Da Época
PAULO MOREIRA LEITE
Podemos observar várias reações diante do julgamento do mensalão. Empolgados com as penas duríssimas, que atingem um partido que desde 2002 não conseguem vencer pelo voto, políticos conservadores querem superfaturar a vitória. Não basta, para eles, a decisão do STF.
Torcem para que o Supremo tome decisões radicais e até grotescas. Uma delas é mandar prender os condenados antes da pena transitar em julgado. A ideia é a execração pública. Consiste em demonstrar que os condenados não merecem sequer o respeito que a lei garante a cada um dos brasileiros.
Na mesma linha, pretende-se que o Supremo determine a cassação dos mandatos dos três deputados condenados, quando se sabe que o artigo 55 da Constituição define que esta é uma prerrogativa da Câmara e do Senado. Pede-se um ato de brutalidade, ilegal, como prova de força. Em vez de discutir e deliberar – ou não – pela perda de mandato, quer-se transformar o Congresso num poder subordinado ao STF.
É uma postura vergonhosa, de quem conta com a Justiça para obter vantagens que não conseguiram obter nas urnas.
Você acha que esse pessoal estaria tão nervoso se Fernando Haddad tivesse sido derrotado em São Paulo? Ou se o PT não tivesse crescido tanto num pleito ocorrido em pleno julgamento, na semana em que dirigentes e líderes do PT foram condenados em transmissão ao vivo pela TV? Quem foi mesmo que disse que seria “saudável” se o julgamento se refletisse nas urnas?
A segunda postura é do silêncio. Respalda-se medidas anti-democráticas, porque elas podem trazer vantagens no futuro. Teme-se, no entanto, ficar contaminado com um serviço que pode manchar tantas reputações com colarinhos tão brancos, causar denúncias e prejuízos a imagem no futuro, quem sabe numa Comissão da Verdade dos anos 2020.
A atitude é evitar críticas ao que está acontecendo. Fingir que é possível ter duas interpretações. “Analisar” sem opinar. Apontar um lado e depois o outro. A proposta é: se der certo, está tudo bem. Mas se não der, não me comprometa!
A única postura coerente, numa hora que pode tornar-se grave, começa pela leitura do artigo 1 da Constituição: “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”
Não se trata, é claro, de um palavrório vazio. A noção de que o “todo poder emana do povo” percorre toda a Carta, inclusive naquele momento em que os “representantes eleitos” podem perder seu mandato.
Em 1988, quando se escreveu a Constituição, o país saía de uma ditadura, onde os generais cassaram 176 mandatos parlamentares sem prestar contas a ninguém.
Em 1968, o regime exigiu que a Câmara de Deputados cassasse o mandato de Márcio Moreira Alves. Os parlamentares se recusaram e o governo militar fechou o Congresso. Em 1976, o deputado Chico Pinto fez um discurso onde chamava Augusto Pinochet, general que governava o Chile de forma tenebrosa, de ditador. Foi cassado. Quem fez o serviço desta vez foi o STF.
A ideia básica, em 1988, era assegurar que apenas representantes eleitos pudessem cassar representantes eleitos. Esta era a distinção entre uma democracia e uma ditadura.
A Constituição assume, de cara, o princípio de que não se deve cassar representantes eleitos. A ideia, essencial, é que serão protegidos sempre. O artigo 15 fala até que a cassação “é vedada.” Admite-se exceções, contudo.
Mas sempre se deixa claro quem pode fazer isso. Não é o Executivo nem o Judiciário.
Está explícito no parágrafo 3o, artigo 55, que repito a seguir só para destacar:
“a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por voto secreto e maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa.”
E aqui chegamos ao ponto essencial do debate: “voto secreto e maioria absoluta, assegurada ampla defesa.”
Não vou retomar as sentenças do mensalão. Cada um tem uma opinião a respeito. Mas é consenso que aceitaram noções que contrariam pontos importantes do direito. A ideia de que era possível flexibilizar provas – em prejuízo dos réus – foi anunciada sem maiores ressalvas. A noção básica de direito penal, de que todo réu é inocente até que se prove o contrário foi colocada em questão desde o primeiro dia, pelo método do fatiamento, altamente favorável a acusação. No debate sobre as penas, ficou clara a preocupação em garantir de todas as maneiras que elas fossem longas para impedir casos em que pudesse haver prescrição. Ou seja: mais do que a pena correta, fosse qual fosse, tentou-se garantir a mais dura.
Você pode até achar que isso era necessário, que a política “não tem jeito” e os políticos “são todos ladrões…” Também pode fazer cara de inteligente e pensar assim: agora vamos ao mensalão do PSDB-MG e ao mensalão do DEM-DF. Aí vai ficar claro que o país está mudando e essas críticas ao julgamento é coisa de quem enxerga conspiração em tudo.
É bom estar preparado. Não haverá reprise neste show.
Os dois mensalões seguintes foram desmembrados e vão seguir seu curso, vagaroso, na Justiça comum. Os réus terão direito a um segundo julgamento, o que foi negado aos 35 condenados do mensalão Delúbio-Marcos Valério. Isenção? Só se o julgamento fosse remembrado…
Resta, então, entender o debate sobre as cassações.
Muitas pessoas tem dito que é esquisito imaginar um político condenado – e até preso – que foi capaz de preservar seu mandato. Vai votar por email? Por telefone?
Terá autorização da direção do presídio para dar comparecer a uma votação mais importante?
Poderá usar celulares do PCC? (Aí depende da polícia do Alckmin, né…Piadinha, piadinha…)
Minha visão é que isso não é o mais importante. Nem é tão estranho assim, na verdade. Em 1992, o Congresso votou o impeachment de Fernando Collor, que renunciou antes de ser condenado. O Senado cassou seus direitos políticos por oito anos. Sim. O Congresso.
Em 1994, o Supremo absolveu o ex-presidente por falta de provas válidas. Estranho? Anormal? Ninguém achou. Era normal considerar que o julgamento político de Collor fora feito no Congresso e o criminal, no Supremo. As atribuições estavam claríssimas e ninguém precisou debater o artigo 55…
O estranho, o esquisito, o delirante, o vergonhoso, é desrespeitar a Constituição. O resto se explica e se entende, pois tem a legitimidade de nossa democracia.
E aí chegamos a um ponto essencial. Ninguém pode prever, agora, qual será o voto dos deputados no julgamento dos colegas condenados pelo Supremo. Em 2005, Dirceu, Jefferson e Pedro Correa foram cassados por votação ampla. O que pode acontecer em 2012?
Ninguém sabe. Vai depender, essencialmente, do ambiente político da época. Para começar, muito possivelmente a Câmara terá um novo presidente, Henrique Alves, do PMDB, no lugar de Marco Maia, do PT. Este é o acordo entre os maiores partidos da casa. O que isso muda na ordem das coisas? Ninguém pode antecipar.
O certo é que os parlamentares condenados têm direito constitucional a uma “ampla defesa”. Isso quer dizer que poderão subir a tribuna e dar sua versão dessa história. Negar este direito é assumir, descaradamente, que se quer diminuir o artigo 1 da Constituição, que diz que “todo poder emana do povo, que o exerce através de representantes eleitos.”
Como explica Luiz Moreira Junior, doutor em Direito pela UFMG e diretor acadêmico da Faculdade de Direito de Contagem, é possível cassar o mandato de um político mas para isso é preciso “autorização do Congresso. Ele foi investido de poder pelo povo, só o povo pode tirar. Se a gente relativiza isso, relativiza a própria democracia.”
Nos sabemos quem gostava de democracia relativa. Era aquele general que prendeu Chico Pinto e mandou o STF cassar seu mandato.
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