terça-feira, abril 12, 2011

Custo/benefício e legítima defesa :: Delfim Netto


Com um legítimo processo de abstração, esquecemos as expressões “limitada” e a “incerteza” e construímos uma hipótese poderosa: o homem age a partir de um cálculo racional absoluto, obedece a incentivos, procura maximizar os seus benefícios e não tem relação com outros homens

Artigo publicado no Jornal Valor Econômico

Na organização do universo, Deus foi muito duro com os “cientistas sociais”, dentre os quais se destacam os economistas. Para benefício desses últimos, entretanto, construiu um “homem” que age com racionalidade limitada num espaço permanentemente preenchido pela incerteza. Para superá-la abriga-se na imitação e nos costumes.

Com um legítimo processo de abstração, esquecemos as expressões “limitada” e a “incerteza” e construímos uma hipótese poderosa: o homem age a partir de um cálculo racional absoluto, obedece a incentivos, procura maximizar os seus benefícios e não tem relação com outros homens. Como já suspeitava (numa nota de rodapé) o ilustre Thomas Robert Malthus (1766-1834), isso abria espaço para entendê-lo aplicando o cálculo diferencial criado por Newton (1642-1727).

E não deu outra! O conhecimento da economia avançou dramaticamente explorando aquela hipótese, até assumir o respeitável grau de “rainha” das ciências sociais. A “ciência” criada por Adam Smith exagerou: predou primeiro a psicologia e depois exerceu seu imperialismo sobre a antropologia, a arqueologia, o direito, a geografia, a história, a sociologia e a política! Enquanto isso ela mesma estava sendo predada pela bela e irresistível matemática! Foi um porre que durou pelo menos um século e meio. Terminou quando exagerou na formulação do “equilíbrio geral” num espaço topológico. Isso deu nascimento a uma revisão da hipótese básica. Redirecionou a observação e o estudo sobre a realidade em que se forma o comportamento do agente econômico, absorvendo e reintegrando o conhecimento das ciências sociais que havia predado.

Nada é mais indicador desse movimento, renovador, do que está acontecendo, por exemplo, com relação à liberdade de capitais. No acordo de Bretton Woods (depois de uma penosa e longa discussão teórica) ela praticamente foi interditada; foi construída lentamente depois que o “gold standard” foi definitivamente destruído pela desvalorização do dólar com relação ao ouro no início dos anos 70 e foi consagrada quando o poder político nos EUA passou, de novo, às mãos do sistema financeiro (como acontecera antes de 1929). Iniciou-se na década dos 80 do século passado, a desmontagem da regulação construída nos anos 30. É um fato interessante que no Consenso de Washington, nos anos 80 do mesmo século, apesar da insistência do FMI, ela nunca foi reconhecida.

Agora, em menos de duas semanas, o FMI modificou a sua posição. Admite que em circunstâncias específicas o seu controle pode ser uma das “ferramentas” da política econômica dos países que estão sofrendo com a supervalorização das suas moedas. Esses, de fato não devem assistir passivamente à erosão de sua base industrial sujeita à competição desleal de países mais “espertos”. A resposta imediata veio do organizado e poderosíssimo “lobby” financeiro, o “think-tank” Institute of International Finance, de Washington, financiado pelo sistema financeiro internacional, pela boca do seu economista-chefe, o sr. Phillips Suttle. Referindo-se diretamente ao real nos ensinou que sua valorização está associada ao desempenho e às perspectivas positivas da economia brasileira (o que é uma premissa verdadeira) e que, portanto, deveria ser vista com a maior naturalidade. Logo, admitir e lidar com essa realidade seria um instrumento mais útil do que a imposição de controles sobre o movimento de capitais (o que, infelizmente, é uma conclusão que não decorre da premissa).

O que é evidente nessa discussão? Que ninguém dispõe de uma “teoria científica” para recomendar ou não a liberdade de capitais. Além do mais, nenhuma pesquisa empírica feita com métodos estatísticos robustos pode resolvê-la. Trata-se, na mais benigna das hipóteses, de uma recomendação “normativa” que pode ou não ser útil, mas que, evidentemente, é contaminada por interesses. É uma questão cuja resposta depende das circunstâncias internas e externas de cada país. Dizer, como disse o sr. Suttle (e dizem alguns de nossos melhores economistas), que deixar o câmbio flutuar “naturalmente” é a melhor solução para nosso problema, não tem maior valor “científico”. É apenas uma opinião, como todas as outras (inclusive a minha), ditada por diferentes visões do mundo. Afinal, deveria ser óbvio que a “liberdade de movimento de capitais” não está escrita nas “leis naturais” imutáveis da organização do universo.

Parece difícil de entender como ainda não tenhamos internalizado em nossas consciências:

1º) que a macroeconomia (inclusive seus mais recentes modelos) tinha muito pouca coisa a dizer sobre como funciona, de verdade, a economia real. Ela também é mais “normativa” (isto é, expressa mais a vontade de como o sistema deveria funcionar do que como ele funciona) do que “científica” e;

2º) que o aparato econométrico que às vezes aparentemente a sustenta (a “calibração”) é terrivelmente deficiente para levar a qualquer conclusão segura. Aliás não deveria haver surpresa: a ciência só avança quando falha!

Ao contrário, portanto, da ideia que as políticas macroprudenciais são uma volta ao passado, elas simplesmente indicam nossa perplexidade com a tragédia a que levou a aparente sofisticação financeira. O momento não é de afirmações apodíticas, apoiadas numa ciência que não existe, mas de avaliação cuidadosa da relação custo/benefício, no curto e no longo prazo, das medidas que estamos tomando em legítima defesa…

Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento. Escreve às terças-feiras.

Fonte: Valor Econômico

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