Augusto C. Buonicore
Rumo à Estação Finlândia
Em fevereiro de 1917 Lênin ainda estava na Suíça. Foi ali que recebeu as primeiras notícias da eclosão da revolução democrática, que derrubou o tzar, e a constituição de um duplo poder: o do governo provisório e dos sovietes de soldados e operários. Existia muita confusão nas fileiras bolcheviques e era necessário voltar imediatamente para a Rússia revolucionária. Mas, as fronteiras estavam ocupadas pelas tropas da Entente (Inglaterra e França). Estes países não tinham o menor interesse no regresso dos bolcheviques exilados, que eram contra a guerra imperialista. O governo provisório russo defendia ardentemente a manutenção da aliança militar com a Entente e mantinha intacto o esforço de guerra iniciado em 1914.
Para Lênin, só havia uma saída: negociar com o governo imperialista alemão. Os alemães tinham interesse que Lênin e os bolcheviques voltassem e a tirassem a Rússia da guerra. Assim, poderiam concentrar suas tropas nos combates da frente ocidental. Lênin era, desde 1914, defensor do chamado derrotismo revolucionário e da necessidade de transformar a guerra imperialista em uma revolução popular. Os defensores desta tese na Alemanha estavam encarcerados, mas na Rússia deveriam ser incentivados, pensava o Kaiser Guilherme II.
Parvus que era membro da ala direita do Partido Social Democrata da Alemanha, e um dos mais ardentes defensores da guerra imperialista, convenceu o governo alemão da importância do envio dos bolcheviques à Rússia. O próprio Guilherme II ordenou que, se os revolucionários não pudessem entrar na Suécia, fossem autorizados a atravessar as linhas de guerra alemãs na própria frente oriental. Felizmente isto não foi necessário.
Quando Lênin recebeu a notícia que o alto comando havia concordado com a viagem, disse eufórico para sua esposa Krupskaia: "Vamos no primeiro comboio!". Alguns socialistas ficaram horrorizados com os planos de Lênin e tentaram dissuadi-lo. Recusavam-se a aceitar qualquer acordo com o alto comando alemão e a idéia de cruzar o território inimigo sob proteção militar. Lênin nem mesmo aceitou receber a delegação de descontentes. A situação não comportava qualquer concessão ao moralismo pequeno-burguês de verniz esquerdista.
Em 9 de abril Lênin, Krupskaia, e mais 19 bolcheviques, atravessaram o território alemão, rumo a Petrogrado. Foram transportados num trem blindado e guardado por oficiais alemães. Na noite do dia 16 de abril cruzaram a fronteira da Finlândia, que na ocasião pertencia a Rússia, e na mesma noite chegaram a Petrogrado. Os rumos da revolução russa começavam se ser decididos.
Iniciou-se a partir de então uma grande campanha internacional contra Lênin, dizendo que ele era um agente à serviço do governo alemão. Esta, por exemplo, foi a tônica das primeiras notícias sobre o líder revolucionário russo divulgadas no Brasil. O jornal O combate de 25 de julho de 1917, num artigo intitulado "Quem é Lênin?", afirmou: "O verdadeiro nome dele é Leão Ulianov e que ele pode ser considerado como chefe da espionagem alemã na Rússia, tendo gasto nos últimos meses vários milhões de rublos (...) Lênin é considerado um criminoso de alta traição." O jornal A Noite na mesma linha de desinformação estampou em suas páginas: "foi assassinado em Petrogrado (...) o socialista Lênin, apontado como agente alemão e que fazia propaganda à favor da paz.".
Astrojildo Pereira, um dos fundadores do PC do Brasil, comentando as notícias da imprensa burguesa da época, escreveu: "E assim, o mundo inteiro, guiado pelo que diz a imprensa moderna, está absolutamente convencido de que Lênin é, de fato, um traidor da pior espécie, fomentador de desordem que se aproveitam os inimigos da Rússia, miserável vendido ao ouro teutônico".
Lênin, de fato, fez um acordo com o governo alemão. Os dois, por motivos diferentes, tinham interesse de que os principais líderes bolcheviques voltassem para o centro da luta revolucionária na Rússia. O imperialismo alemão estava interessado na derrubada (ou na desestabilização) do governo pró-entente. Lênin estava interessado em conduzir a Rússia pela senda da revolução socialista. Neste momento os interesses contraditórios se cruzaram e Lênin soube tirar proveito da situação. No final das contas, o acordo acabou sendo amplamente favorável à revolução e ao socialismo no mundo. Só os tolos, ou moralistas pequenos burgueses, poderiam se negar a subir no trem blindado alemão rumo a estação Finlândia. Os acordos e compromissos dos bolcheviques com o alto comando do imperialismo alemão foram necessários e não parariam ali.
O Tratado de Brest-Litovsk
Em 7 novembro de 1917 os bolcheviques, liderados por Lênin, tomaram o poder na Rússia. No mesmo dia o novo governo anunciou o famoso Decreto sobre a Paz. Nele se dizia: "O governo (...) propõe a todos os povos beligerantes e aos seus governos o início de conversações imediatas com vista a uma paz, justa e democrática". Dez dias depois o governo alemão transmitiu ao governo soviético o seu interesse de entabular negociações de paz. Assim, na cidade de Brest-Litovsk, se reuniram os representantes da Rússia soviética e da Alemanha.
Os russos desejavam uma paz sem anexações e os alemães não a aceitaram e exigiram a entrega de 215 mil km2 do território e uma indenização de 3000 milhões de rubros em ouro. Lênin deu instruções claras para que a delegação soviética procurasse ganhar tempo, mas, caso se estabelecesse um impasse assinasse o acordo de paz. Para ele, isso era essencial para salvar a revolução socialista. Trotsky não seguiu as instruções e recusou-se a assinar o acordo. Lênin escreveu: "Todo aquele que for contra a paz imediata, ainda que seja extremamente penosa, trabalha para perda do poder dos sovietes."
Aproveitando-se dos erros de Trotsky, em 18 de fevereiro, os exércitos alemães iniciaram uma ofensiva relâmpago. Os alemães ocuparam a Ucrânia, a Lituânia, a Estônia, a Finlândia e chegaram perto de Petrogrado, a capital da revolução. Nas suas mãos cairam mais de 400 mil km2 do território russo e uma população de mais de 55 milhões de pessoas. Nestas regiões se encontravam 90% da reserva de combustível e 45% da produção de trigo.
O poder soviético teve que retomar as negociações em piores condições e governo alemão apresentou novas e maiores exigências para assinar o acordo de paz. Entre outras coisas, exigiu a entrega de todos os territórios ocupados e mais o pagamento de uma pesada indenização. A maioria dos bolcheviques e dos social-revolucionários - com apoio da direita russa - recusou a proposta.
Em 24 de fevereiro o comitê do Partido Bolchevique em Moscou chegou a aprovar, por unanimidade, uma moção que expressava sua "desconfiança com o Comitê Central em virtude de sua política de concessões" e, por isso, não se veria "absolutamente obrigado a se submeter às determinações daquele Comitê" O documento concluía afirmando: "No interesse da revolução mundial, consideramos aconselhável arriscar uma possível destruição do governo soviético." Lênin respondeu que a derrota da revolução russa em nada ajudaria o proletariado mundial, pelo contrário ajudaria apenas ao imperialismo e a burguesia internacional.
Bukharin defendeu que devia se levar a guerra revolucionária ao o território alemão. Lênin considerou a proposta idealista, pois não correspondia a correlação de forças real, e defendeu a assinatura imediata do acordo, apesar das condições humilhantes impostas pelos alemães. Era preciso manobrar, era preciso recuar para salvar a revolução.
Uma pesquisa entre os principais sovietes constatou que havia uma grande resistência ao acordo de paz, sob as condições impostas. Buscando impedir o processo de paz, os social-revolucionários de esquerda assassinaram o embaixador alemão e planejaram atentados contra várias autoridades soviéticas. Instalou-se um clima de rebelião contra a proposta de Lênin. Mas, ele estava convicto da justeza de suas posições.
Alguns anos mais tarde, sistematizando a experiência dos bolcheviques, ele afirmou que os partidos revolucionários deveriam completar sua instrução aprendendo também a recuar. "E se os bolcheviques conseguiram tal resultado (vencer a contra-revolução) foi exclusivamente porque desmascararam impiedosamente os revolucionários de boca, obstinados em não compreender que é necessário recuar, que é preciso saber recuar."
A superioridade alemã, e os riscos representados para revolução, ficaram tão evidentes que a proposta de Lênin acabou sendo aprovada pelo Partido Bolchevique e, em 3 de março de 1918, foi assinado o acordo de paz. Para a imprensa burguesa, ligada a Entente, esta era a prova definitiva de que Lênin era realmente um agente alemão. Esta idéia foi amplamente divulgada no interior da Rússia pelos social-revolucionários, mencheviques e outras correntes contra-revolucionárias. Os social-revolucionários de esquerda, que ainda possuíam base de massas, romperam com o governo soviético e passaram para o campo da oposição. Poucos meses depois, em 30 de agosto, organizaram um atentado terrorista contra o próprio Lênin.
Durante processo de paz de Brest-Litovsk, Lênin foi obrigado a estabelecer um compromisso com alto comando militar alemão. Um compromisso extremamente desfavorável à Rússia, mas necessário para salvar a revolução que estava prestes a ser derrotada no campo militar. Novamente, os esquerdistas e os moralistas de toda ordem se levantaram contra ele, acusando-o de não ter princípios e de estabelecer acordos e compromissos inaceitáveis com os inimigos do socialismo. "Preferimos que a revolução morra do que aceitar acordos com o imperialismo", afirmavam eles. Não tinham consciência que esta posição, aparentemente radical, representava um acordo implícito, de longo termo, com os interesses dos piores inimigos dos trabalhadores. Para Lênin, nenhum princípio poderia ser sustentado sob o cadáver da revolução socialista russa. No livro Esquerdismo, doença infantil do comunismo (1921), voltou a justificar sua posição: "A paz de Brest-Litovsk era ao seu ver (dos esquerdistas) um compromisso com os imperialistas e, portanto, inadmissível por princípio (...) Era, efetivamente, um compromisso com os imperialistas, mas era exatamente isso que as circunstâncias tornava obrigatório".
A vitória da revolução socialista na Rússia animou o proletariado alemão que, em 1918, pôs abaixo a monarquia e o império dos junkers. Em alguns anos, o exército vermelho recuperou a quase totalidade das regiões cedidas no acordo de Brest-Litovsk. A história mostrou que as difíceis concessões feitas por Lênin, que levantaram contra ele a maioria das forças esquerdistas, mostraram-se fundamentalmente corretas. Na maioria das vezes, em situações de crise, as concessões não podem ser compreendidas imediatamente pelos doutrinários e imediatistas. Elas só podem ser compreendidas plenamente no transcorrer de um período histórico mais ou menos longo. Como cansou de afirmar Lênin, somente os dirigentes marxistas experientes possuem esta capacidade de firmar compromissos complexos e sabem retirar suas tropas, organizadamente, quando a situação assim o exige. Foi esta sagacidade política que fez de Lênin o maior estrategista do proletariado revolucionário no século XX.
* Augusto César Buonicore, Historiador e membro do Comitê Central do PCdoB
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