Por *Dennis de Oliveira, para a Agência Áfricas
Por trás do discurso legalista do impeachment, as reais intenções racistas
O filósofo italiano Giorgio Aganbem lembra que o pensamento grego clássico tinha duas palavras para definir a vida: bios, que se refere a dimensão da vida qualificada, que busca a felicidade por meio da Política (ação no espaço público) e, portanto, pertencente ao contrato de cidadania; e zoe, que é a dimensão da vida comunal, da mera existência, fora do Ágora e do contrato de cidadania. O conceito de Foucault, de biopolítica se origina disto: o poder é o gerenciamento das fronteiras entre os que estão na bios e os que ficam na zoe.
Vários pensadores tem falado em uma zoepolítica (como o mineiro Idelber Avelar) ou da necropolítica (o camaronês Achille Mbembe). O gerenciamento do poder está na contenção e controle dos que estão fora da dimensão da bios. De fato, quando se observa que trinta anos de fim da ditadura militar no Brasil, persistem situações como a que ocorreu no Rio de Janeiro, no dia 1º. de dezembro, em que policiais fuzilaram cinco jovens negros a sangue frio, bem como vários outros episódios que consolidam o genocídio da juventude negra, estas percepções fazem sentido.
No Brasil, historicamente, a necropolítica é a principal forma de exercício do racismo. O racismo brasileiro, realizado a partir do que Darcy Ribeiro chama de “tolerância opressiva” (tolerar o outro desde que possa reinar sobre seus corpos e mentes) se mantém com esta divisão rígida de acesso ao direito a vida qualificada. Por isto, mesmo com mais de 30 anos de democracia institucional, episódios típicos de ditaduras militares, como execuções extrajudiciais, acontecem cotidianamente nas periferias e contra jovens negros.
Agrego a isto mais um fato pouco discutido neste embate do pedido de impeachment da presidenta Dilma Roussef. O argumento que sustenta este pedido, aceito recentemente pelo presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, são as tais “pedaladas fiscais”. O Tribunal de Contas da União entendeu que o Executivo agiu de forma irregular ao financiar gastos necessários para pagamentos de benefícios sociais – como o Bolsa Família – por meio de recursos dos bancos estatais. E esta irregularidade levou a reprovação das contas da presidenta e isto baseia o pedido de impeachment.
O que chamo atenção disto é o que está atrás deste argumento técnico: recursos para pagar benefícios sociais. No fundo, o que incomoda é justamente isto. Tenho dúvidas se estes recursos tivessem sido utilizados para socorrer bancos falidos o desfecho seria este. A tal “pedalada” fiscal contestada é o governo federal priorizar os compromissos com os benefícios sociais em detrimento das tecnicidades da “responsabilidade fiscal”.
Não é de hoje que o Bolsa Família desperta ódio nos setores mais conservadores. Mas um ódio contido, como é o ódio racial explícito, porque é “politicamente incorreto”. A necropolítica no Brasil não se expressa de forma explícita – por isto, no país, não há uma expressão explicitamente nazista, embora ela exista sutilmente no pensamento de muitos. Ela é executada pelas mãos sujas das forças de segurança e defendida sorreteiramente por parte significativa das elites, cujos privilégios são mantidos às custas da contenção da população periférica. O Bolsa Família, a medida que joga uma certa luz a estes territórios da dimensão da zoe, sinaliza para conexões pontuais com esta população. É um arranho na necropolítica.
Importante lembrar que as políticas sociais desenvolvidas nos últimos anos beneficiam a população negra. 73% dos beneficiários do Bolsa Família são negros e 68% das famílias beneficiadas são chefiadas por mulheres negras. 80% dos beneficiários do programa “Água para Todos” (construção de cisternas) são negros. No Programa Luz para Todos, o percentual de negros entre os beneficiários é também de 80%. No Pronatec, 68% das matrículas contabilizadas em 2014 eram de jovens negros. O Programa “Minha Casa, Minha Vida” tem entre os seus contemplados, 70% de famílias negras.
Desta forma, toda a armação de impeachment não passa de mais uma reação dos desejosos de que se reforce as práticas da necropolítica, de contenção das periferias e da população negra em especial. O discurso legalista não passa de uma cortina de fumaça para esconder estas reais intenções.
*Dennis de Oliveira é professor da Escola de Comunicações e Artes da USP e do Programa de Pós Graduação de Direitos Humanos e de Mudança Social e Participação Política da USP. Coordena o CELACC (Centro de Estudos Latino Americanos sobre Cultura e Comunicação) e é membro do Neinb (Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre o Negro Brasileiro) e do Alterjor (Grupo de Pesquisa de Jornalismo Popular e Alternativo).
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