Tendo dificuldades para fazer valer plenamente seu ponto de vista na Organização Mundial do Comércio, os EUA tentam outras vias para impor seus interesses.
Com a nossa pauta tupiniquim absolutamente tomada pelas notícias envolvendo o golpichment, o austericídio e as contas suíças milionárias do terceiro colocado na linha sucessória da República, é compreensível que muito pouco espaço esteja sendo conferido a uma importante articulação levada a cabo pela diplomacia norte-americana.
Trata-se da Parceria Trans-Pacífica (TPP, da sigla em inglês “Trans-Pacific Partnership”), uma estratégia em desenvolvimento que pretende ocupar o espaço vazio ainda existente nas relações econômicas internacionais. O governo do Presidente Obama obteve a aprovação de um sistema de “fast track” por parte do Congresso para o assunto, fato que garante maior agilidade ao Poder Executivo na condução das negociações e no desenho final do modelo de diplomacia econômica em curso.
O acordo em gestação prevê a inclusão de temas amplos, como o comércio de bens e de serviços, além de propriedade intelectual, patentes e direitos autorais. Como o próprio nome deixa a entender, os 11 países signatários iniciais estão todos voltados para a costa oeste norte-americana, em direção ao Oceano Pacífico. São eles: Canadá, México, Chile, Peru, Japão, Austrália, Nova Zelândia, Malásia, Cingapura, Vietnã e Brunei. Apesar de não se constituir enquanto bloco econômico, a iniciativa contempla o potencial econômico de 40% do PIB mundial. Ainda que não conte com a participação de gigantes como Índia, China ou Rússia, o mercado do TPP pode ser avaliado pelos 800 milhões de habitantes de seus países.
TPP e o mundo multipolar.
Um diferencial significativo em relação aos acordos congêneres construídos até os dias de hoje refere-se ao poder concedido às grandes corporações multinacionais nas soluções de questões e pendências. Ao contrário do que ocorre atualmente, o setor privado vai ter o mesmo poder conferido aos Estados nacionais na condição de atores e interlocutores nos litígios e nos processos decisórios. Se imaginarmos o poder de fogo dos gigantes dos negócios globais, veremos que muitas das vezes são superiores à dimensão econômica de muitos países. O risco estratégico de se oferecer tamanho poder ao capital nas relações diplomáticas é o retrocesso na mediação e a imposição da lógica explícita do lucro nas negociações internacionais.
O surgimento de tal iniciativa diplomática ocorre num momento em que a cena mundial está marcada pela falta de inciativa consolidada no universo do comércio entre as nações. Desde o fim do antigo bloco do socialismo, paradoxalmente observa-se uma queda paulatina da supremacia exercida pelos Estados Unidos na dinâmica de acumulação global. A superação do mundo bipolar deu origem a um quadro de incerteza e instabilidade, mas com a marca inequívoca da multipolaridade.
Além da trajetória de consolidação do poderio chinês, assistiu-se ao fortalecimento de iniciativas e de blocos regionais, um pouco na sequência da União Européia. Assim foi com o MERCOSUL, com o NAFTA, com os diversos arranjos na África, na Ásia e no Oriente, além da falida tentativa de constituição da ALCA. A experiência mais recente dos BRICS também se soma a esse conjunto amplo de busca de saídas que envolva alguma forma de articulação diplomática e comercial.
EUA passam ao largo da OMC.
Tendo em vista as dificuldades de fazer valer plenamente seu ponto de vista no interior da Organização Mundial do Comércio (OMC), os Estados Unidos tentam várias iniciativas por outras vias. É o caso desse arranjo voltado para o Pacífico, que passa ao largo da União Européia, da África e da China, mas busca uma rearticulação econômico-internacional pelas beiradas, envolvendo um conjunto de países tão díspares quanto distantes.
A constituição de uma organização que se imponha como reguladora das questões relativas ao comércio internacional é um processo longo e de difícil manejo. A própria história da OMC revela tal processo. Desde os tempos em que se tratava apenas de um Acordo Geral de Comércio e Tarifas (GATT) em 1947 até a sua conformação institucional em organismo multilateral do sistema das Nações Unidas em 1995, a realidade do comércio internacional também passou por grandes mudanças. As nações mais desenvolvidas tentam impor aos demais seus interesses em avançar para a área de serviços e propriedade intelectual, uma vez que as querelas envolvendo bens primários ou manufaturas de baixo valor não é mais o centro de suas preocupações. Por outro lado, os países em desenvolvimento pressionam em sentido contrário e busca influir em um modelo que contemple também seus interesses.
Desde as articulações iniciais da Roda Uruguai e a constituição dos TRIPS (acordo envolvendo direitos autorais), a necessária cadência diplomática da OMC não acompanha o ritmo frenético das inovações tecnológicas e das mudanças do perfil da acumulação em escala global. Restam, portanto, várias pendências em setores considerados estratégicos: armamentos, medicamentos, informática, setor financeiro, recursos naturais, entre outros. Os Estados Unidos tentam utilizar o TPP como laboratório para tais avanços sobre os países em desenvolvimento, buscando criar a diplomacia do fato consumado para as etapas a negociar no futuro.
As críticas de nosso liberalismo de botequim.
Um aspecto que chama a atenção é que a crítica liberalóide em nossas terras ainda continua a levantar sua voz e acusar o governo brasileiro de suposta omissão também nesse assunto. De acordo com essa interpretação, estaríamos perdendo o bonde da História outra vez. Ou seja, a mesma lenga-lenga dos tempos da rendição subserviente ao poderio norte-americano, em sua tentativa de construir uma área de livre comércio aqui nas Américas. Com a mudança de orientação diplomática a partir de 2003, o Itamaraty contribuiu de forma decisiva para que não fosse adiante o projeto ianque em torno da ALCA.
Com isso, a ambição da Casa Branca acabou tendo que se resumir mesmo aos parceiros vizinhos na porção norte em torno da NAFTA, bem como impulsionando um conjunto de iniciativas de acordos bilaterais com os países do centro e do sul do continente. Já que não lograram constituir uma área continental, passaram a tentar sabotar os arranjos regionais em torno da América do Sul.
A alternativa apresentada pelos nossos defensores de um falso liberalismo de botequim não resiste a qualquer avaliação mais sensata e muito menos à realidade dos fatos. Buscando se equilibrar ainda nas ondas da liberalização econômica incondicional, os representantes da ortodoxia fingem acreditar na velha história das oportunidades trazidas pela abertura dos portos e nas benesses que seriam trazidas pela sacrossanta exposição às leis de mercado em escala internacional. Tudo muito simples em um mundo tranquilo e cor de rosa.
Ora, nem mesmo os países que se dizem propagadores da doutrina do liberalismo econômico conseguem praticá-lo em seus próprios espaços econômicos, em especial durante os momentos de crise. Os Estados Unidos e a União Européia, por exemplo, são exemplos concretos de práticas protecionistas por décadas e têm sofrido, inclusive, derrotas em instâncias da OMC, em ações levadas a cabo pelo Brasil. Podemos não aceitar que eles ajam assim, mas devemos compreender. Afinal, a obrigação de um Estado é defender os interesses de seus cidadãos e/ou empresas. Isso significa proteger seus empregos e sua renda. Ou seja, tudo aquilo que nossos teóricos livre-mercadistas não aceitam que façamos em causa própria.
Aderir ao TPP é rendição incondicional.
Aderir a esse tipo de protocolo sem a possibilidade de defender seus próprios interesses econômicos é um verdadeiro crime de lesa pátria. Basta ver o que tem acontecido com a sociedade brasileira ao longo dos últimos anos, desde que o Plano Collor resolveu abrir as porteiras sem nenhum mecanismo de transição que assegurasse os interesses nacionais. O processo de desindustrialização tem início ali e foi aprofundado a partir de 1994, com a irresponsável trajetória da política de sobrevalorização cambial.
Nossa indústria não apresenta condições de competir com a deslealdade de condições das exportações provenientes da China, por exemplo. E fomos perdendo nossa capacidade industrial instalada. Voltamos ao modelo clássico do pós-colonialismo dependente. Excelentes exportadores de bens primários de baixo valor agregado e cordiais importadores de bens de maior valor agregado, os manufaturados. Ou seja, apresentamos um déficit estrutural de transferência de nossa riqueza para o exterior.
E a desindustrialização por nossas terras não foi acompanhada pelo crescimento correspondente dos serviços de elevado conteúdo tecnológico, como aconteceu nos países desenvolvidos. Estimulamos toda a cadeia do agronegócio exportador e nos especializamos em serviços de baixo valor agregado e de baixa qualidade, como o setor de telemarketing. Assim, em termos de capacidade econômica instalada e em condições de acompanhar as tendências da vanguarda, regredimos algumas décadas.
E justamente esse é um dos objetivos centrais desse acordo TPP. Incluir a economia do conhecimento no rol da liberalização radical do comércio internacional. E aqui entram os serviços de alta tecnologia de hoje e do futuro, como os processos e as patentes envolvidas em telecomunicações, informática, mundo virtual, nanotecnologia, biotecnologia, economia da natureza e tantas outras.
No entanto, as dificuldades impostas pelos Estados Unidos são tantas no âmbito desse rascunho de TPP que os próprios países signatários enfrentarão dificuldades para votar o acordo em seus respectivos legislativos. Isso indica que o Brasil não perdeu nada pela ausência individual no processo constitutivo do bloco.
Isso não significa que tudo seja um mar de rosas nas negociações atuais envolvendo o MERCOSUL, os BRICS e outros arranjos dos quais participamos. Porém, abrir mão dessas conquistas para entrar de forma isolada em uma aventura transpacífica, com uma posição subalterna frente aos interesses dos norte-americanos, não parece ser uma alternativa compensadora.
* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.
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