Joseph S.* – Project Syndicate/O Estado de S.Paulo
Este ano marca o centenário de um evento transformador da história moderna: a 1ª Guerra, que matou cerca de 20 milhões de pessoas e pulverizou uma geração de jovens da Europa e mudou fundamentalmente a ordem internacional.
A 1ª Guerra não acabou somente com vidas, mas destruiu também três impérios na Europa – o alemão, o austro-húngaro e o russo. Até o conflito mundial, o equilíbrio global de poder estava centrado na Europa; depois, EUA e Japão despontaram como grandes potências. A guerra também precipitou a Revolução Bolchevique, de 1917, preparou o caminho para o fascismo e intensificou e ampliou os confrontos ideológicos que arruinaram o século 20.
Como pôde ocorrer semelhante catástrofe? Pouco após o início da guerra, quando pediram para o chanceler alemão, Theobald von Bethmann-Hollweg, explicar o que havia acontecido, ele respondeu: “Oh, se ao menos eu soubesse!” Talvez no interesse da autojustificativa, ele tenha considerado inevitável a guerra. O chanceler britânico, Edward Grey, igualmente argumentou que veio “a pensar que nenhum indivíduo humano poderia tê-la evitado”. A questão que enfrentamos hoje é se ela poderia tornar a acontecer.
Margaret MacMillan, autora do interessante livro The War that Ended Peace (A Guerra que Acabou com a Paz, em tradução livre do inglês) argumenta que “é tentador – e sensato – comparar a relação atual entre China e EUA com a que havia entre Alemanha e Grã-Bretanha um século atrás”. Após traçar uma comparação similar, The Economist conclui que “a semelhança mais preocupante entre 1914 e agora é a complacência”. E alguns cientistas políticos, como John Mearsheimer, da Universidade de Chicago, argumentaram que “em poucas palavras: a China não pode ascender pacificamente”.
Mas as analogias históricas, embora ocasionalmente úteis para fins de prevenção, tornam-se perigosas quando transmitem uma sensação de inevitabilidade histórica. A 1ª Guerra não era inevitável. Ela também ficou mais provável pelo poder ascendente da Alemanha e pelo temor que isso causou na Grã-Bretanha. Mas também se tornou mais provável pela resposta tímida que a Alemanha deu ao poder ascendente da Rússia, além de uma porção de outros fatores, entre os quais, erros humanos. Hoje, porém, a diferença de poder geral entre EUA e China é maior do que entre Alemanha e Grã-Bretanha em 1914.
Para tirar lições contemporâneas de 1914, é preciso descartar os muitos mitos que foram criados sobre a 1ª Guerra. Por exemplo, a afirmação de que ela foi uma guerra preventiva e deliberada, por parte da Alemanha, é contrariada por evidências mostrando que as elites decisivas não acreditavam nisso. A 1ª Guerra não foi puramente acidental, tampouco, como outros sustentam: a Áustria foi à guerra deliberadamente para conter a ameaça do nacionalismo eslavo em ascensão. Houve erros de cálculo sobre a extensão e profundidade da guerra, mas isso não é o mesmo que uma guerra acidental.
Também se diz que a guerra foi causada por uma corrida armamentista descontrolada na Europa. Mas a corrida armamentista naval terminou em 1912 – e a Grã-Bretanha venceu. Embora houvesse receio na Europa sobre a força crescente de exércitos, a visão de que a guerra foi ocasionada diretamente pela corrida armamentista é fácil.
O mundo de hoje é diferente do mundo de 1914 de muitas maneiras importantes. Uma é que as armas nucleares deram a líderes políticos o equivalente a uma bola de cristal que mostra como ficaria seu mundo após a escalada. Talvez se o kaiser e o czar tivessem tido uma bola de cristal mostrando seus impérios destruídos e seus tronos perdidos em 1918, eles teriam sido mais prudentes em 1914. O efeito bola de cristal seguramente teve uma forte influência em líderes americanos e soviéticos durante a crise dos mísseis de Cuba. E provavelmente teria uma influência similar em líderes americanos e chineses hoje.
Outra diferença é que a ideologia da guerra é muito mais fraca hoje em dia. Em 1914, a guerra era realmente considerada inevitável, uma visão fatalista reforçada pelo argumento social-darwinista de que a guerra deveria ser bem-vinda, porque “limparia o ar” como uma boa tempestade de verão. Como escreveu Winston Churchill em A Crise Mundial: “Havia uma estranha índole no ar. Insatisfeitas com a prosperidade material, as nações se voltaram ferozmente para a luta, interna e externa. Paixões nacionais, indevidamente exaltadas no declínio de religião, ardiam abaixo da superfície de quase todo país com ferozes, embora ocultos, incêndios. Quase se podia pensar que o mundo desejava sofrer. Por toda parte, os homens estavam seguramente ansiosos para ousar.”
Hoje, na China, há um claro crescimento do nacionalismo, enquanto os EUA lançaram duas guerras após os ataques de 11 de setembro de 2001. Mas nenhum dos dois países é belicoso ou complacente com uma guerra limitada. A China ambiciona um papel maior em sua região e os EUA têm aliados regionais comprometidos com a defesa dos parceiros. Erros de cálculo são sempre possíveis, mas o risco pode ser diminuído com escolhas políticas acertadas. Aliás, sobre muitas questões – por exemplo, energia, mudanças climáticas e estabilidade financeira – China e EUA têm fortes incentivos para cooperar.
Além disso, enquanto a Alemanha em 1914 estava nos calcanhares da Grã-Bretanha (e a havia ultrapassado em termos de poderio industrial), os EUA continuam décadas à frente da China em tudo: recursos militares, econômicos e poder brando. Uma política excessivamente aventureira colocaria em risco os ganhos da China em casa e no exterior. Em outras palavras, os EUA têm mais tempo para administrar suas relações com uma potência ascendente do que a Grã-Bretanha tinha há um século. Um excesso de medo pode se autoalimentar. Se EUA e China administrarão bem a sua relação é outra história. Mas a maneira como eles o farão será ditada por escolha humana – e não por alguma lei histórica.
Entre as lições a serem aprendidas dos eventos de 1914 está ter cautela com analistas que usam analogias históricas, particularmente se elas têm um sopro de inevitabilidade. A guerra nunca é inevitável, embora a crença de que ela é possa ser uma de suas causas.
*Joseph S. é professor da Universidade Harvard e autor de ‘Presidential Leadership and the Creation of the American Era’.
TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK
FONTE: O Estado de S. Paulo
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