sábado, março 08, 2008

DE MILLÔR FERNANDES A CELSO FURTADO – O OITO DE MARÇO –







Laerte Braga





O sujeito, um trabalhador comum, desses que ralam de oito a dez horas por dia, se deixou fascinar pela presença da extraordinária atriz Sandra Bréa na primeira novela a cores apresentada pela GLOBO, em pleno “milagre brasileiro”, “O bem amado”, da lavra de Dias Gomes.



A novela era levada ao ar às dez horas, exigência da censura e como todas as novelas de Dias Gomes tinha um forte conteúdo crítico, uma espécie de metralhadora giratória nas mãos de um excelente atirador, disparando a torto e a direito, mas em alvos certos.



Sandra Bréa interpretava a filha “problemática” do prefeito Odorico Paraguaçu, vivido por Paulo Gracindo e tinha um amor tumultuado pelo médico da cidade, o ator Jardel Filho (um dos maiores atores do teatro brasileiro). Alcoólatra, na novela, refletia varias revoltas ao mesmo tempo. Em si, contra si, e por estar no mundo do “coronel Odorico”. Ou pelo mundo do “coronel Odorico”, nada tão diferente do mundo da ditadura militar, vigente à época da novela.



Uma das decisões dos ditadores foi a de criar redes regionais e nacionais de tevê, centralizando as transmissões para vender a ideologia do “ame-o ou deixe-o”. A consciência do peso das comunicações no processo de alienação.



Essa forma de barbárie aparentemente inodora, insípida e sem provocar dor visível, começou a destruir valores e culturas regionais num Brasil de muitos brasis.



O trabalhador trabalhava seu dia e após o jantar um noticiário na tevê, preparava-se para a novela, mais precisamente para Sandra Bréa. Um jeito desinibido de ser mulher, arrogante e desafiadora em relação ao pai, um chefete político com o título de “coronel”, corrupto e violento com os adversários, dócil e servil com os que lhe interessavam.



A mulher do interior, acostumada ao esquema de lavar, cozinhar, passar e cama, sem noção de qualquer tipo de prazer da vida, prazer que implicasse em dar-lhe um caráter de ser humano, decidiu um belo dia esperar o marido à porta de sua casa vestida e maquiada tal e qual Sandra Bréa, o fetiche, a paixão alucinada e desvairada do marido. Foi de muitos maridos e solteiros enquanto durou e depois da novela.



Ao chegar em casa e perceber a transformação da mulher o trabalhador imaginou estar se deparando com uma vagabunda, foi até a cozinha, passou a mão num facão, esfaqueou e matou a companheira.



Deu a seguinte explicação na Delegacia. “Num sei o que deu nela, virou puta do dia para a noite, influência dessa desgraçada da televisão”. Foi processado, julgado e absolvido sob o argumento de “privação momentânea dos sentidos” e mais o discurso tradicional de valores morais e ofensa grave ao chefe da família, por aí afora.



A contradição de um tempo e a realidade cultural imposta pelos “coronéis” desde que um deles inventou a tal história da maçã e vendeu-a como um dos peixes mais consumidos num mundo de alienação.



Millôr Fernandes teve talvez a frase mais machista dentre todas em reação ao movimento feminista. “O melhor movimento das mulheres continua a ser o dos quadris”. Posso até inferir pelas circunstâncias de tempo, espaço e jeito de ser que o extraordinário jornalista não quis outra coisa que não referir-se a determinadas posturas que a seu modo de ver eram equivocadas. Não é um machista no sentido lato da palavra. A frase é machista.



Mas foi Celso Furtado, o extraordinário brasileiro que a ditadura cassou e acabou catedrático vitalício da Sorbonne, quem melhor definiu a revolução provocada pela mulher no século passado; “o maior movimento revolucionário do século XX”. A afirmação ultrapassava o queimar dos sutiãs até a entrada da mulher no chamado mercado de trabalho e a questões comportamentais, ou forma de se colocar num mundo machista e de senhores.



E foi Simone de Beuvoir quem deu conceitos definitivos, tanto em sua obra como nessa frase a revolução a que Furtado aludiu: “não se nasce mulher, se faz mulher”.



E foi a televisão também, noutra novela, uma adaptação da obra de Jorge Amado “Gabriela Cravo e Canela”, quem primeiro promoveu a condenação de um “coronel” do interior da Bahia (podia ser de qualquer interior e de muitas metrópoles) por crime que se chamava “contra a honra”.



Não foi nem gratuito e nem foi um instante de defesa da mulher. Foi uma constatação da necessidade de se incorporar mais consumidores ao mercado achando que determinada marca de calça jeans é “liberdade”.



Juízo de um escriba de todos os dias e de uma forma simplificada sobre o conceito mulher: “não há nada mais chato que mulher que lava, passa e deita na cama”. Há que se ter vida e vida significa alma, espírito, ser, coisas do gênero.



Uma Thuman, outra notável atriz costuma referir-se à mulher pós século XX como aquela que “a mulher não veste uma roupa, as roupas vestem a mulher”.



É o dilema do caminho da mulher nos dias atuais. Romper as barreiras de um machismo renascido na relação explorador e explorado, agora com vernizes e tintas de matizes machistas criados na apropriação que o capitalismo consegue, em suas várias formas de monstro mutante transformou o ser mulher revolucionário de Celso Furtado e de Simone de Beuvoir, numa engrenagem supostamente livre, tanto quanto o homem, num mundo de zumbis e robôs montados e vestidos em série pelas redes mundiais que comandam a sociedade de espetáculo e montam o circo da “liberdade”, na perda de um valor maior, o da identidade.



Homens e mulheres transformados em máquinas com etiquetas dos donos, como as antigas iniciais marcadas a ferro quente no gado dos rancheiros texanos. Seres assexuados, sem forma, montados em academias e por personal trainers, tanto quanto com bisturis sonhando SEREM cinzéis em bundas modelo “bunda das cariocas.”



Há uma nova etapa na luta pelos direitos da mulher, para usar a expressão comum, que é, por sua vez, comum ao homem também. A da reconquista das identidades individuais e coletivas e isso vale dizer que a luta ganhou um outro aspecto. Não é restrita a mulher, mas ao ser humano como um todo.



O indivíduo, capaz de identificar-se como sujeito de sua história, de sua vida e construir coletivamente o mundo possível, longe das amarras do show business, o espetáculo escrito e dirigido pelos “coronéis” que agora, ao contrário de antes, não chegam montados em reluzentes corcéis, salvando “princesas” de bruxas e monstros, mas no aparato tecnológico da dominação e da escravização nas suas formas mais cruéis e perversas. Criaram uma grande arca onde aprisionam almas e vontades, transformando homens e mulheres em máquinas supostamente livres num mundo de violência sob todas as formas e onde permanece a mesma violência dos “coronéis” que matavam pela “honra”.



Se o poder da maternidade peculiar à mulher foi durante séculos usado como instrumento de dominação, de castração do ser mulher, na suposta grandeza e docilidade do ser frágil e simbolizado na figura de Maria (moldada nos interesses dos donos), foi banalizado na barbárie e na violência do ser “livre” dentro de uma jaula imensa onde despejam todos os seres marcados como consumidores de liberdade e dignidade numa ou duas, três ou quatro marcas, símbolos de uma realidade quase orweliana, bem próxima do mundo novo de Huxley.



Não é uma luta que tenha terminado. Mal começou.



Se num momento o sutiã significou a ruptura com a ordem machista, neste momento, o ser sujeito de si passa a ser vital para descobrir que abrindo as portas pode existir e existe uma roseira e não um elevador que desemboca num precipício de supostas realidades.



É como o 13 de maio. Não é um dia de comemoração. É um dia de lutas.



É abrir a janela, enxergar a roseira e as rosas. Respirar o ar que não tem nada a ver com o mundo que chamam de real.



Nos céus, ou firmamento, ou espaço, como queira, existe uma constelação CFT. Tem forma e brilho de mulher.

Publicado no Republica Vermelha

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