domingo, agosto 19, 2012

Mauro Santayana: As rosas de agosto

”Guardei-a, até que se desfez, aquela rosa de agosto”, conta-me a amiga de Madri. “Procurei, depois, uma fotografia sua, mas os pais desapareceram de Zamora. Não sei se viveram muito depois disso: ela era a única filha. Eles se haviam casado tarde. Não creio que arranjassem, em qualquer lugar do mundo, um pouco que fosse de alegria.” Por Mauro Santayana, em seu blog A amiga de Madri era menina durante a Guerra Civil. Antes que fizesse 11 anos, os fascistas tomaram a cidade e Maria foi presa. “Nós éramos muito amigas. Ela me ensinava as coisas. Tinha um ano a mais. O corpo começava a tomar formas de mulher. E eu lhe invejava os seios que nasciam. Mas era maior em muitas outras coisas. Fazia versos. Recitava-os. Não eram versos piedosos ou bonitinhos. Falavam de justiça, de paz, de igualdade. Não foram os pais que lhe ensinaram coisas assim. Eu acho que ela descobriu sozinha, ou aprendeu com um de seus professores no colégio, que era socialista” A amiga não se lembra se foi no aniversário da instauração da República ou em outra data nacional que houve o desfile. Deve ter sido em abril, porque a Frente Popular estava no poder. Maria foi escolhida para levar o estandarte. Estava muito bonita, as cores do rosto realçadas pela pintura discreta. “Eu mesma ajudei a arrumá-la. Depois marchamos pela avenida principal, ela à frente, levando a bandeira. Na porta do ayuntamiento paramos e houve discursos. Maria subiu até o estrado, agitou a bandeira e gritou “Viva a República!”. Depois a formação se dissolveu e fomos juntas levar o estandarte ao colégio. “ Maria, conta a amiga, lia muito e era, na sua classe, das mais adiantadas. As meninas ricas olhavam-na de lado porque era bela, inteIigente, solta. Os pais eram comerciantes pobres, tão discriminados na sociedade daquele tempo como os trabalhadores. Possuíam pequeno armazém, onde vendiam vinho e azeite a granel. Às vezes Maria ficava no balcão, para que os dois pudessem sair juntos. “Quando os fascistas tomaram Zamora, um grupo da ‘Falange’ prendeu Maria, de madrugada. Eu soube depois que estava, entre eles, um irmão do padre de nossa paróquia, que uma vez jogara um ‘piropo’ a Maria, e ela lhe disse que o dirigisse ao senhor cura, que também usava saias. Era um rapaz esquisito, de espinhas na cara, que não era de andar com amigos nem de fazer ‘piropos’ normalmente. Eu acho que ele se atreveu naquele dia porque Maria e eu vínhamos do campo e atravessávamos sozinhas a ponte. Pois bem, ele fazia parte da ‘Falange’ e a gente não sabia. Prenderam Maria e a levaram para uma casa de freiras. Das freiras que tomavam conta do hos­pital. Ali a fecharam em um quar­tinho e, em agosto, a fuzilaram… “ Minha amiga de Madri se chama Libertad. Mas, a partir de 1936, com o triunfo de Franco, mudaram-lhe o nome para Luísa. Por ordem das autoridades, os oficiais de registro civil rasuraram os livros de nascimentos, trocando nomes como Libertad, Alba, Alegria. Isso sem falar nos nomes bascos, por nomes bem católicos. “Soledad podia, mas Libertad, não.” A minha amiga de Madri sorri. “Mas, na escola, meus amigos continuaram a chamar-me Liber, como sempre. Eu, distraída, ganhava faltas porque não respondia ‘presente’ na hora da chamada. Oficialmente continuo sendo Luísa até hoje mas nunca assinei este nome. Usei sempre de uma saída esperta: abreviava o Luísa com o ‘L” de Libertad.” Maria morreu em um domingo, juntamente com outros, e pela madrugada. “Eu acordei com os tiros regulares, que vinham do cemitério. Ouvíamos tantos tiros pela madrugada que eu não podia saber que um daqueles se disparava contra o coração de minha amiga. No dia seguinte, os pais, só os pais, foram autorizados a vestir o corpo e a enterrá-lo. Meu pai e minha mãe me contaram e me disseram que chorasse escondida em meu quarto. Não chorei. Fui ao jardim, apanhei a rosa, a maior e mais vermelha de todas as que havia naquele agosto. Guardei-a até que suas pétalas se desfizeram com o tempo. “ * Mauro Santayana é colunista político do Jornal do Brasil, diário de que foi correspondente na Europa (1968 a 1973). Foi redator-secretário da Última Hora (1959), e trabalhou nos principais jornais brasileiros, entre eles, a Folha de S. Paulo (1976-82), de que foi colunista político e correspondente na Península Ibérica e na África do Norte.

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