por Luiz Carlos Azenha
Richard Duncan é autor do livro The Dollar Crisis, lançado em 2003, que anteviu a crise financeira global deflagrada em 2008 com a implosão do banco de investimentos Lehman Brothers nos Estados Unidos. Em entrevista à revista New Left Review, ele define o capitalismo em que vivemos como a era do “creditismo” e prevê que qualquer regulamentação do sistema financeiro resultará num colapso econômico global, por revelar as falcatruas nas quais o sistema hoje se sustenta. Ele identifica a origem da crise atual na decisão dos Estados Unidos de abandonar o padrão-ouro, que exigia que o país tivesse depositados 25 centavos em ouro para cada dólar impresso pelo Tesouro.
Alguns excertos:
No livro “Crises do dólar”, publicado em 2003, examinei como os desequilíbrios globais estavam criando bolhas nas economias que tinham superávit comercial e como os dólares agiam como bumerangues de volta para a economia dos Estados Unidos. Conclui que a expansão ilimitada do crédito possibilitada pela era pós-ouro, pós sistema monetário internacional de Bretton Woods, foi onde tudo começou.
Você advoga pela volta ao padrão-ouro?
Não. Mas penso que se os Estados Unidos tivessem mantido o padrão-ouro não estariam tão próximos do colapso. A economia global seria muito menor do que é; a China não seria nada do que é hoje. Teria havido muito menos crescimento, mas teria sido um sistema mais estável. Mas agora que estamos onde estamos, não tem volta. Se os Estados Unidos tivessem de voltar atrás, o tipo de deflação necessária seria absolutamente insuportável — como na Grã Bretanha em 1926. Mas é importante entender quais foram os efeitos de abandonar os mecanismos de ajuste automáticos inerentes ao sistema de Bretton Woods e ao padrão ouro clássico pré-1914 — eles serviam para corrigir automaticamente grandes desequilíbrios comerciais e os déficits governamentais.
Oficialmente, o sistema monetário internacional que emergiu desde 1973 e a quebra de Bretton Woods ainda não tem um nome. No livro eu chamei de padrão dólar, já que o dólar dos Estados Unidos se tornou o meio para os bens de reserva no lugar do ouro. O livro focou em como o novo sistema permitiu a criação das bolhas de crédito mundiais. O total de reservas internacionais, a melhor medida da oferta global de dinheiro, saltou mais de 2 mil por cento entre 1969 e 2000, com os bancos centrais criando dinheiro de papel numa escala sem precedentes.
A quantidade de dólares dos Estados Unidos em circulação disparou. Uma das características do padrão dólar é que permite aos Estados Unidos incorrer num gigantesco déficit comercial, já que paga pelas importações em dólares — dos quais o Federal Reserve [Banco Central] pode imprimir quantos quiser, sem ter que lastreá-los em ouro — e em seguida recebe aqueles dólares de volta de seus parceiros comerciais quando eles investem em bens denominados em dólares — papéis do Tesouro, ações corporativas, instrumentos de financiamento imobiliário –, o que eles são obrigados a fazer se quiserem ganhar algum juro.
O economista francês Jacques Rueff comparou este processo a um jogo de buricas no qual, depois de cada rodada, os ganhadores entregam tudo o que ganharam aos perdedores. Quanto maior o déficit dos Estados Unidos, maior a quantidade de dólares volta através do vasto superávit financeiro norte-americano. A outra opção para os parceiros comerciais dos Estados Unidos — o que ‘especialistas’ estão sempre pregando — seria trocar os dólares por suas próprias moedas, fortalecendo o câmbio e tornando suas exportações muito caras para competir pelo mercado dos Estados Unidos, ficando assim fora do jogo.
A era pós-Bretton Woods teve muitas crises financeiras mesmo antes de 2008 — na América Latina nos anos 80, no Japão nos anos 90, na Escandinávia em 1992, na Ásia em 1997, Rússia, Argentina, Brasil, a bolha do dot.com. Qual é sua explicação para isso?
Os economistas austríacos estavam basicamente certos sobre o papel que o crédito joga. Enquanto ele se expandir, vai criar um boom artificial, empurrando uma espiral de crescimento econômico e inflacionando o preço dos bens, o que gera ainda mais expansão de crédito. Mas sempre chega o dia em que a economia superaquecida e o crescimento do valor dos bens supera o crescimento dos salários e da renda. Bolhas sempre estouram e quando isso acontece começa uma espiral reversa: queda do consumo, do valor dos bens, falências, concordatas, aumento do desemprego e um sistema financeiro em colapso. A depressão começa — o que, de acordo com os austríacos, significa que a economia vai voltar a algum tipo de equilíbrio pré-crédito.
Nada cai para sempre; em algum momento o valor dos bens se alinha à renda do público e a economia estabiliza. O que mudou sob o padrão dólar foi o advento da criação de vastas quantias de crédito, criando ciclos de boom-and-bust mais rápidos e profundos. Na verdade, o primeiro destes ciclos depois do fim da era de Bretton Woods aconteceu nos anos 70, quando os bancos de Nova York reciclaram os petrodólares depositados pelos paises da OPEP [Organização dos Paises Exportadores de Petróleo] e fizeram empréstimos a paises da América do Sul e da África, enchendo as suas economias de crédito. Quando o boom dos ‘milagres’ estourou, resultou na crise da dívida do Terceiro Mundo nos anos 80.
Mas a criação de crédito desestabilizador realmente decolou quando os Estados Unidos passaram a praticar déficits comerciais de mais de 100 bilhões de dólares, a partir dos anos 80; alguns anos depois Washington começou a praticar também grandes déficits de orçamento, os quais podia financiar usando a entrada de dólares do superávit financeiro. Quando estes dólares entravam nos sistemas bancários dos países que tinham grandes superávits comerciais com os Estados Unidos, tinham o impacto de dólares turbinados — ou seja, a quantia original poderia sem emprestada e reemprestada pelos bancos daqueles países várias vezes –, provocando uma explosão de crédito que gerou superaquecimento econômico e disparada dos preços de bens, primeiro no Japão nos anos 80 e depois nas economias dos Tigres Asiáticos nos anos 90.
Em paises como a Tailândia, em particular, a entrada de capital quente atraído pelo crescimento econômico inicial serviu para tornar a bolha de crédito ainda maior. Eventualmente, investimento acima do necessário provocou excesso de capacidade produtiva e de oferta, seguidos por uma espiral de queda de lucros, falencias e crises na bolsa de valores, deixando os bancos locais entulhados de empréstimos impagáveis e governos profundamente endividados. Depois da crise asiática de 1997, a onda de capital retornou aos Estados Unidos, criando a bolha da ‘nova economia’ [internet] e um boom de crédito.
Não há dúvida de que o Japão, por exemplo, derivou benefícios econômicos tangíveis de seu crescimento baseado em exportações. Sem o poder de compra que veio de seus superávits comerciais com os Estados Unidos a economia japonesa teria crescido a um ritmo muito menor nos anos 60 e 70. Mas o impacto pouco avaliado é o que o superávit comercial japonês teve na expansão do crédito doméstico assim que os dólares entraram no sistema bancário do Japão. Foi isso que ajudou a encher a bolha — a relação entre crédito/PIB aumentou de 135% em 1970 para maciços 265% em 1989.
O Japão tentou exportar maciças quantias de capital na metade dos anos 80, para evitar que a economia superaquecesse: depois de 1985, diante da grande valorização do yen, houve uma grande transferência da capacidade industrial japonesa para as economias da Ásia, dando origem ao crescimento dos Tigres Asiáticos: Tailândia, Indonésia, Coreia do Sul, Malásia. Mas, depois de tantos anos com superávit comercial, crescentes reservas internacionais e oferta de dinheiro à vontade, foi impossível para o Japão evitar o superaquecimento drástico do final dos anos 80. Depois que a bolha japonesa estourou nos anos 90, o preço dos imóveis caiu mais de 50% e o valor das ações, 75%; 22 anos depois, os bancos japoneses ainda estão carregados de empréstimos impagáveis e a dívida do governo é a maior do mundo — 230% do PIB.
[…]
A ascensão da China ameaçou a política dos Estados Unidos [acordada com Alemanha e Japão, no Hotel Plaza, em 1985] de desvalorizar o dólar para aumentar suas exportações?
É uma questão complicada, mas penso que, com a passagem do tempo, a indústria norte-americana desistiu dos Estados Unidos, ao se dar conta de que poderia lucrar fabricando fora dos Estados Unidos em paises de baixíssima renda. E assim começou. Eventualmente, mais e mais corporações se deram conta de que poderiam aplicar o outsourcing. Um momento chave foi no início dos anos 90, quando se tornou interesse de amplos setores da sociedade norte-americana ter um dólar forte e uma moeda chinesa fraca, ou moedas fracas em todos os países nos quais as empresas estadunidenses estavam produzindo para exportar de volta para os Estados Unidos. A questão relativa à Alemanha e ao Japão nos anos 80 tinha sido diferente, já que as forças de trabalho dos dois países tinham salários relativamente altos comparados com os dos Estados Unidos. Foi apenas depois da ascensão dos Tigres Asiáticos e principalmente depois que a China se juntou a eles nos anos 90 que a indústria estadunidense se deu conta de que poderia lucrar muito mais fazendo tudo fora de casa. Depois de 1997, os déficits comerciais dos Estados Unidos aumentaram dramaticamente.
Mais geralmente, como o padrão dólar afetou a economia dos Estados Unidos?
Assim que foi removida a exigência de que 25% de cada dólar deveriam ser lastreados em ouro, foi removido também o limite para a criação de crédito. Tinha sido fácil para os Estados Unidos manter o lastro em ouro nas primeiras décadas do pós-guerra, já que o país tinha a maior parte das reservas em ouro do mundo. Mas com as empresas multinacionais de mudança do país e os crescentes gastos do governo, o padrão-ouro se tornou uma limitação em 1968. Assim, o Congresso simplesmente mudou a lei a pedido de Johnson [ex-presidente Lindon, que promoveu a expansão do envolvimento militar dos Estados Unidos no Vietnã], removendo a necessidade do lastro em ouro. Sem limites no crédito, o crescimento do crédito explodiu. Naturalmente, crédito e dívida são duas faces da mesma moeda. Nos Estados Unidos, a dívida total — do governo, dos domicílios, corporativa e do setor financeiro — expandiu de U$ 1 trilhão em 1964 para mais de U$ 50 trilhões em 2007.
Crescimento de crédito nesta escala passou a ser visto como algo natural; mas, na verdade, é algo inteiramente novo sob o sol — só se tornou possível porque os Estados Unidos romperam a ligação entre o dólar e o lastro em ouro. Esta expansão de crédito criou o mundo em que vivemos. Tornou os norte-americanos materialmente muito mais prósperos do que teriam sido. Financiou a estratégia da Ásia de crescer através das exportações e trouxe a idade da globalização. Não apenas tornou a economia mundial muito maior do que teria sido em outras circunstâncias, mudou em si a natureza do sistema econômico. Eu argumento que o capitalismo norte-americano se tornou algo diferente — em meu novo livro, A Nova Depressão, eu chamei de ‘creditismo’.
Quais seriam as principais características do ‘creditismo’?
Primeiro, o papel expandido do Estado. O governo dos Estados Unidos hoje gasta 24% do PIB — um de cada quatro dólares. Todas as grandes indústrias são subsidiadas, de uma forma ou outra, e metade da população dos Estados Unidos recebe algum tipo de apoio do governo. Veja, uma pessoa pode argumentar que o capitalismo foi um fenômeno do século 19 que morreu na Primeira Guerra Mundial; mas o formato atual não é, claramente, como o capitalismo deveria funcionar. Em segundo lugar, o banco central hoje cria dinheiro e manipula seu valor. Em terceiro lugar — talvez o mais interessante — a dinâmica de crescimento é inteiramente diferente do passado. Sob o capitalismo, os empresários investiam, alguns tinham lucro, que poupavam; em outras palavras, acumulavam capital e repetiam o ciclo: investimento, poupança, investimento, poupança. Era lento e difícil, mas é como o crescimento econômico funcionava. Mas há décadas a dinâmica do crescimento econômico dos Estados Unidos — e crescentemente do mundo como um todo — é dirigida pela criação de crédito e pelo consumo. Os bens usados como garantia para empréstimos saltaram mais de 2.000% do fim da era de Bretton Woods até o fim dos anos 90. Desde então, quintuplicaram.
O problema é que o ‘creditismo’ já não sustenta o crescimento econômico porque o setor privado dos Estados Unidos não pode mais sustentar qualquer dívida. A razão entre a dívida por domicílio e a renda pessoal disponível era de cerca de 70%, da metade dos anos 60 à metade dos anos 80; desde então, disparou para atingir 140% em 2007, na véspera da crise. Ao mesmo tempo, a renda média domiciliar está em declínio e a diferença entre o valor de um imóvel e a dívida existente para quitar o financiamento está em baixa recorde [Nota do Viomundo: Lembrando que muitos norte-americanos refinanciam as casas para conseguir dinheiro para despesas correntes, como comprar automóvel ou mandar o filho para a universidade]. Em 2010, os domicílios norte-americanos tinham dívida de U$ 13,4 trilhões — 92% do PIB.
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