Se instalou no Brasil um círculo vicioso entre queda de arrecadação, corte do gasto público e prolongamento da recessão, que o ajuste fiscal não contornará
Pedro Paulo Zahluth Bastos *
É evidente que aqueles que defenderam realizar um ajuste fiscal em meio a uma economia em forte desaceleração cíclica erraram de diagnóstico. Anunciaram publicamente que a política fiscal pró-cíclica não teria efeito relevante sobre o crescimento e poderia até mesmo reanimá-lo rapidamente.
Alguém lembra que, em novembro de 2014, Dilma Rousseff afirmou que realizaria um ajuste fiscal que não prejudicaria a demanda agregada e o crescimento econômico? Que, já em janeiro de 2015, Joaquim Levy afirmou que teríamos, no máximo, um trimestre de recessão?
Depois de dois trimestres de recessão, Levy disse recentemente que a recuperação será uma questão de meses. Esqueceu de dizer quantos.
Alguém lembra, em dezembro de 2014, os analistas do mercado financeiro consultados pelo boletim FOCUS do Banco Central previam, em média, um crescimento econômico de 0,8% em 2015 a despeito do esforço para gerar um superávit fiscal primário de 1,2% do PIB? Que, na mesma época, as agências de classificação do risco de crédito soberano recomendavam o ajuste fiscal?
Depois que o governo realizou um esforço fiscal de 2,3% do PIB em 2015 para tentar gerar um superávit de 1,2% e, ainda assim, corre o risco de repetir ou agravar o déficit de 0,63% de 2014, os mesmos analistas do mercado financeiro preveem agora uma recessão superior a 2,0% do PIB e uma das agências de classificação de risco cortou o investment grade do país, sem que ninguém viesse a público para admitir o erro da recomendação pré-keynesiana feita em 2014. Aliás, reforçando-a, por motivos que abordaremos depois.
Alguém lembra, depois que se noticiou que o resultado fiscal de 2014 registrou um déficit de 0,63% do PIB por causa da contração das receitas tributárias em termos reais – manifestação óbvia da retração cíclica do gasto privado -, o Ministério da Fazenda alegou que continuava mirando o resultado de 1,2% do PIB, o que elevava o esforço fiscal para 1,83% do PIB em 2015?
A fada da credibilidade e o círculo vicioso da austeridade
Admitir um erro não é fácil na vida pessoal e é mais difícil na vida pública. É verdade que a equipe econômica do governo esteve prestes a admitir o erro ao mudar, em julho, o resultado fiscal primário planejado para 2015 (0,15%) e 2016 (0,7%). A modificação ocorreu porque o ajuste fiscal pró-cíclico evidentemente contribuiu para a recessão histórica, conjugado à elevação de juros e à depreciação cambial impulsionada pelo desmonte gradual das operações de swap cambial – também peça do ajuste fiscal.
Como a fada da credibilidade que Levy dizia invocar não animou o gasto privado, a contração da economia muito maior do que a esperada, o que fez as receitas tributárias despencarem a despeito da redução de desonerações fiscais e elevação de alguns impostos.
Como ocorreu várias vezes na história quando os governos seguiram a disciplina austera exigida pelos credores em meio a uma recessão, se instalou no Brasil um círculo vicioso entre queda de arrecadação, corte do gasto público, prolongamento da recessão que, sem reversão de política, apenas um milagre exportador pode contornar. Enquanto o milagre não ocorre, a relação dívida pública bruta/PIB tende a crescer a despeito – ou melhor, por causa do ajuste fiscal contraproducente.
A mesma admissão de erro e a consciência do círculo vicioso pareciam implícitas no projeto de lei orçamentária (PLDO) anunciado em fins de agosto com previsão de déficit primário para 2016, exceto se o Congresso Nacional aprovasse novos impostos.
Admitir um erro publicamente é mais difícil quando há muitos interesses em jogo, além da reputação técnica dos economistas ortodoxos vinculados à academia, ao mercado financeiro, lobbies empresariais e consultorias privadas. É mais difícil porque as recomendações econômicas que apoiavam a realização de um ajuste fiscal eram muito arrogantes. Arrogavam o monopólio da competência técnica, muito embora pautado em ignorância provinciana. Afinal, existe hoje um consenso internacional, presente mesmo em periódicos científicos ortodoxos, que um governo não consegue poupar através de cortes de gastos quando uma economia caminha para recessão ou então a aprofunda severamente, mesmo antes de jogar a economia em deflação.
Ou seja, os economistas das agências de classificação de risco (SP, Moody´s, Fitch) e a imensa maioria dos economistas ortodoxos brasileiros estão simplesmente desatualizados! Ou, então, o que é muito pior, temperam suas recomendações com a astúcia do cinismo político.
De fato, depois que a queda da arrecadação e a enorme recessão produzida pelo ajuste aumentaram o desajuste fiscal, os austeros resolveram inventar que o desajuste fiscal brasileiro tem raízes estruturais, associadas às destinações constitucionais obrigatórias (como saúde e educação), gastos social e despesas previdenciárias.
Estelionatos eleitorais e a venda de uma alma política.
Ao contrário do imaginado pelos estratégicas políticos do Palácio do Planalto em novembro de 2014 e vários intelectuais autointitulados progressistas, o ajuste fiscal não reduziu os conflitos sociais e políticos. Pelo contrário, os aguçou enormemente. Embora a direita exigisse do governo a realização de um ajuste fiscal que cortasse na carne de sua base social, ela aproveitou a vulnerabilidade econômica e política trazida pela aceitação do “conselho amigo” por parte do governo para atacá-lo em todas as frentes, inclusive com a acusação de estelionato eleitoral.
Este estelionato de fato desmobilizou os apoiadores do governo, reduziu sua popularidade e, consequentemente, sua governabilidade perante a base infiel no Congresso Nacional. A incompetência do diagnóstico e da estratégica política do governo é patente: governabilidade resulta mais de legitimidade e popularidade do que de favores. Ou o governo poderia prestar o favor a Eduardo Cunha de intervir na Procuradoria Geral da República e na Polícia Federal para bloquear a investigação contra ele? Isso aumentaria a legitimidade, a popularidade e a governabilidade de Dilma Rousseff?
O tamanho do cinismo político manifesta-se no fato que a mesma direita que acusa o governo de estelionato eleitoral quer, agora, aproveitar a oportunidade para realizar um estelionato muito maior: mudar a Constituição Federal com o pretexto de resolver o desequilíbrio fiscal. Alguém lembra de um candidato vitorioso nas eleições de 2014 que tenha proposto reformas constitucionais que prejudicassem sua eleição?
O desequilíbrio fiscal foi produzido, em 2014, pela desaceleração cíclica e pela proliferação de desonerações tributárias e, em 2015, pela recessão auto-infligida, punindo trabalhadores e beneficiários de serviços públicos e políticas sociais. Enquanto isso, os proprietários de títulos de dívida pública asseguram uma bolsa-família equivalente a cerca de 8% do PIB em 2015 graças à política de juros do BC, totalmente inoperante para atacar a inflação de custos (câmbio e tarifas). Isso é um problema estrutural.
Convenientemente, os constitucionalistas neoliberais calam sobre as injustiças tributárias estruturais, quando brasileiros que recebem até dois salários mínimos pagam mais de 50% da renda em tributos, enquanto proprietários do capital nada pagam ao receberem lucros e dividendos distribuídos por suas empresas. Impostos indiretos que tributam mais os pobres estão muito acima da média internacional para países da renda do Brasil; impostos sobre o capital, o patrimônio e heranças estão muito abaixo. Isso é um problema estrutural.
Resta saber se o governo vai voltar a aceitar o “conselho amigo”, mesmo que, agora, ele venha temperado com a ameaça de decapitação se não houver nova capitulação. Os estrategistas políticos do governo já deviam ter entendido que os únicos grupos sociais e políticos capazes de evitar a decapitação são aqueles que não aceitam mais que ganhe um mero mandato-tampão até 2018 em troca, agora, da entrega de direitos sociais constitucionais, além da austeridade de costume. Uma transação nesses termos envolverá custos políticos muito maiores a longo prazo, pois junto com a Constituição Cidadã irá toda uma alma. Uma alma construída por mais de 35 anos que, lamentavelmente, nenhum estelionato eleitoral será capaz de recuperar.
* Professor Associado (Livre Docente) do Instituto de Economia da UNICAMP. Ex-presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica (ABPHE).
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