terça-feira, março 29, 2011

Caiu a ficha



Caiu a ficha! A expressão não é elegante, mas cabe como uma luva aos economistas que ao pretenderem criar uma “ciência”, construíram uma “religião”: uma “ciência econômica” que acredita em leis naturais que governam o funcionamento do sistema econômico e são, portanto, independentes da história, da geografia, da psicologia, da antropologia etc.

Tal crença apoiada numa formalização útil, mas exagerada para lhe dar um ar “científico”, interditou ou reduziu à heterodoxia visões alternativas do mundo e produziu o míope “pensamento único” que empobreceu a economia política. Está agora a desfazer-se sob os nossos olhos, sob a pressão de velhíssimos ortodoxos! Esses tentam, desesperadamente, entender como foi possível a crise de 2007/2009 que emergiu como uma “surpresa” numa conjuntura que parecia de plena tranquilidade e atribuída ao sucesso daquela “ciência monetária”…

Economistas quiseram criar uma ‘ciência’ e criaram uma ‘religião’

Nada pode demonstrar melhor essa tragédia do que as contribuições de brilhantes economistas (todos do “mainstream”) à conferência “Repensando a Política Macroeconômica”. Ela foi organizada às expensas do FMI, por Olivier Blanchard (economista-chefe do FMI e autor de dois clássicos, um dos quais, desde 1989, dominou o estudo “sério” da macroeconomia), David Romer (autor da bíblia “Macroeconomia Avançada”), Joseph Stiglitz (Nobel, 2001) e Michael Spence (Nobel, 2001).

Na semana passada (dia 23) Blanchard publicou um minúsculo e devastador artigo “O Futuro da Política Macroeconômica: Nove Conclusões Tentativas”, resumindo os resultados da conferência (obviamente, uma visão pessoal, mas seguramente não viesada):

1ª) Entramos num magnífico (”Brave”) mundo novo, muito diferente do que vivíamos em termos do exercício da política macroeconômica;

2ª) Na velha discussão entre o papel relativo dos mercados e do Estado, o pêndulo avançou – pelo menos um pouco – na direção do Estado;

3ª) Há distorções sérias e muito maiores do que pensávamos na macroeconomia. Elas foram ignoradas porque supúnhamos que fossem pertinentes à microeconomia. Quando integramos as finanças à macroeconomia descobrimos que suas distorções são relevantes para a segunda e que a regulação precisa ser aplicada também aos reguladores. A economia comportamental e sua prima, a finança comportamental, são peças centrais da macroeconomia;

4ª) A macroeconomia tem múltiplos objetivos e muitos instrumentos (ferramentas) para implementá-los. A política monetária precisa ir além da estabilidade inflacionária. Precisa acrescentar o PIB e a estabilidade financeira como objetivos e incorporar medidas macroprudenciais entre os seus instrumentos. A política fiscal é mais do que “gastos” menos “receitas” e seus “multiplicadores” que influenciam a economia. Existem, potencialmente, dezenas de instrumentos, cada um com seus próprios efeitos dinâmicos que dependem do estado da economia e das outras políticas;

5ª) Temos muitos instrumentos e não sabemos exatamente como utilizá-los. Em muitos casos, não temos certeza sobre o que eles são, como e quando devem ser utilizados e se vão ou não funcionar. Por exemplo, nós não sabemos de fato, o que é a liquidez. Logo, “relação de liquidez” é apenas a continuação do que não sabemos;

6ª) Esses instrumentos são potencialmente úteis, mas levantam problemas por seu custo político. Por outro lado, os instrumentos podem ser mal utilizados. Ficou claro nas discussões que muitos pensam que existem razões plausíveis para o controle de capitais, ou para a política industrial (que todos sabem ter limites), mas o governo pode escolhê-los porque não lhe convém, politicamente, usar os instrumentos macroeconômicos corretos;

7ª) Para onde vamos, então? Em termos de pesquisa econômica o futuro é excitante. Há um imenso número de questões que devemos esclarecer e sobre as quais devemos trabalhar;

8ª) Os problemas são difíceis. Como não sabemos bem como usar os novos instrumentos e eles podem, potencialmente, ser mal utilizados, como devem proceder os formuladores da política econômica? O melhor é uma política cuidadosa e de pequenos avanços. O pragmatismo é fundamental;

9ª) Devemos ser modestos em nossas esperanças. Vão acontecer novas crises que não antecipamos. A despeito de todo nosso esforço podemos assistir a outras, no velho estilo das clássicas crises de crédito. Seria possível nos livrarmos delas com uma boa teoria dos agentes e uma regulação correta ou elas são parte do comportamento humano (endógenas ao sistema de economia de mercado) de forma que não importa o que façamos, elas sempre nos visitarão?

Abre-se, portanto, um vasto campo de conhecimento a ser explorado. Não devemos desanimar ou nos deixar enganar por essa visão relativista (de aparência quase niilista com relação a uma “ciência econômica”). O conhecimento acumulado nos últimos 300 anos, de cunho menos pretensioso, que transcende “escolas”, “ideologias” e “idiossincrasias” – a velha economia política – é, comprovadamente, rico de ensinamentos para a boa governança do Estado. Ele mostra a importância absoluta da boa coordenação entre a política fiscal e a política monetária, do incentivo correto aos agentes, da boa regulação dos mercados e a necessidade do respeito às identidades da contabilidade nacional.

Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento. Escreve às terças-feiras

E-mail contatodelfimnetto@terra.com.br

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