$ 1.860 reais em 2014 dispara as sirenes de alerta do jornalismo que promete mostrar o abismo fiscal na próxima edição.
Segundo o Pisa, o Brasil investe três vezes menos que a média da OCDE para educar uma criança dos 6 aos 15 anos (R$ 64 mil e R$ 200 mil, respectivamente).
Em termos de PIB, fica com uma fatia equivalente a 5%.
O pedaço destinado aos rentistas da dívida pública é maior: 5,7% do PIB.
O mesmo jogral que atribui à educação poderes sobrenaturais, martela a necessidade de submeter a economia a uma ação purgativa contundente feita de juros mais altos e cortes no poder de compra da população (em especial, a depreciação real do salário mínimo).
O conjunto visa, no fundo, preservar a regressividade fiscal brasileira, que privilegia ricos e penaliza pobres e remediados, contra eventuais reformas progressistas.
Nos salões elegantes, os candidatos a candidato do dinheiro grosso em 2014 acenam com a miragem desse país impossível: um Brasil com produtividade chinesa, civilidade suíça, superávit ‘cheio’ e carga fiscal equiparável a de Burkina Faso, onde o índice de alfabetização não ameaça a barreira dos 25%.
Não é apenas o entorno social do aluno pobre que está ameaçado por esse coquetel ; na verdade, ele rasga a própria fantasia da prioridade educacional, reduzindo-a a sua verdadeira essência histórica: uma agenda protelatória.
Ou seja, um deslocamento espacial e temporal do conflito distributivo, confinado em uma escola e em um aluno, aos quais caberá a exclusiva responsabilidade de erguer a sociedade pelos próprios cabelos.
Ou não será assim também com a saúde pública, desafiada a ‘fazer mais com menos’, –com menos ainda depois que a coalizão demotucana subtraiu R$ 40 bilhões por ano do SUS em 2007?
Um comparativo da OMS mostra o quanto há de perversidade na fotografia que imortalizou esse ato cometido na madrugada de 13 de dezembro de 2007. A imagem mostra a nata do retrocesso político comemorando a extinção da CPMF em alegria obscena. A indecência se panfletada nas filas do SUS ainda guarda nitroglicerina para sublevar o país.
Segundo a OMS, o gasto público mundial per capita com a saúde chegou a US$ 571 por ano em 2010. Inclua-se nessa média os US$ 6 mil per capita da Noruega e os US$ 4 per capita do Congo; o valor brasileiro é de US$ 466/ano; em 2000, no governo FHC, somava US$ 107 per capita.
Os mesmos que gargalhavam na madrugada de 13 de dezembro de 2007 fuzilariam o ‘Mais Médicos’ seis anos depois. E não por acaso são as mesmas bocas de onde ecoa a cínica profissão de fé em uma escola capaz de corrigir aquilo que suas madrugadas políticas cuidam de perpetuar.
Os resultados do Pisa deveriam servir de combustível para um aggiornamento do debate brasileiro que de forma preguiçosa adotou o cacoete de terceirizar à educação tarefas que só uma repactuação do desenvolvimento pode honrar.
Na ante-sala do debate eleitoral de 2014 seria oportuno, por vezes, inverter os termos da equação. E arguir o que o projeto mercadista pretende fazer em benefício da pobreza e da desigualdade hoje para que elas possam mudar a escola pública amanhã.
Vale retornar às origens e reler um trecho inspirador de uma entrevista concedida pelo professor, crítico literário e cientista social Antonio Candido de Mello e Souza, à campanha de Lula, em 2002, sobre o assunto.
Como ele, as palavras aqui emitem uma luminosidade clássica:
“Temos uma crise de civilização (…) Talvez seja um mal que deriva de um bem.
O esforço para tornar os níveis de ensino acessíveis a todos força diminuir o nível. Então, você fica num dilema perverso: elitizo ou democratizo e abdico de qualidade? A saída está numa sociedade igualitária, onde todos tenham acesso à cultura e à educação de qualidade. Foi o que eu vi em Cuba. Instrução pública e gratuita em todos os níveis. E de muito boa qualidade. A chave é a transformação da sociedade, na qual as pessoas se apresentam para a educação em pé de igualdade.
Quem acha que um bom sistema educacional salva a pátria está redondamente enganado. A participação nesse sistema será sempre restrita. Por isso você tem que, primeiro, fazer mudanças estruturais; depois, terá um boa educação. Os liberais pensam: eu tendo uma população instruída, terei uma sociedade melhor.
Errado. Tendo a sociedade melhor, terei uma população instruída. Só assim você supera essa contradição aparente entre elitização e democratização. Continuo achando que a forma republicana do ensino público e gratuito é o grande modelo
(…) Numa sociedade em que as diferenças de classes ficam muito reduzidas, haverá um desaparecimento da cultura erudita e da popular. E surgirá uma nova cultura. Isso é possível. A função do Estado é fazer um grande esforço econômico e social para que no plano cultural o hiato diminua. De tal maneira que, no fim de certo tempo, o popular se torna erudito e o erudito se torna popular.
(…) Sempre tivemos uma República de elite. Um presidente da República era eleito com 200 mil votos – e votos descobertos. Em 1930, eu assisti na minha cidade, em Cássia, Minas Gerais, à última eleição a descoberto. O eleitor chegava e o coronel, ao lado, fiscalizando. Depois de Getúlio, com a emergência das massas operárias, das massas urbanas, não foi mais possível manter esse estreitamento. O Getúlio era um caudilho esperto. Para manter as elites sob controle, abriu as porteiras e deixou o povo entrar, mas patrocinado por ele. Todavia, abriu a porteira. E ela está aberta até hoje” (Antonio Candido; site da Campanha Lula Presidente; 2002)
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