A viúva de Stanley Kubrick fala sobre significados de filmes, teorias de conspiração e relata ameaças de morte recebidas pelo marido
por Marilia Kodic
Carta Capital
Seu sobrenome é motivo suficiente parar despertar o interesse de qualquer cinéfilo. Viúva de Stanley Kubrick, diretor de Laranja Mecânica, 2001: Uma Odisseia no Espaço, O Iluminado e Lolita, Christiane Kubrick recebeu CartaCapital em um hotel dos Jardins para falar sobre o legado do cineasta, com quem dividiu 42 de seus 81 anos de vida. Em São Paulo para promover a 37ª Mostra Internacional de Cinema, que o homenageia, a pintora – cujos quadros, além de aparecerem em De Olhos Bem Fechados e Laranja Mecânica, estampam todo o material gráfico do festival – comentou as teorias de conspiração nos filmes do cineasta, ameaças de morte após Laranja Mecânica e o significado por trás de 2001.
A Mostra, iniciada na sexta-feira 18, exibe a filmografia completa do diretor, em parceria com o MIS, que apresenta exposição com objetos raros como a maquete da sala de guerra de Dr. Fantástico e figurino de O Iluminado, e fica em cartaz até 12 de janeiro de 2014.
CartaCapital – O seu relacionamento com Stanley Kubrick definiu a sua vida?
Christiane Kubrick – Ele teve um impacto enorme em mim e me fez muito feliz. Era muito fácil ser casada com ele. Gostamos um do outro imediatamente e ambos nos sentimos muito sortudos por isso. Eu o achava tão interessante e tão divertido que todas as outras pessoas pareciam entediantes. Foi amor à primeira vista.
CC – Como foi a primeira vez que o viu?
CK – Eu queria ser pintora, mas não conseguia ganhar dinheiro, ainda mais sendo mulher em 1957 – acabaria numa fábrica de porcelana ou qualquer coisa assim. Então eu queria ganhar dinheiro fazendo filmes para poder estudar pintura. Falei pra minha agente que aceitava qualquer papel, e então recebi uma ligação dizendo que alguém queria que eu cantasse uma música. Sim! Logo que o vi, sabia que ele não era só o idiota mediano sentado atrás de uma mesa. E eu pensei, hum, bom homem. Foi amor à primeira vista para os dois, o que foi incrível porque ambos tínhamos tido casamentos anteriores infernais enão estávamos no clima de pensar “ah, isso vai ser amor eterno à primeira vista”. Tivemos sorte de que foi exatamente o que aconteceu.
CC – Ele tinha a fama de ser um diretor difícil. O que acha disso?
CK – A maioria dos atores gostava de trabalhar com ele. Muitos diretores gritam à distância “faça isso, faça aquilo”, e humilham os atores de vários modos. Ele não. Ele os levaria a um canto, falava muito baixo, e deixava que mostrassem o que podiam fazer antes de ocasionalmente dizer “não, eu preferia que fosse deste ou daquele jeito”.
Ele não tinha uma equipe muito grande, gostava de que a coisa toda fosse enxuta, e ele preferia levar um longo tempo para filmar do que fazer rapidamente, porque o rolo de filme não custava dinheiro, não era a coisa cara. Às vezes ficava com raiva quando os atores não decoravam suas falas, o que era muito irritante porque você tem máquinas enormes prontas para o trabalho e alguém estraga tudo, isso não é bom. Mas ele era muito concentrado e não ficava nervoso.
CC – Dizem que Scatman Crothers teve de fazer 160 takes de uma única cena em O Iluminado...
CK – Scatman Crothers era um ator brilhante, um homem muito gentil, mas muito velho. E ele não conseguia lembrar as falas. Isso o deixava muito nervoso, muito triste, mas Stanley disse: “paciência. Tome o seu tempo. Eventualmente você vai fazer certo”. E valeu muito a pena esperar. Quando você é muito velho seu cérebro... sabe, eu sei como é [risos].
CC – Ele mantinha relação com os atores após as filmagens?
CK – Não, não muito frequentemente. Você perde o contato, isso é muito típico da indústria cinematográfica – você tem relações muito próximas e depois nada. É às vezes bastante doloroso, não é muito legal. Mas é assim mesmo.
CC – Malcolm Mc Dowell [protagonista de Laranja Mecânica] me disse recentemente que ficou muito triste por não conseguir manter contato com Kubrick.
CK – Malcolm era muito jovem. Eles tinham se tornado muito bons amigos, se conheciam muito bem, e ele achou que eles conseguiriam manter a relação. Mas ele estava longe e Stanley estava construindo amizades com outros atores, ele era seu próprio produtor, tinha uma quantidade enorme de trabalho, tinha a sua família. Ele não fez muito contato. Muito tempo depois eles se encontraram e Stanley disse “me desculpe, eu não sabia que você queria que eu mantivesse contato”. Mas nunca foi intencional ou hostil. Acho que é uma das coisas mais peculiares dessa indústria.
CC – Há diversas teorias sobre significados ocultos nos filmes de Kubrick. São minimamente críveis?
CK – Ele era extremamente inteligente. E se você também é, deixa todas as coisas inconscientes que vão para dentro de um filme e que alimentam a sua imaginação por isso mesmo. Ele rejeitava essas teorias completamente, assim como a maioria dos artistas.
Todos esses artigos que dizem “você fez tal coisa porque você é judeu” ou “filho único” ou “filho de médico” ou qualquer coisa assim – há milhares – são entediantes.
CC – As pessoas chegaram ao ponto de dizer que ele filmou a chegada à lua. O que ele achava disso?
CK – Ó céus. Pois é. Nós fomos abordados em Paris por entrevistadores. Em retrospecto consigo lembrar de ter uma sensação estranha sobre essas pessoas. Eles fizeram algo típico que se feito bem é imperceptível: você pode me fazer perguntas que farão com que eu fale o nome de Henry Kissinger, ou Roosevelt, ou o que você quiser. Se você fizer a pergunta, eu falarei o nome. Foi assim que conseguiram o que queriam. E de repente vimos na televisão essa teoria. Eu fiquei muito impressionada com o que fizeram. Fiquei surpresa.
CC – Que tipo de cultura ele consumia?
CK – Ele era uma daquelas pessoas – e eu acho que é por isso que ele morreu jovem – que não dormia muito. Dormia 4 horas por dia. Tinha uma memória muito boa e devorava informação. Eu sempre me sentia muito burra. Ele gostava bastante de música. Ele queria ser baterista quando era jovem. E lia vorazmente, a cada semana era fã de um autor diferente.
Gostava de todos os cineastas de que todos nós gostamos, de verdade. Fellini, Bergman, esses caras. Spielberg. Gostava de diretores que eram completamente diferentes dele. Vimos Casablanca muitas vezes, e Quanto Mais Quente Melhor. A mania mais ridícula dele eram filmes da Segunda Guerra com diálogos abomináveis, enredos estúpidos, combates aéreos entre aviões. Coisa de menino. Patético. Ele assistia àquilo como quem assiste a pornografia. Esse foi seu ponto mais baixo [risos].
CC – Como acha que ele receberia as novas tecnologias de hoje?
CK – Meu Deus, ele iria usar os últimos artifícios, todos os programas especiais. Ele iria simplesmente amar. Ele era um excelente fotógrafo, construiu sua própria câmera em Barry Lyndon, ele gostava dessas coisas. Sabe como alguns meninos gostam de motos e as desmontam e examinam? Ele era assim com câmeras.
CC – Em entrevistas Kubrick raramente discutia o significado de seus filmes. Ele alguma vez discutiu com você o significado de 2001: Uma Odisseia no Espaço, um de seus filmes mais emblemáticos?
CK – Se você dissecar, não funciona mais. Com 2001 ele queria que sentíssemos algo, que pensássemos o mesmo de quando estamos cansados e olhamos para as estrelas e pensamos “que raios é isso”, essa sensação com que todos nascemos de que nossos cérebros são somente grandes o suficiente para saber que são muito pequenos. Não sabemos nada e só se pode ser um agnóstico otimista – o que mais seríamos se não sabemos nada?
Ele queria que o público fantasiasse junto com o filme, com a música e as imagens. Ele queria perguntar: “Você se sente assim às vezes? Do que se trata tudo isso? Quem somos? Por que estamos aqui? Por que não sabemos?”. Essa é uma das fantasias favoritas e que mais é acometida por ansiedade de toda a humanidade, e uma que todos temos. Quanto mais você pensa sobre, menos você sabe comparado a quando começou. E é sobre isso que era o filme.
CC – Laranja Mecânica gerou muita polêmica quando foi lançado. Como ele reagiu a isso?
CK – Mal. Nós todos reagimos mal. De repente todo crime cometido na Inglaterra foi atribuído à influência do filme. Recebemos cartas horríveis, de como iam nos matar e quando, havia um grupo religioso que dizia que ele era o demônio. Ficou tão radical que as crianças não podiam ir à escola, não podíamos deixar a casa, virou uma avalanche.
O filme já estava em cartaz por algum tempo, arrecadando bastante dinheiro na Inglaterra, e Stanley ligou à Warner Brothers para pedir que tirassem de cartaz. Ele nunca achou que o fariam, mas fizeram. Foi muito generoso da parte deles. Eles estavam ganhando dinheiro. Stanley ficou muito grato. Para sempre. Tinham um relacionamento muito bom porque Stanley estava muito ciente que ninguém mais tinha esse privilégio, e ele protegia isso. Ele economizava cada centavo na produção. Fez por merecer a confiança.
CC – Ele lia críticas sobre seus filmes?
CK – Como qualquer um, ele dizia “não estou nem aí, não vou ler... deixa eu ler” [risos]. Em dias bons ele não estava nem aí e em dias ruins chamava os críticos de idiotas.
CC – Hoje em dia seria difícil achar críticas negativas...
CK – Eu sempre penso, com toda essa adulação, essas coisas que fazemos, que ele não teria acreditado. Ele teria ficado tão lisonjeado! Ele só ganhou um Oscar, de efeitos especiais, por 2001: Uma Odisseia no Espaço. Acho que não foi nem de longe o suficiente. Desconfio que tenha parcialmente a ver com o fato de que ele não jogava o jogo social de Hollywood.
Ele não era um recluso, mas não ia a festas, e a ideia de fazer programas de tevê era horrenda. Ele dizia que ia ficar nervoso, ia parecer um idiota. E estava certo, ele não era bom nisso. E os jornalistas se vingavam escrevendo besteiras sobre ele, sabe, que ele voava um helicóptero jogando inseticida sobre a casa, que atirava em turistas, coisas idiotas. Mas agora já não existe mais isso.
CC – Acha que ele teria gostado dessa Mostra?
CK – Espero que sim. Eu não sabia o que fazer com todas aquelas caixas, um oceano de caixas que ele ia eventualmente arrumar e nunca o fez. Ainda bem! O Museu de Frankfurt me mandou um arquivista para selecionar o que as pessoas iriam querer ver, e isso é uma ciência especial. Fiquei aliviada e então soube o que fazer: dei tudo à Universidade de Artes de Londres, que fez uma ala inteira dedicada a ele. Acho melhor do que ficar em mãos privadas.
CC – É muito especial para os fãs poder ver esse material.
CK – Fico tão contente quando vejo jovens vendo essas coisas. Sabe, tivemos voluntários que vieram da Universidade para colocar os papéis em envelopes plásticos especiais para que não desintegrem ou amarelem, e é muito entediante pegar cada folha e, muito cuidadosamente, colocar no envelope com uma pinça. Então pensei “eles vão ficar tão cansados”. E eles trabalharam, trabalharam, trabalharam, leram tudo. Todas aquelas cartas que um cineasta jovem escreve implorando “posso te ligar? – não”, essas coisas.
CC – O que gostaria que as pessoas soubessem sobre ele que ainda não sabem?
CK – Já falei tanto. Eu diria se pudesse. Não sei o que ele quereria que eu falasse. Além disso, sou desacreditada como a viúva, qualquer coisa que eu diga é considerada apenas sentimental, então não importa. Se eu o elogio vão dizer “ah bem, pobre mulher”. Se eu disser que eu o achava absolutamente maravilhoso, “ah vá!”, sabe, não significa nada. Então se eu o elogio, eu o diminuo. Mas acho que ele não precisa de mim.
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