O Brasil está prestes a reproduzir os processos sociais descritos em As Origens do Totalitarismo
por Luiz Gonzaga Belluzzo — publicado 04/04/2016
Arendt, em resumo: Se você não é igual a mim, não tem direito de existir
Ao observar Donald Trump, seus símiles europeus e os ululantes nativos, é legítimo perguntar se o Brasil e o mundo não estariam prestes a reproduzir os processos sociais magistralmente analisados por Hanna Arendt no clássico As Origens do Totalitarismo. Arendt ocupa-se, sobretudo, da emergência do nazismo e do stalinismo como fenômenos do igualitarismo totalitário que vocifera: “Se você não é igual a mim, não tem direito a existir”.
Esse igualitarismo de manada pressupõe paradoxalmente a superioridade de um modo de ser sobre outros e termina nas tentativas de apagar pela força as diferenças de posição social e de estilos de vida. É o nivelamento pelos calcanhares, como dizia meu professor de Filosofia do Direito, Miguel Reale, um conservador que seria expulso das passeatas dos igualitários da Avenida Paulista.
Diz Arendt: “As massas surgiram dos fragmentos da sociedade atomizada, cuja estrutura competitiva e concomitante solidão do indivíduo eram controladas quando se pertencia a uma classe. O fato de que o ‘pecado original’ da acumulação primitiva de capital tenha requerido novos pecados para manter o sistema em funcionamento foi eficaz para persuadir a burguesia alemã a abandonar as coibições da tradição ocidental... Foi esse fato que a levou a tirar a máscara da hipocrisia e a confessar abertamente seu parentesco com a ralé”.
A escória, na visão de Arendt, não tem a ver com a situação econômica e educacional dos indivíduos, “pois até os indivíduos altamente cultos se sentiam particularmente atraídos pelos movimentos da ralé”.
Peter Gay incita os pensadores da sociedade a considerar as relações estabelecidas por Freud entre biografia e cultura na sociedade de massas: “Os estudiosos da sociedade, sem excluir os escritores imaginativos, têm certamente sabido há bastante tempo que em grupos os indivíduos podem retornar a estados primitivos da mente, sujeitar a sua vontade a líderes, desconsiderar restrições e o ceticismo sensível que a educação cultivou neles tão dolorosamente”.
Minhas obsessões insistem em repetir que a sociabilidade moderna se move entre a inevitável pertinência a uma cultura produzida pela história e a pluralidade dos indivíduos “livres”. A história dessas sociedades “produziu” o mercado, a sociedade civil, suas liberdades e seus interesses.
O sistema de necessidades e de interesses supõe, em seu desenvolvimento contraditório, a legitimidade das ações individuais, sempre acomodadas nos limites impostos pela lei emanada da soberania popular.
Essa forma de sociabilidade rejeita a autoridade da “ordem revelada” ou transcendências, religiosas, políticas (pseudorrevolucionárias), moralistas e midiáticas. Tais monstruosidades pretendem se colocar “fora” da bulha e das misérias do mundo da vida e do penoso exercício de compartilhar a razão com os demais cidadãos livres e iguais em sua diversidade. Na sociedade contemporânea, não há lugar para tribunais privados e julgamentos autorreferidos do comportamento alheio, senão nas trágicas experiências do totalitarismo.
A história registra episódios terríveis. A lei promulgada pelo regime nazista em 1935 prescrevia que era “digno de punição qualquer crime definido como tal pelo ‘saudável sentimento’ popular”. Naquele momento, o saudável sentimento popular – a ética predominante na Alemanha – acolhia e insuflava a prática do genocídio de judeus, eslavos e outros povos “inferiores”.
As forças subterrâneas do inconsciente coletivo movem campanhas de opinião que apelam para medidas extremas. São manifestações de insanidade gregária, travestidas de ações da sociedade civil, em cujos becos e desvãos escuros, aliás, se acumula a energia que alimenta a onda de violência que atinge a todos.
Nas manifestações dos moralistas transcendentais, vejo a autoconvocação dos soi-disant iluminados para substituir a onisciência divina e, nessa condição, desferir sentenças irrecorríveis, como as desferidas pelos juízes do Juízo Final, em contraposição aos humanos, os pobres-diabos que se debatem para sobreviver aos ditames da falibilidade e da incerteza.
Fico a imaginar como seria a vida dos humanos falíveis se os jurados do Juízo Final empalmassem o poder na moderna sociedade de massas, crivada de conflitos e contradições.
O quadro agrava-se, quando relações promíscuas entre as autoridades e as massas, intermediadas pela propaganda manipuladora, colocam os cidadãos diante da pior das incertezas: a absoluta imprecisão dos limites da legalidade.
As garantias da publicidade do procedimento legal são, na verdade, uma defesa do cidadão acusado – e ainda inocente – contra os arcanos do poder. Pois estas conquistas da modernidade, das quais não se pode abrir mão, têm sido pisoteadas por quem deveria defendê-las.
Ocultam da sociedade, em cujo nome dizem agir, o empenho com que laboram para tecer a corda em que enforcarão as garantias individuais. Em situações como essa, o Estado se transforma num aparato administrativo desgovernado e despótico, numa caricatura de si mesmo, num butim a ser dilapidado por ocupantes eventuais.
A “partidarização” ou a particularização da atividade policial e da prestação da Justiça aproxima rapidamente as sociedades modernas das práticas totalitárias que assolaram o mundo dito civilizado na primeira metade do século XX. É o que demonstram Herbert Marcuse e Franz Neumann em suas obras sobre o tema.
A invasão insidiosa dos interesses partidários nos órgãos encarregados de vigiar e punir não tem outro resultado senão transformar essas burocracias de Estado, primeiro em instrumentos do poder descontrolado e, depois, em poderes fora de controle.
Não são poucos aqueles que percebem o fenômeno e o abominam, mas preferem se recolher diante da contundência e da ousadia dos que buscam, sem qualquer escrúpulo, intimidar os inimigos, desafetos ou simples adversários políticos.
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