segunda-feira, maio 05, 2014

Como o establishment dos EUA quer apresentar o que acontece na Ucrânia

O establishment norte-americano sempre chamou seus adversários de Hitler. Agora, chegou a vez do presidente russo Vladimir Putin ser apresentado como tal.

Vicenç Navarro - Público.es


Atualmente, o establishment (estrutura de poder financeiro, econômico, político e midiático) norte-americano, ou seja, o 1% que governa o país (com a assistência de outros 9%), está tentando criar uma leitura do que está acontecendo na Ucrânia, onde a responsabilidade pelas tensões – que poderiam desembocar em um conflito mundial – é das aspirações imperialistas da Rússia, presidida pelo sr. Putin, quem a ex-secretária Hillary Clinton e o senador John McCain definiram como o novo Hitler. E mostram a anexação da Crimeia como uma prova irrefutável disso. E os maiores meios de comunicação espanhóis, conhecidos por seu servilismo e docilidade com esse establishment midiático, reproduzem, sem fissuras, tal percepção.

Vamos por partes, começando pela equiparação de Putin a Hitler. Primeiramente, é preciso destacar, como bem afirma o professor Floyd Rudmin (de família ucraniana, certamente), da Universidade de Tromsø, na Noruega, em seu artigo “Viewing the Ukraine Crisis From Russia’s Perspective”, do qual tiro muitos dos dados que apresento neste artigo, o establishment norte-americano (a partir de agora EUA-NSA) sempre chamou seus adversários de Hitler. Hillary Clinton definiu Assad como Hitler, John McCain chamou Fidel Castro de Hitler, George Bush fez o mesmo com Saddam Husein e Donald Rumself também chamou o presidente Chávez, da Venezuela, de Hitler. No passado, figuras dos EUA chamaram de Hitler o presidente Allende, do Chile, Ortega (Nicarágua), Arafat (Palestina)... e uma longa lista de dirigentes. E o último da lista é o sr. Putin.

Classificar o presidente da Rússia como Hitler já alcança nível recorde, mostrando o grau de ignorância e de insensibilidade dos EUA, pois foram a Rússia e as outras repúblicas da União Soviética que derrotaram Hitler. Ao contrário do que Hollywood mostrou, as tropas nazistas foram derrotadas predominantemente pelas tropas da União Soviética e não pelas dos Estados Unidos. Aqui estão os dados que comprovam.

Em 1941, Hitler criou o maior exército que já existira na Europa, com 3.2 milhões de soldados alemães e 500 mil soldados da Itália e da Romênia. Esse exército invadiu a Rússia e o resto da União Soviética. Nunca conseguiu conquistar Moscou, nem Leningrado, nem Stalingrado, nem os campos de petróleo do Mar Cáspio. As mortes russas e soviéticas foram enormes. Foram 13 milhões de soldados e mais de 20 milhões de civis. Somente na localidade de Leningrado houve 1.2 milhões de civis e 200 mil soldados mortos. Em contrapartida, o número de mortos norte-americanos durante toda a Segunda Guerra Mundial foi de 418 mil soldados e apenas dois mil civis.

Foram a União Soviética e o Exército Vermelho que primordialmente derrotaram Hitler e o nazismo, como bem lembrou Winston Churchill. Depois da derrota nazista em Stalingrado em fevereiro de 1943 e na batalha de Kursk em agosto do mesmo ano, a Alemanha começou a perder a guerra. O dia da vitória final aconteceu apenas um ano depois. Ao terminar o conflito, 90% de todos os mortos causados pelo Exército nazista eram cidadãos soviéticos, russos em sua maioria. O fato de os EUA chamarem atualmente o presidente da Rússia de Hitler rebaixa qualquer fronteira da decência que deveria vigorar inclusive entre adversários. Os EUA exerceram um papel menor na derrota de Hitler na Europa (sua maior contribuição foi no Pacífico).

Quem é mais imperialista?

Se analisarmos o mapa de bases militares no mundo, podemos ver que existem bases militares norte-americanos por todo o globo, especialmente ao redor da Rússia e da China. Não há bases militares russas ao redor dos EUA e há muito poucas fora da Rússia. São dados fáceis de comprovar. Quem tem, portanto, mais anseio de expandir seu peso militar e sua influência? Não há dúvidas de que o governo federal dos EUA é o mais expansionista.

Na verdade, um dado deliberadamente ignorado na mídia norte-americana é que, quando o então presidente da União Soviética, o sr. Gorbachev, aceitou a reunificação da Alemanha, o fez com uma condição – aceita pelos EUA (governo de George H. W. Bush) e pela Alemanha (chanceler Kohl, pai da unificação alemã) - que a OTAN não se expandisse para o Leste, o que não foi respeitado.

Expandiu-se, na verdade, para cercar ainda mais a Rússia. E, conforme conversas telefônicas interceptadas e publicadas registraram, havia um plano (explicitado por Victoria Nuland e Geoffrey Pyatt) do Departamento de Estado para trocar o governo democraticamente eleito da Ucrânia por um governo títere (como já aconteceu).

Não é, portanto, surpreendente que o governo russo, no recente Tratado de Genebra, ressalte a necessidade de a Ucrânia não se transformar em membro da OTAN, o que continua sendo um desejo dos EUA. Conforme afirma o professor Rudmin, a Rússia foi invadida constantemente em sua história, sendo a última delas a invasão nazista. Os EUA nunca sofreram uma invasão em seu território.

E por último, está a anexação da Crimeia como mostra do suposto imperialismo russo. E a melhor maneira de responder a essa suposta prova de imperialismo soviético é olhar para a própria história dos EUA. Em 1835, os norte-americanos (camponeses em sua grande maioria) que estavam no território mexicano do Texas, sentiram-se ameaçados pelo governo mexicano, governo do Estado a que pertenciam. Tal ameaça forçou que esses cidadãos pedissem a independência e negociassem mais tarde sua anexação aos EUA. O governo dos EUA deveria se lembrar de sua história e, portanto, compreender que, se os cidadãos russos da Ucrânia se sentiram ameaçados quando o novo governo da Ucrânia liderou um golpe contra um governo corrupto – mas democraticamente eleito – e tomou medidas ameaçadoras contra a população russa, eles se tornaria independente e pediria depois sua anexação e união à Rússia. Na realidade, a Crimeia já havia sido russa durante 170 anos, o que explica ainda mais seu desejo de união com a Rússia.

Bem, encerro acrescentando um pedido. Que o leitor distribua amplamente meus artigos sobre a Ucrânia (“Lo que no se está diciendo sobre Ucrania”, “Lo que no se está diciendo sobre Ucrania. Parte II”; “Las falsedades de los mayores medios españoles en su cobertura de Ucrania”; e “El silenciado movimiento de tropas estadounidenses cerca de Ucrania”, visto que a falta de diversidade dos meios de comunicação explica que se esteja criando uma histeria que pode nos levar a uma Terceira Guerra Mundial. Acreditem em mim, pois isto é possível. Daí a necessidade de a população se informar, o que não está acontecendo. Por favor, façam isso!


(*) Catedrático de Políticas Públicas da Universidade Pompeu Fabra e Professor de Políticas Públicas da Universidade Johns Hopkins.

Tradução: Daniella Cambaúva

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