Gilbert Doctorow, Rússia Insider
https://www.blogger.com/blogger.g?blogID=36400348#editor/target=post;postID=3149408377098199481
O ministro de Relações Exteriores da Rússia Sergey Lavrov falou impressionantemente numa conferência de imprensa, que a mídia-empresa ocidental fingiu que não aconteceu. Disse que, para a Rússia, basta. Que se acabou a conversa de 'business como sempre' com a União Europeia ou com os EUA. Que se inicia um novo estágio na história, que só terá futuro se baseado em direitos iguais e em todos os demais princípios da lei internacional.
Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu
Na 3ª-feira, 26/1/2016, o ministro de Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov, participou de sua conferência anual com a imprensa, à qual estavam presentes cerca de 150 jornalistas, inclusive o correspondente da BBC Steve Rosenberg e muitos outros representantes dos mais conhecidos veículos da mídia-empresa ocidental. É evento anual, que tem o objetivo de passar em revista as questões que o Ministério enfrentou no ano anterior e avaliar os resultados alcançados.
As palavras iniciais do ministro foram concisas, não mais de 15 minutos. As restantes duas horas foram consumidas em perguntas feitas pelos jornalistas presentes. Com o microfone andando de mão em mão entre jornalistas de todos os cantos do mundo, a discussão cobriu variedade muito grande de assuntos. Por exemplo, cito as negociações sobre novas conversações de paz para a Síria em Genebra; comentários de David Cameron sobre as descobertas de um inquérito no Reino Unido sobre o assassinato de Litvinenko; as possibilidades de restabelecerem relações diplomáticas com a Geórgia, a possibilidade de mais um 'res-set' com os EUA; e possibilidades de solução para o conflito em torno das ilhas Kurile sul, e de concluir um tratado de paz com o Japão.
Que eu saiba, nenhuma matéria sobre o evento apareceu em qualquer veículo, jornal ou canal de TV norte-americano, francês, britânico ou alemão. Não por falta de material importante ou substancial, incluindo o título sobre "acabou-se a conversa de 'business' como sempre". Como disse há algum tempo, depois de blecaute semelhante no noticiário sobre evento na Rússia, a porta-voz do Ministério de Relações Exteriores, Maria Zakharova, conhecida pela língua afiadíssima: "Nem se sabe o que fazem em Moscou tantos correspondentes estrangeiros de tão respeitados veículos, se os jornais deles nada publicam... O que fazem eles o dia todo, aqui em Moscou?"
Como sempre faz, o Ministério postou no Youtube o vídeo integral, de três horas de duração. Também postou transcrições em russo e em inglês no website www.mid.ru. A versão em russo cobre 26 laudas datilografadas em espaço um. Usei essa versão, porque sempre prefiro trabalhar com textos em idioma original e, sendo preciso traduzir, gosto de traduzir eu mesmo. A versão em inglês cobre cerca de 40 páginas, porque o russo é idioma mais sintético que o inglês.
Observei, primeiro no Pervy Kanal da televisão russa, depois na transcrição, o quanto Lavrov conhece impressionantemente bem todas as questões que se discutiram e o cuidado do ministro para oferecer respostas detalhadas, que se estendiam por vários minutos, sem consultar qualquer nota escrita.
Em segundo lutar, era óbvio que Lavrov falava ali mais 'livremente', sem recorrer a eufemismos diplomáticos, do que em qualquer outra ocasião que eu o tenha ouvido falar. Concluí que recebeu autorização do presidente Putin para falar o mais claramente possível, sem impedimentos de qualquer tipo. Dadas a experiência de Lavrov, que já é um dos ministros de Relações Exteriores que permaneceu no cargo por mais tempo dentre todas as grandes potências e sua brilhante inteligência, Lavrov ofereceu ali não um, mas vários ensaios, como se os estivesse ditando, para posterior revisão e publicação.
Por essas razões, decidi dividir meu relato daquela conferência de imprensa, em duas partes. Uma, para oferecer Lavrov 'em suas próprias palavras'; e a outra, com minhas conclusões sobre o ambiente internacional nos anos futuros, consideradas as posições básicas da Rússia. Concentro-me, especialmente no possível fim das sanções norte-americanas e europeias contra a Rússia e em como o próximo governo dos EUA pode preparar-se para relações com a Rússia, assumindo que nada mude muito no pensamento das elites norte-americanas sobre o papel do país no mundo.
Parte 1: Sergey Lavrov em suas próprias palavras
Para essa primeira parte, extraí alguns trechos que caracterizam todo o amplo arco de ideias de Lavrov e do Kremlin sobre relações internacionais, aplicando a elas o prisma de sua Realpolitik e focados, para começar, nas relações EUA-Rússia. É recorte essencial, desde que, ao ver só as árvores, não percamos de vista a floresta.
Com respeito aos EUA, as relações bilaterais transcendem as contingências do próprio ministro. Na verdade, toda a política externa dos EUA é sobre relações com os EUA. Por isso selecionei os dois primeiros excertos que se leem entre aspas, abaixo. O terceiro excerto, sobre sanções, parece ter mais a ver com relações com a União Europeia. Selecionei-o porque o fim das sanções com certeza será questão chave de política externa que a Rússia enfrentará nos primeiros seis meses desse ano, e por trás dela vê-se a posição dos EUA. Resumi trechos onde me pareceu adequado, para não repetir argumentos (no texto abaixo, meus resumos aparecem em itálicos).
Pergunta 1: Há algum 'res-set' possível nesse último ano do governo de Barack Obama?
"Não é pergunta que nós possamos responder. Nossas relações de Estado caíram a ponto lamentável, por mais que houvesse excelentes relações pessoais entre o ex-presidente Bush dos EUA e o presidente Putin da Rússia. Quando o presidente Barack Obama assumiu a Casa Branca e a ex-secretária de Estado Hillary Clinton ofereceu um "res-set," foi reflexo do fato de que os próprios norte-americanos afinal viam a anormalidade daquela situação – quando Rússia e EUA não cooperavam para resolver problemas que, sem os dois estados, não tinham solução possível...
"Demos resposta construtiva ao 'res-set.' Dissemos que apreciávamos a decisão da nova presidência, para corrigir os erros dos predecessores. Conseguimos muita coisa: o Novo Tratado START [Strategic Arms Reduction Treaty]; a entrada da Rússia na Organização Mundial do Comércio; um conjunto de novos tratados para várias situações de conflito.
Até que, sem mais nem menos, tudo começou a regredir rapidamente de volta ao zero. Agora todos, inclusive nossos colegas norte-americanos, nos dizem: 'Basta cumprirem os acordos de Minsk sobre a Ucrânia, e imediatamente tudo voltará ao normal. Imediatamente cancelaremos as sanções e abrir-se-ão possibilidades tentadoras de cooperação entre Rússia e os EUA em questões muito mais agradáveis, não só para gestão de crises; imediatamente, ganhará forma um programa de parceria construtiva.'
"Os russos estamos abertos à cooperação com todos os países, em bases igualitárias, mutuamente vantajosas. Claro que os russos não desejamos que alguém construa as próprias políticas baseadas no pressuposto de que a Rússia, não a Ucrânia, é quem teria de cumprir os acordos de Minsk. Os acordos trazem, escrito, quem deve cumpri-los. Espero que os EUA tenham percebido isso. Pelo menos, meus mais recentes contatos com o secretário de Estado John Kerry; e os contados de Surkov, Assessor da Presidência da Rússia, com a vice-secretária de Estado Victoria Nuland, indicam que os EUA, sim, conseguem entender a essência dos acordos de Minsk. Grosso modo, todo mundo entende tudo...
"Acabo de dizer que há gente recomeçando a propor um novo 'res-set.' Se cumprirmos (se a Rússia cumprir) os acordos de Minsk, nesse caso imediatamente tudo ficará maravilhoso, com possibilidades futuras esplêndidas e tentadoras.
"Mas o resfriamento das nossas relações com o governo do presidente Barack Obama dos EUA e o fim do período associado com o 'res-set' começaram muito antes da Ucrânia.
Lembremos como aconteceu. Primeiro, quando finalmente conseguimos o 'de acordo' de nossos parceiros ocidentais sobre condições para nos integrarmos à OMC que fossem aceitáveis para a Rússia, os norte-americanos puseram-se a dizer que não interessava a eles manter a emenda Jackson-Vanik. Que eles seriam privados dos privilégios e vantagens que se conectam à participação da Rússia na OMC. E começaram a trabalhar para excluir aquela emenda.
Mas os norte-americanos não seriam os norte-americanos se simplesmente abolissem a emenda e dissessem "Pronto, está feito, agora podemos cooperar normalmente". Nada disso. Imediatamente, conceberam a tal [lei]'Magnitsky Act,' por mais que eu tenha certeza de que não aconteceu a Magnitsky o que se divulgou que teria acontecido. Espero sinceramente que, mais dia menos dia, a verdade venha à tona e todos afinal saibamos o que realmente aconteceu.
"É terrível como se construíram provocações e especulações em torno da morte de um homem. Fato é que aconteceu, os senhores aqui presentes sabem quem fez lobby para aprovar essa 'Lei Magnitsky', a qual imediatamente substituiu a emenda Jackson-Vanik.
"Tudo isso começou muito antes de se falar sobre Ucrânia, por mais que os norte-americanos agora tentem atribuir tudo a violações de princípios da OSCE.
Hoje, toda e qualquer coisa que aconteça entre o ocidente e a Rússia é explicado 'por que' a Rússia teria deixado de cumprir suas obrigações; porque não teríamos respeitado a ordem mundial implantada na Europa depois do Helsinki Act, etc.
Todas essas são tentativas para justificar e encontrar desculpas para manter a política de contenção. Na verdade, essa política nunca terminou.
"Depois da 'Lei Magnitsky' houve reação absoluta e completamente inadequada, super dimensionada, quanto ao que aconteceu a Edward Snowden, que foi trazido para a Rússia contra nossa vontade. Não sabíamos coisa alguma sobre isso. Snowden não tinha passaporte (seus documentos foram cancelados durante a viagem, em voo). Não podia ir para lugar algum, saindo da Rússia, por causa de decisões que já haviam sido tomadas em Washington.
Só nos restou dar-lhe a chance de permanecer na Rússia, para garantir que estaria a salvo, conhecendo bem os artigos das leis que ameaçavam aplicar-lhe. Os norte-americanos não fizeram segredo de nada disso. O que fizemos foi simplesmente garantir proteção elementar a uma pessoa que estava com a vida ameaçada.
"Na sequência, o presidente dos EUA Barack Obama cancelou uma visita à Rússia. Inventaram um escândalo horrível. Dúzias de telefonemas chegavam, do FBI, da CIA, do Departamento de Estado. Houve contatos diretos com o presidente. Disseram-nos que, se não entregássemos Snowden, as relações seriam rompidas. Os EUA cancelaram a visita. Aquela visita não houve, mas o presidente dos EUA veio para a reunião do G-20 em São Petersburgo, onde ele, vale destacar, fez coisa bem útil – chegamos a um acordo sobre os princípios para a remoção das armas químicas sírias.
"Ucrânia foi apenas pretexto. A crise ucraniana não está tão conectada como se supõe com alguma preocupação que seria justificada com suposta violação, pela Rússia, dos princípios de Helsinki (embora tudo tenha começado com o Kosovo, com o bombardeio da Iugoslávia, etc.).
O 'caso' Ucrânia foi expressão de irritação porque o coup d'état não levou diretamente aos resultados esperados pelos que o promoveram e apoiaram.
"Digo-lhes honestamente que não guardamos qualquer ressentimento. Essa não é nossa tradição nas relações entre estados. Compreendemos profundamente que a vida é mais dura que esquemas românticos, idealizados, como 'res-sets' ou similares. Também compreendemos que vivemos num mundo no qual os choques de interesses são duríssimos, e que nos chegam desde o tempo em que o ocidente dominava completamente o mundo.
Tudo isso passa hoje por um longo período de transição na direção de sistema mais estável, no qual não haverá um nem mesmo dois polos dominantes, mas vários, muitos diferentes polos. A transição é longa e dolorosa. Velhos hábitos demoram a morrer. Compreendemos perfeitamente tudo isso.
"Compreendemos que os EUA têm interesse em que haja número menor de concorrentes com território, influência, poder militar, economia comparáveis aos deles.
Vê-se a mesma coisa também nas relações entre EUA e China, no modo como os EUA operam com a União Europeia, tentando criar um cerco em torno dela com aquela Parceria Trans-Atlântica, e, para o leste da Rússia, com a outra 'parceria', a Parceria Trans-Pacífico, que exclui Rússia e China. O presidente Vladimir Putin falou sobre isso detalhadamente quando analisou o processo ativado hoje na economia e política mundiais. Nós compreendemos muito bem tudo isso.
"Claro que cada época traz com ela novas tendências, quadros conceituais e modos de pensar de uma ou de outra elite, especialmente nos grandes países que veem a seu modo as maneiras para lutar por seus interesses. Seria muito ruim, seria ruinoso para todos nós, se esses processos abandonassem o contexto das normas e leis internacionais geralmente aceitas.
Se acontecer desse modo, dito bem claramente, tudo vira de pernas para o ar, e seríamos arrastados para um mundo de anarquia e caos – mais ou menos o que já se vê no Oriente Próximo, talvez sem derramamento de sangue. Cada um se porá a agir como entender necessário, e nada de bom brota daí. É muito importante observar algum tipo de regras gerais de jogo para todos.
"Respondendo sua pergunta: eu gostaria muito de que os EUA tivessem um 'res-set' com o mundo inteiro, um 'res-set' geral, de modo que todos pudéssemos nos reunir e confirmar o compromisso de todos com a Carta da ONU, com os princípios ali incorporados, incluindo a não interferência em assuntos internos dos estados, respeito à soberania e integridade territorial e ao direito dos povos à autodeterminação, ao direito dos povos de escolherem o próprio futuro, sem interferência externa."
Pergunta 2 : Na Conferência de Segurança de Munique em 2007, o presidente Putin disse ao ocidente que "vocês precisam de nós mais do que nós precisamos de vocês". A posição da Rússia ainda é essa?
"Idealmente, os dois lados necessitam um do outro para fazer frente aos desafios e ameaças. Mas a realidade é diferente. O ocidente nos pede ajuda muito mais frequentemente do que nós pedimos a ele."
Como resposta às sanções ocidentais, lutamos hoje para ser autossuficientes e promovemos substituição de importações. Não queremos nos isolar do mundo. Estamos prontos a cooperar, desde que a cooperação dê-se em termos igualitários.
"Temos de fazer de tudo para garantir que não dependamos do arbítrio de um país ou grupo de países, sobretudo de nossos parceiros ocidentais (como aconteceu quando se ofenderam porque apoiamos a população de russos na Ucrânia, que não reconheceu o coup d'etat). Citei Dmitry Yarosh [líder dos nacionalistas radicais do Setor Direita] que queria destruir os falantes de russo na Ucrânia ou privá-los de seus direitos. Queremos nos preservar contra situações desse tipo.
"(...) Observo que não somos os russos que estamos correndo aos nossos colegas europeus e dizendo "façamos alguma coisa para remover as sanções". Não. Os russos não estamos fazendo isso. Estamos focados em não depender desses ziguezagues da política ocidental, em não depender de a Europa fazer o que os EUA ordenam. Mas em nossos contatos bilaterais, nossos colegas europeus, quando nos procuram ou nos encontramos em fóruns internacionais, dizem: 'Vamos pensar em alguma coisa. Ajudem-nos a levar adiante os acordos de Minsk, ou essas sanções vão provocar grande dano. Queremos é virar essa página.' Fato é que nessa situação eles precisam mais de nós que nós deles. Inclusive para cumprir os acordos de Minsk. (...) Sim, temos influência no Donbass e os apoiamos. Sem dúvida, se não tivessem nossa ajuda e os suprimentos humanitários, o Donbass estaria em situação muito grave. Mas é preciso também que alguém exerça influência em Kiev. É necessário que o ocidente influencie as autoridades em Kiev. Até agora porém nada disso está acontecendo.
"Ou considerem a questão do programa nuclear iraniano. Nos estágios decisivos daquelas negociações, nós fomos literalmente bombardeados com solicitações de que era necessário resolver as questões da exportar urânio enriquecido em troca de urânio natural, que seria a condição chave para alcançarem-se os acordos; quando era necessário resolver a questão de quem converteria os locais de enriquecimento em Fordu em pesquisa para produzir isótopos médicos, etc. Vieram a nós com pedidos que implicavam significativa carga financeira, ou, no mínimo, que não traziam qualquer benefício material. Mas nós cumprimos nossa parte do trabalho. Agora, estão aí nos convocando, e nossos colegas chineses, para encaminharmos o problema norte-coreano 'ajudem-nos a fazer algo que obrigue a Coreia do Norte a cumprir suas obrigações.'
"Ou, então, vejam o caso da Síria."
"Não consigo lembrar de qualquer pedido de ajuda que tenhamos feito recentemente aos nossos colegas ocidentais. Entendemos que não há sentido algum em fazer solicitações. Depois que você assina acordos na conclusão de negociações, o que resta a fazer é cumprir as obrigações assumidas, não encaminhar pedidos de favores."
Questão 3: Sobre se as sanções terão fim em breve
"(...) Eu lhe diria que, entre grande número de nossos parceiros há consciência de que não podem continuar assim por muito mais tempo, que a situação é danosa para eles.
"Nossa justificativa para falar sobre algumas possíveis mudanças positivas resume-se ao seguinte: nossos parceiros ocidentais com frequência cada vez maior começam a compreender que caíram numa armadilha que eles mesmos criaram, quando disseram que levantarão as sanções depois de a Rússia 'cumprir os acordos de Minsk.
"Parece que agora compreenderam que, muito provavelmente, foi um lapsus linguae. Mas em Kiev ouvia-se aquilo com muita frequência, e a coisa era interpretada como uma indulgência que os 'autorizava' a não cumprirem os acordos de Minsk.
"A evidência de que não cumprem o que assinaram não significa só que Kiev não tem o dever de tomar quaisquer medidas e de cumprir suas obrigações. Significa também que o ocidente terá de manter as sanções contra a Rússia. Foi necessário provar tudo isso a alguns cavalheiros que estão em Kiev soprando brasas para incendiar atitudes radicais."
Lavrov diz que falou com o representante russo à mais recente sessão do Grupo de Contato e que ouviu sobre essa atitude dos intermediários da OSCE que trabalham como coordenadores. Diz que também sentiu isso nas discussões no Formato Normandia em nível de ministros de Relações Exteriores. A próxima reunião está marcada para 8 de fevereiro.
"O ocidente compreende que a presente situação é completamente sem esperança, mesmo que todos finjam que a Rússia tem de cumprir os acordos de Minsk, mas a Ucrânia não poderia fazer coisa alguma – não poderia mudar a Constituição, não poderia dar status especial ao Donbass, não poderia oferecer uma anistia, não poderia organizar eleições em comum acordo com o Donbass.
"Todos compreendem que ninguém resolverá esses problemas pela Ucrânia. Todos compreendem que é anormal, algo patológico que emergiu, convertendo a crise ucraniana – que surgiu como resultado de um golpe de estado absolutamente ilegal, anticonstitucional –, em régua para aferir todas as relações entre a Rússia e o ocidente.
"Tudo isso é absolutamente anormal, situação doentia, artificialmente inflada por países muito distantes da Europa. A Europa não quer continuar como refém dessa situação. Para mim, isso é absolutamente óbvio."
Parte 2: Conclusões gerais
Na primeira parte desse meu exame da conferência anual de imprensa do ministro de Relações Exteriores da Rússia Sergey Lavrov, realizada em Moscou, dia 26 de janeiro, apresentei três longos excertos da transcrição publicada pelo Ministério. Minha intenção era dar aos leitores uma pitada do método de argumentar de Lavrov e do tom sóbrio em que conduziu o encontro, sem se amparar em qualquer nota escrita e sem conhecer as perguntas que os jornalistas fariam. Quis oferecer minha tradução, para escapar dos termos-códigos, como "solicitações", que o ocidente encaminharia à Rússia, e dar ao leitor noção mais clara do que realmente passa pela cabeça do ministro russo.
Na fala de abertura – que trouxe redigida – Lavrov já fixara alguns dos pontos chaves da abordagem geral dos assuntos internacionais, a que a Rússia chegou servindo-se de duas ferramentas analíticas: o realismo e o interesse nacional da Rússia. A questão número 1 que a Rússia vê à frente dela e do mundo, do ponto de vista russo, é chegar a um novo sistema de gestão dos assuntos internacionais. As relações da Rússia com o ocidente são parte e parcela desse desafio mais amplo.
O novo sistema esperado será construído em plena igualdade de relações entre estados, respeito por seus interesses e não interferência em assuntos internos. Numa palavra, Lavrov estava repetindo a convocação que Vladimir Putin fez para que as nações se reorientassem na direção dos princípios da Carta da ONU, que o presidente russo enunciou em New York em setembro de 2015 na reunião que comemorou o 70º aniversário da Assembleia Geral. O novo sistema de governança global será resultado de reformas nas instituições internacionais básicas, ao mesmo tempo em que o poder político e econômico é realocado de modo que reflita as mudanças no poder econômico e militar relativo das nações, em relação ao tempo em que aquelas instituições foram estabelecidas.
Nela mesma, nada há de especialmente novo nessa visão. É de domínio público há anos e já inspirou uma conclamação para que se reajustem as potências votantes dentro do FMI.
A novidade, que chocará muitos em Washington, foi a repetida e clara identificação dos EUA, na fala de Sergey Lavrov, como a potência que obra para frustrar a renovação da governança global, porque obcecadamente agarra-se ao controle hegemônico das instituições, ao mesmo tempo em que busca consolidar ainda mais o controle que ainda exerce sobre seus aliados na Europa e na Ásia, à custa dos interesses nacional dos aliados, sacrificados à promoção do exclusivo interesse dos EUA.
Por isso Lavrov mencionou os projetos das 'parcerias' TPP e TIPP. Por isso mencionou repetidas vezes a ação de forças estranhas, de fora, sempre em clara referência aos EUA, que impuseram sanções europeias contra a Rússia, contra a vontade de vários estados-membros da União Europeia.
A certa altura, respondendo a um jornalista do Japão, Lavrov abandonou completamente a linguagem velada. Disse que a Rússia é favorável, em princípio, a dar assento permanente ao Japão no Conselho de Segurança da ONU, mas que o país só votará nessa direção quando for absolutamente claro e garantido que o Japão, nas discussões e nas votações, manifestará o interesse e a posição nacional do Japão, contribuindo para ampliar a diversidade de pontos de vista, em vez de meramente repetir o que os EUA mandem dizer, como mais um país vassalo.
É interessante que Lavrov tenha explicitamente negado que a Rússia sinta-se ofendida, ou, como traduzi alternativamente, guarde "qualquer ressentimento" quanto ao modo como tem sido tratada pelos EUA na espiral descendente de relações, do ponto mais alto do 'res-set' até o fundo do poço em que estão hoje. O contexto dessa observação é a incansável campanha de desmoralização de que Putin é alvo, sobretudo dos discursos do presidente da Rússia. Observações feitas por Putin, de o quanto as coisas saíram erradas desde o final da Guerra Fria são regularmente classificadas como "diatribes" e "revisionismo", para dizer que seriam agressivas, ameaçadoras e possivelmente irracionais.
Lavrov diz que Rússia reconhece que a vida é dura, o mundo é difícil e a concorrência é cruel. Esse o real sentido da fala 'para as manchetes', segundo a qual não há como voltar ao clima de "business, como sempre", ou às noções idealistas que subjazem aos 'res-sets' mesmo depois de as sanções contra a Rússia terem sido levantadas. Mas a Rússia está, mesmo assim, aberta a negócios que se construam em termos igualitários e mutuamente interessantes, com vantagens para todos os lados onde e quando sejam possíveis.
Quanto a esse ponto, Lavrov está em perfeita harmonia com especialistas norte-americanos como Angela Stent da Georgetown University, que aconselha o próximo governo que assumirá em 2017 para que não planeje qualquer tipo de novo 'res-set.' Lavrov e Stent chegaram à mesma conclusão, apesar de terem partido de premissas diametralmente opostas sobre quem é responsável pela nova realidade.
Lavrov fala de estarmos atravessando período longo e dolorosa de transição, deixando para trás um mundo dominado pelo 'ocidente', o qual por sua vez é dominado por uma única potência, os EUA. E nos encaminhamos na direção de mundo multipolar com vários estados que terão participação-chave na governança global. Mas isso não exclui melhorias e Lavrov parece compartilhar da visão que começa a disseminar-se na mídia ocidental, segundo a qual as sanções de EUA e Europa serão levantadas em futuro próximo. Outro exemplo recente dessa expectativa que já gera euforia nos círculos comerciais do 'ocidente' apareceu em Bloomberg online na véspera da conferência de imprensa de Lavrov: "Russian Entente Nears as Allies Hint at End of Uckraine Sanctions."
A importante mensagem de Sergey Lavrov, dia 26, é que Rússia não mudou nem mudará o que faz e sempre fez. Faz-nos lembrar que a Rússia não implorou alívio das sanções, nem está negociando o apoio que dá a Bashar al-Assad na Síria, em troca de alívio nas sanções a propósito da Ucrânia. Talvez tenha certeza de que EUA e União Europeia apresentação o fim das sanções numa proposta de tipo toma-lá-dá-cá. Mesmo assim, a realidade implicará que os EUA terão de afastar-se de uma de suas políticas mais insustentáveis, porque agride muito mais interesses ocidentais, que interesses russos. Esse é o sentido de Lavrov tanto insistir em que o ocidente precisa da Rússia mais do que a Rússia, do ocidente.
Já é óbvio o dano econômico que agricultores e fazendeiros europeus e outros setores seletos da economia estão sofrendo, causado pelo embargo imposto à Rússia. O dano causado a interesses dos EUA é menos óbvio. Mas já apareceu destacado recentemente em artigo publicado na revista Foreign Affairs, de autoria de membro do Cato Institute e intitulado "Not-So Smart Sanctions" [lit. Sanções não muito espertas].
Ali se lê que o establishment de Washington está sim, afinal, dando sinais de preocupações com a criação, por russos e chineses, de instituições financeiras globais alternativas às existentes, com base em Washington. O Banco dos BRICS Bank, o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura, a introdução de centros de compensação bancária para concorrer com o sistema SWIFT: todas essas são iniciativas que visam a pôr fim, de uma vez por todas, às capacidades dos EUA para infligir dor econômica incapacitante a quem caia em suas listas de inimigos, como os EUA ainda puderam fazer para punir o Kremlin pela reintegração da Crimeia e as ações russas no Donbass.
Lavrov falou repetidamente sobre defender 'interesses nacionais' como princípio guia das relações internacionais. Aí se ouvem ecos de Hans Morgenthau, fundador e principal teórico da Escola Realista norte-americana, que se pode dizer que lá estava falando, ao lado de Lavrov. Mas Lavrov e os russos levaram a um patamar superior os princípios expostos em Politics Among Nations [A política entre as nações], livro famoso entre gerações de universitários nos EUA nos cursos de Políticas de Governo.
A Rússia de Lavrov está conclamando as nações a romper cadeias, a parar de castigar os próprios interesses nacionais, para só ouvir o que lhes diga Washington. As nações devem concorrer e disputar influência, mas em condições de livre intercâmbio de ideias e livre mercado, sempre jogando por regras reconhecidas por todos. Se se seguem as regras, o ambiente internacional não colapsa no caos, por maiores que sejam as contradições entre as nações. Eis uma lição que os institucionalistas liberais nos EUA ou nunca aprenderam na escola, ou esqueceram depois dos exames de fim de ano.*****
Nenhum comentário:
Postar um comentário