13/3/2011, Pepe Escobar, Tomdispatch e 14/3/2011 em Asia Times Online
Três múmias foram recentemente descobertas no subterrâneo de um templo em Luxor, no Egito. Traduzidos os hieróglifos, viu-se que eram O Choque de Civilizações, o Fim da História e a Islamofobia. Reinaram no Ocidente na segunda década do século 21, até que morreram e foram embalsamadas.
Essa parte está resolvida. Sem as três, o Oriente Médio já é um novo mundo e pode ser compreendido de outro modo. Não se sabe por quê, o Egito – até há pouco tempo terra moribunda da “estabilidade” e lambe-botas de qualquer um que estivesse no poder em Washington – foi metido no Novo Grande Jogo do Oriente Médio.
A questão é: será destino do Egito – e destino dos milhões de egípcios que tomaram as ruas em espantoso show de potente não-violência, em janeiro e fevereiro?
Impossível dizer, especialmente porque a norma é o jogo de sombras, e as realidades do poder são duras de entender. Em país no qual “a política” significou, durante décadas, “o exército”, é notável que o ator chave que supostamente coordena a “transição para a democracia” ainda seja o indicado pelo Faraó Hosni Mubarak, marechal-de-campo Mohamed Hussein Tantawi do Conselho Supremo do Exército. Mas, pelo menos, a pressão popular forçou a junta militar de Tantawi a indicar outro primeiro-ministro provisório, o amigo-da-praça-Tahrir e ex-ministro dos Transportes Essam Sharaf.
Lembrem todos que as odiadas leis de emergência da era Mubarak, parte das quais provocaram o levante egípcio, ainda são vigentes; e que intelectuais egípcios, partidos políticos, sindicatos e a mídia, todos, temem que esteja em marcha uma contrarrevolução silenciosa. Ao mesmo tempo, todos quase uniformemente insistem em que a revolução da praça Tahrir não será capturada nem reposicionada por oportunistas. Dado que se superou a divisão entre liberalismo, secularismo e islamismo quando veio abaixo o Muro do Medo psicológico, advogados, médicos, trabalhadores da indústria têxtil – boa amostra de toda a sociedade civil egípcia – sabe com clareza de uma coisa: não aceitarão nem uma teocracia nem ditadura militar. Querem plena democracia.
Não surpreende que os círculos diplomáticos ocidentais tremam ante essas evidências. Nenhum exército egípcio que seja, mesmo que só remotamente, transparente, e que preste contas a governo civil eleito, jamais, por exemplo, colaborará no sítio aos palestinos de Gaza, nem participará de programas de “tutela excepcional” da CIA, prestando-se a receber suspeitos de terrorismo para serem interrogados nas prisões egípcias, nem tomará parte na monstruosa farsa conhecida como “o processo de paz Israel – palestinos”.
Simultaneamente, há questões mais pedestres a serem enfrentadas: como, por exemplo, a transição-comandada-pelo-exército conseguirá que, até as eleições de setembro, os números da economia melhorem?
Em 2009, o Egito importou 56 bilhões e só exportou 29 bilhões de dólares. O turismo, a ajuda externa e empréstimos ajudaram a cobrir o rombo. O levante levou o turismo para o marco zero e sabe-se lá que ajudas e empréstimos alguém oferecerá ao Egito, em futuro próximo.
Seja como for, o país terá de importar nada menos que 10 milhões de toneladas de trigo em 2011 ao preço de cerca de $3,3 bilhões de dólares (se o preço dos grãos parar de aumentar) para manter a população, no mínimo, semialimentada. Essa é só uma parte da herança maldita de Mubarak, que inclui 40 milhões de egípcios, mais da metade da população, vivendo com menos de 2 dólares/dia, e herança maldita que não sumirá da noite para o dia, supondo-se que suma, algum dia.
Atropeladas por uma revolução que rola, pacífica, por todo o Oriente Médio/África do Norte [ing. MENA – Middle East and Northern Africa], Washington e uma Fortaleza Europa cada vez mais velha, trêmulas de medo, afundam-se num pântano de perplexidade. Mesmo quando amainem os ventos das rebeliões do Norte da África, nem assim se poderá dar por garantido que entenderão como todos os estereótipos culturais sempre usados para explicar o Oriente Médio, ao longo de décadas, também conseguiram sumir.
O meu slogan favorito, da Grande Revolta Árabe de 2011, ainda é a frase de Sahrhan Dhouib, intelectual tunisiano: “Essas revoltas são a resposta ao plano de [George W.] Bush, que planejava democratizar o mundo árabe com violência”. Se “choque e pavor” já se foi também para a lata do lixo da história… o que mais também irá?
Modelos para Alugar ou Vender
Dia 3/2, a Fundação Turca de Estudos Econômicos e Sociais [ing. Turkish Economic and Social Studies Foundation] publicou resultado de pesquisa realizada em sete países árabes e no Irã. Nada menos que 66% dos respondentes declararam que consideram a Turquia, não o Irã, como modelo ideal para o Oriente Médio. A mídia, do Le Monde ao Financial Times agora, é claro, já concordou. Afinal, a Turquia é democracia funcional em país de maioria muçulmana, na qual mesquitas e Estado vivem separados.
O brilhante intelectual islâmico Tariq Ramadan, neto do fundador da Fraternidade Muçulmana Hassan al-Banna, já falara também recentemente da “via turca”, como “fonte de inspiração”. No final de fevereiro, o ministro do Exterior da Turquia Ahmet Davutoglu concordou, com alguma dose de modéstia, que mal disfarçava as ambições da nova Turquia; insistiu que seu país não aspira a ser modelo de coisa alguma na região, “mas queremos ser fonte de inspiração”.
Samir Amin, economista marxista egípcio – muito respeitado em todo o mundo em desenvolvimento – suspeita que, sejam quais forem os desejos e esperanças de turcos e outros, inclusive de muitos egípcios, Washington tem planos bem diferentes para o futuro do Egito. Amim acredita que Washington deseja, não algum modelo turco, mas um modelo paquistanês para o Egito: um mix de “poder islâmico” e de ditadura militar. Amin está convencido de que jamais decolará, porque “o povo egípcio está hoje altamente politizado.”
O processo de verdadeira democratização que começou nos distantes anos 1950s na Turquia mostrou ser estrada bem longa. Apesar de tudo, apesar dos periódicos golpes militares e do continuado poder político do exército turco, as eleições foram e continuam a ser livres. O partido Justiça e Desenvolvimento [AKP], hoje no poder, foi fundado em agosto de 2001, por ex-membros do partido Refah, grupo islâmico muito mais conservador, com ideologia semelhante à da Fraternidade Muçulmana egípcia de hoje.
Enquanto o AKP ia-se moderando, contudo, a ala pró-business, pró-União Europeia dos islamistas turcos ia-se misturando com políticos de centro direita e, em 2002, o AKP finalmente chegou ao poder em Ancara. Só então puderam começar a minar lentamente a fortaleza da elite turca tradicional de Istambul, combinada aos militares, que se mantivera no poder desde os anos 1920s.
Mas o AKP não delira com desmantelar todo o sistema secular que foi implantado na Turquia pelo Pai Fundador, Mustapha Kemal Ataturk, em 1924. O Código Civil turco, que Ataturk instituiu, foi inspirado no Código Civil suíço: a cidadania baseada em lei secular. Apesar de o país ser predominantemente muçulmano, o povo simplesmente não aceitaria sistema que, como o do Irã Khomeinista, seja dirigido pela religião.
O partido AKP deve ser visto como o equivalente dos Democratas Cristãos na Europa depois dos anos 1950s – dinâmicos, conservadores orientados para o business, com raízes religiosas. No Egito, a ala moderada da Fraternidade Muçulmana tem várias semelhanças com o AKP e inspira-se nele. No novo Egito, ele será finalmente partido político legítimo, e muitos especialistas estimam que possa obter 25-30% dos votos, na primeira eleição da nova era.
Todos os caminhos levam a Tahrir
Críticos turcos – quase todos da casta que segue a orientação técnico-gerencial do ocidente – têm denunciado regularmente o modelo “democracia-com-Islã” turco de ser pouco mais que ‘casamento arranjado’ pelo marketing, ou, pior, de ser versão médio-oriental, da Rússia. Afinal, o exército preserva poder ainda desproporcional, por trás das cortinas, como garantidor da moldura secular do Estado. E a minoria curda que vive na Turquia ainda não está realmente integrada no sistema (embora, em setembro de 2010, os eleitores turcos tenham aprovado as alterações na Constituição que ampliam os direitos de cristãos e curdos).
Com seu glorioso passado otomano – observa Orhan Pamuk, que em 2006 recebeu o Prêmio Nobel de Literatura –, a Turquia jamais foi colonizada por qualquer potência mundial; por isso, as ideias de “ ‘venerar a Europa’ ou ‘imitar o ocidente’ jamais tiveram, na Turquia, as conotações de humilhação” de que falam Frantz Fanon ou Edward Said e que se aplicam ao resto do Oriente Médio e do Norte da África.
Há flagrantes diferenças entre a via turca para uma democracia desmilitarizada em 2002 e o caminho que se delineia à frente para os jovens manifestantes egípcios e os nascentes partidos políticos. Na Turquia, os principais atores são islamistas pró-business, conservadores, neoliberais e nacionalistas de direita. No Egito, são islamistas pró-sindicatos, de esquerda, liberais e nacionalistas de esquerda.
A revolução da praça Tahrir foi desencadeada, essencialmente, por dois grupos de jovens: o Movimento de Jovens 6 de Abril [orig. April 6 Youth Movement] (nascido da solidariedade com trabalhadores grevistas) e o movimento Todos Somos Khaled Said [orig. We all are Khaled Said] (mobilizado contra a brutalidade da polícia). Depois, os dois movimentos receberam a solidariedade de ativistas da Fraternidade Muçulmana e – fator decisivo – dos sindicatos organizados, das massas de trabalhadores (empregados e desempregados) que padeceram anos os efeitos venenosos do “ajuste estrutural” inventado pelo Fundo Monetário Internacional. (Ainda em abril de 2010, uma delegação do FMI, em visita ao Cairo, elogiava “os progressos de Mubarak”.)
A revolução na praça Tahrir criou as necessárias conexões de modo muito ampla e profundamente abrangente. Conseguiu exibir toda a complexa equação e ir ao coração da matéria, aproximando salários miseráveis, desemprego em massa e pobreza sempre crescente, aos meios pelos quais os asseclas de Mubarak (e o establishment militar) se autoenriqueciam. Daqui em diante, em qualquer demonstração que se faça, o modo como os militares controlam parte tão significativa da economia terá de aparecer como assunto que já não se pode ocultar – por exemplo: empresas que são propriedade do exército, continuam a comandar as indústrias da água, do azeite de oliva, do cimento, da construção, dos hotéis e do petróleo; e militares são proprietários de áreas importantes de terra no Delta do Nilo e junto ao Mar Vermelho, “presentes” que receberam pelo serviço de garantir a estabilidade do regime.
Não surpreende pois que setores chave do ocidente estejam tentando empurrar goela abaixo do Egito uma variante “segura” do modelo turco. Mas, de fato, dada a miséria extrema que devassa o Egito, é pouco provável que os jovens manifestantes e os trabalhadores e sindicatos que os apoiam sejam ‘pacificáveis’ pela possibilidade de um estado à moda turca, neoliberal e islamo-democrático. No Egito, a coalizão esquerda-liberais-islamistas busca uma modalidade de democracia amiga dos sindicatos-trabalho-trabalhadores, independente e realmente soberana. Ninguém precisa do diploma de PhD que Saif al-Islam al-Gaddafi comprou e a London School of Economics vendeu-lhe, para saber que esse tipo de nova configuração independente pode ter efeitos cataclísmicos no status quo.
“Espelho, espelho meu…”
É importante entender bem: queiram os ativistas da praça Tahrir reproduzir no Egito o sistema turco, ou não queiram, a Turquia é imensamente popular no Egito, e mais popular também, a cada dia, em todo o mundo árabe. Assim os políticos de Ancara encontram o cenário perfeito para consolidar a liderança do país no plano regional, que cresce visivelmente desde 2003; e os turcos afirmaram a própria independência ao não admitir que soldados dos EUA cruzassem por território turco, como George W. Bush deseja, a caminho de invadir o Iraque.
Essa popularidade só fez aumentar depois que se soube que oito dos nove assassinados por comandos israelenses no ataque-fiasco contra a Flotilha da Paz, em Gaza, eram cidadãos turcos. Quando o primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan condenou furiosamente Israel por aquele “amaldiçoado massacre”, imediatamente se converteu em “Rei de Gaza”. Quando Mubarak afinal respondeu às manifestações na praça Tahrir e anunciou que não seria candidato à presidência em 2011, o presidente Obama nada ou quase nada disse; o ex-primeiro-ministro britânico ‘recomendou’ que o Egito “não se precipitasse na direção de eleições”; e Erdogan outra vez fez melhor: de fato, ordenou que Mubarak renunciasse, ao vivo, pela al-Jazeera, à vista de todo o mundo muçulmano.
Enquanto Washington atrapalha-se cada vez mais, com medo de ofender o lado errado da história e, mesmo isso, sempre de modo relutante e caótico, ao lado de defensores de Mubarak do quilate de Israel e Arábia Saudita, Erdogan – analista sofisticado da política regional – não vacilou e alinhou-se aos egípcios que, na praça, lutavam para traçar o próprio destino. Valeu a pena. Acertou.
O importante não é que os EUA estejam ‘perdendo’ a Turquia, nem, como disseram alguns críticos, que Erdogan sonhe com tornar-se um califa neo-otomano (seja lá o que signifique). O que se deve entender é que já se vê com clareza um novo conceito sob o qual os turcos estão trabalhando: a profundidade estratégica.
Para saber disso, é preciso recorrer a um livro, Stratejik Derinlik: Turkiye’nin Uluslararasi Konumu (Profundidade Estratégica: a Posição Internacional da Turquia), publicado em Istambul em 2001, cujo autor é Ahmet Davutoglu, então professor de Relações Internacionais na Universidade de Marmara e, hoje, ministro das Relações Exteriores da Turquia.
Naquele livro, Davutoglu examinou um futuro que hoje parece mais próximo a cada dia, e pôs a Turquia no centro de três círculos concêntricos: 1) os Bálcãs, a bacia do Mar Negro e o Cáucaso; 2) o Oriente Médio e o Mediterrâneo Oriental; e 3) o Golfo Persa, a África e a Ásia Central. Em matéria de áreas de influência, já em 2001 o atual ministro turco já entendia que a Turquia podia exigir direitos de atuar em pelo menos oito: no Bálcãs, no Mar Negro, no Cáucaso, no Mar Cáspio, na Ásia Central turca, no Golfo Persa, no Oriente Médio e no Mediterrâneo. Hoje, aquele professor e atual ministro é ator chave e, em muitas dessas mesmas áreas de influência, muitas gente já observa atentamente a Turquia. O ministro Davutoglu vive momento notável; continua convencido de que Ancara será uma força a ser reconhecida no Oriente Médio. Para explicar, o ministro diz apenas: “O Oriente Médio é nossa casa”.
Tome-se então o conceito de “profundidade estratégica” da Turquia e combine com a Grande Revolta Árabe de 2011, e você logo entenderá por que Erdogan apostou suas fichas não só em oferecer o modelo turco como modelo útil aos egípcios e, mesmo, a todo o Oriente Médio, como, também, adiantou-se ao Egito para ocupar a função de entre a Região e o Ocidente. Que Erdogan e Davutoglu já andavam nessa direção, estava bem claro no modo como, nos últimos anos, tentaram inserir-se como mediadores entre Síria e Israel e acenaram ao Irã, com uma complexa abertura política, diplomática e econômica.
Por falar de ironias históricas: no instante em que os fundamentalistas iranianos assistiam à derrocada do regime egípcio, que sempre lhes fora hostil, outra vez, de repente, o Movimento Verde iraniano reapareceu nas ruas de Teerã – exatamente durante visita de ninguém menos que o presidente Abdullah Gul da Turquia. Os protestos foram enfrentados com luvas de veludo (pelos padrões iranianos), porque a ditadura militar do mulariato viu-se em posição fraca ante o aliado turco, já bem adiantado na via para tornar-se principal fonte inspiracional dos movimentos árabes de massa.
Java, democracia e cafezinho?
Mas nem por isso a Turquia é o único país do qual os egípcios podem obter lições úteis sobre a construção de democracias. A Turquia não é, de modo algum, a única fonte possível de inspiração. Os egípcios podem examinar também, por exemplo, a América Latina.
Pela primeira vez em mais de 500 anos, a América do Sul está, toda ela, sob governos democráticos. Como no Egito, e em muitos países da América Latina durante a Guerra Fria, a ordem do dia foram as ditaduras, com militares na administração do Estado.
No Brasil, por exemplo, a abertura política “lenta, gradual e segura” para livrar-se das ditaduras militares alongou-se por mais de uma década.
É indispensável ter paciência. O mesmo se aplica a outro modelo interessante, que os egípcios devem também considerar: a Indonésia. Ali, em 1998, Suharto, ditador senil, apoiado pelos EUA e há 32 no poder, afinal decidiu renunciar, poucos dias depois de voltar, precisamente – e de onde mais seria? – do Cairo. Naquele momento, a Indonésia parecia-se muito ao Egito de fevereiro de 2011: nação predominantemente muçulmana, aliada do ocidente, cada dia mais miseravelmente pobre e mais farta daquela ditadura militar megacorrupta que assassinou intelectuais da esquerda e, igualmente, políticos islamistas.
Hoje, 13 anos depois, a Indonésia é a terceira maior e a mais livre democracia do sudeste da Ásia, com governo secular, economia florescente e os militares expulsos da vida política.
Lembro vivamente, andando de bicicleta em maio de 1998 pela capital da Indonésia, Jakarta, a cidade literalmente em chamas, a fúria subindo aos céus em infinitas colunas de fumaça. Washington não interveio daquela vez, nem a China, nem nenhum dos 10 membros da Associação das Nações do Sudeste Asiático [ing. Association of Southeast Asian Nations]. Os próprios indonésios deram jeito em tudo. A transição se fez conforme uma Constituição existente mas, até então, quase completamente ignorada. (No Egito, a Constituição, agora, terá de ser emendada via um referendum.)
Sim, os indonésios tiveram de conviver durante algum tempo com um vice-presidente escolhido por Suharto, o afável B.J. Habibie (em tudo diferente do sucessor que Mubarak escolheu, o sinistro Omar “Xeque al-Tortura” Suleiman). Demorou um ano, para que se organizassem novas eleições, se emendassem as leis eleitorais e se pusesse fim aos deputados nomeados para o Parlamento. Seis anos se passaram, antes das primeiras eleições diretas para presidente. E, sim, a corrupção ainda é problema imenso, e riqueza e contatos certos ainda ajudam muito (como também é verdade, lembrariam alguns, nos EUA). Mas hoje a Indonésia vive sob Estado de Direito.
Nenhum “estado islâmico” teve lá qualquer chance. Hoje, só 25% dos indonésios votam para partidos islamistas, e o bem organizado Partido da Justiça e da Prosperidade, descendente ideológico da Fraternidade Muçulmana mas, hoje, ideologicamente aberto também a não muçulmanos, ocupa apenas quatros dos 37 lugares no Gabinete do presidente Yudhoyono e não conta com obter mais de 10% dos votos nas eleições previstas para 2014.
Enquanto a Indonésia permanece fechada aos EUA e é incansavelmente cortejada por Washington como possível contrapeso à China, o Brasil, sob a presidência do imensamente popular presidente Luis Ignacio “Lula” da Silva traçou caminho ainda mais independente para o próprio país e, seguindo esse exemplo, o mesmo fizeram muitos países da América Latina. Todo o processo consumiu quase uma década e historiadores futuros talvez o considerem, no mínimo, tão significativo quanto a derrubada do Muro de Berlim.
Na Europa Oriental, 1989 pode ser visto em parte como uma cadeia de rebeliões populares, movidas por pessoas que queriam acesso ao mercado global. A Grande Revolta Árabe, por sua vez, foi levante contra, em grande parte, a ditadura daquele mesmo mercado.
Os manifestantes, da Tunísia ao Bahrain, clamam por inclusão social e novos, melhores contratos sociais e econômicos. Não surpreende que esse espantoso levante em andamento seja visto em toda a América Latina com tremenda empatia e com uma emoção do tipo “Nós fizermos. Agora, eles também estão fazendo.”
O futuro, é claro, é desconhecido, mas é possível que, daqui a uma, duas décadas, veja-se que os egípcios e outros povos árabes não abraçaram a via turca, nem a via brasileira nem a via indonésia e que, em vez disso, abriram novas vias pioneiras. É possível que no futuro, do Cairo a Túnis, de Benghazi a Manama, de Argel a (“se Alá quiser”) uma Arábia Saudita pós-Casa de Saud, os povos estejam inventando uma nova cultura política e os novos contratos econômicos que virão com ela. E que serão soluções locais e, esperemos, soluções democráticas às quais se terá chegado por vias novas e surpreendentes.
O que nos leva de volta à Turquia. É perfeitamente viável que o Islã seja um dos blocos sobre os quais se construirá algo inteiramente novo, algo sobre o que ainda não há hoje qualquer pista, algo tão impensável quanto foi, antes de acontecer, na Europa, a separação entre política e religião. No espírito de maio de 1968, já quase se pode ver um Banksy[1] árabe, grafitando pelas paredes das capitais árabes: A Imaginação no Poder!
[1] Artista britânico.
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