Uma conversa interditada: o país que o Brasil poderia ser
Em seu primeiro artigo em 2016, FHC conseguiu sepultar a América Latina em uma crise 'terminal', sem dedicar uma única linha à crise global.
por: Saul Leblon
Carta Maior
O hiato da passagem de ano, quando a sociedade se recolhe e o Estado Midiático opera a meia fase, produz um ensaio de desintoxicação que desnuda a asfixia da norma.
A norma é o agendamento diuturno da sociedade por interesses unilaterais que se apresentam como os de toda a nação.
O objetivo da parte que se avoca em expressão do todo é claro: interditar a conversa urgente da população brasileira com ela mesma.
Trata-se e barrar adesões à insurgência contida na interrogação: como se faz o país que o Brasil poderia ser, mas ainda não é?
O monólogo do enredo conservador impõem-se como o garrote vil do discernimento popular.
Desmoralizar partidos (não raro com a ajuda dos mesmos) é um dos seus ferrolhos.
Espetar o carimbo da ‘disfuncionalidade populista’ em tudo o que não for ‘mercado’, outro.
Dissociar os desafios nacionais do neoliberalismo global em pane, a engrenagem mestra do conjunto.
Nada disso se faz sem a mídia azeitada, sistematicamente abastecida de insumos condizentes.
Em seu primeiro artigo em 2016, publicado neste domingo, o tucano Fernando Henrique Cardoso, brindou-nos com proficiente radiografia do que classifica como colapso do bolivarianismo na América Latina.
‘Este populismo começa a se desfazer. São sinais promissores’, desancou alvejando regimes ‘anticapitalistas e anti-norteamericanos’.
‘A confusão entre populismo e políticas “de esquerda”, pontificou o paladino das privatizações, ‘baseia-se em um equívoco: o de que são “progressistas” medidas que propiciam melhoria imediata das condições de vida, mesmo sem condição de se manter no tempo’.
‘Sem o charme do populismo mais vigoroso e com o Tesouro vazio, como manter a “hegemonia” do PT? Impossível’, ejaculou, algo precocemente, para encerrar sua mensagem às tropas aliadas do golpismo e da vigarice:
‘Comecemos 2016 com ânimo, imaginando que pelo melhor meio disponível (renúncia, retomada da liderança presidencial em novas bases, ou, sendo inevitável, impeachment ou nulidade das eleições) encontraremos os caminhos da coesão nacional’.
O lince da sociologia da dependência conseguiu sepultar a AL em uma crise ‘terminal’, sem dedicar uma única linha causal ao entorno.
Ou seja, o mundo exaurido pela entropia dos livres mercados, aqui vendidos como alternativa ao ‘desastre petista’.
A singela omissão ao capitalismo realmente existente seria retificada pelos fatos no dia seguinte.
Nesta 2ª feira, um jornalismo useiro e vezeiro em vender a ideia de um Brasil-ilha-de crise (cercado-de-prosperidade-por-todos-os-lados), acordou sobressaltado com o estrondo na porta das redações.
Era o despencar de 7% da bolsa chinesa, associado a uma desvalorização recorde do yuan, mais um pico de baixa das encomendas à indústria norte-americana, que teve em dezembro a maior queda em seis anos, combinada à estagnação das exportações da maior economia da terra.
Peculiaridades locais à parte, o pano de fundo é a mais longa convalescença de uma crise capitalista desde 1929.
A impulsioná-la, uma demanda global estrangulada por empregos tíbios, classe média em decadência e ensaios de novas bolhas especulativas por todos os lados, fruto de um capital parasitário que se autovaloriza sem agregar riqueza à economia real.
‘Não me passou’, poderia dizer o tucano detentor da mais alta patente intelectual da direita brasileira.
Seu ego não o permite e nenhum colunista isento irá cobrá-lo.
Une-os o mesmo diagnóstico conveniente à elite e ao holerite.
Não debater a fundo a encruzilhada do desenvolvimento brasileiro reduz uma transição de ciclo econômico a um desastre petista, que a volta do PSDB cuidará de reverter.
O que isso significará na prática pode ser lido antecipadamente no noticiário que vem da Argentina.
Desmonte de políticas públicas. Reforço do monopólio midiático (lá afrontado). Instrumentalização da justiça. Desvalorização fulminante do poder de compra das famílias assalariadas. Liberação dos mercados. Revogação de impostos aos ricos e de subsídios que beneficiam os pobres. Estrangulamento fiscal do Estado e provável novo ciclo de alienação do patrimônio público.
Tudo isso faz do macrismo o laboratório de ponta da restauração neoliberal, que o martelete midiático preconiza como panaceia para o Brasil.
O noticiário morno da passagem do ano ressaltou, por contraste, o ensurdecedor tropel dessa catequese cotidiana.
Se quiser escapar à armadilha do arrocho, o país precisa desesperadamente abrir canais alternativos para estabelecer uma conversa ecumênica, direta, democrática sobre o passo seguinte do seu desenvolvimento.
Não se recuse aqui a necessidade de uma reordenação estrutural para que o país possa retomar sua construção. Ela terá custos; envolve garantias e concessões, evoca o alongamento de ganhos no tempo, exige grandes pactos feitos de salvaguardas e metas para emprego, salários, juros, inflação, tarifas e resultados fiscais.
Trata-se de uma negociação da democracia com o mercado e o Estado.
Não é um jogo em que o vencedor leva tudo, mas uma repactuação mediada pela correlação de forças na sociedade.
O sacrossanto ‘ajuste’ apregoado pela mídia, ao contrário, equivale à paz salazarista dos cemitérios.
O povo ocupa o posto de defunto e o dinheiro grosso, o de coveiro.
Desenvolvimento é tudo menos a paz mórbida suspirada pela bonança do privilégio.
Desenvolvimento consiste em superar estruturas existentes e criar outras novas.
Em sociedades marcadas pela contraposição de interesses de classe, imaginar que isso ocorrerá em perfeito equilíbrio é como vender o elixir dos mercados racionais.
Curto e grosso: o que hoje se chama de ajuste, como se fora uma panaceia das boas técnicas do ramo, nada mais representa do que a restauração plena do neoliberalismo em diferentes nações da América Latina.
O governo Dilma já viveu esse experimento em seu primeiro ano de mandato.
A miragem se desfez, como é sabido, na forma de mais crise e mais impasses.
A meta-síntese do processo, o superávit fiscal de 1,2% do PIB, foi revogada pela impossibilidade física de se compatibilizar recessão com a arrecadação.
Hoje, os milicianos do Estado Midiático, entre eles, moças e rapazes assertivos na defesa do mercado financeiro, declaram-se ‘surpresos’ com o tamanho do buraco escavado pelos cortes de gastos recessivos e juros siderais.
Distraídos, tampouco haviam percebido o tamanho da contração internacional que há oito anos comprime as fronteiras da economia global e já derrubou as cotações de commodities ao menor nível em 16 anos.
É nesse lusco-fusco surpreendente para quem ainda acha que o Brasil é uma ilha de crise em um planeta cercado de prosperidade, que o alvorecer de 2016 oferece uma nova chance de o governo abrir um calendário de conversas substantivas com as forças da sociedade.
Assunto: as linhas de passagem para o país atravessar o pântano mundial sem abdicar de construir uma democracia social tardia no coração da América Latina.
Diante das circunstâncias e do adiantado da hora só há uma forma de fazê-lo.
A Presidenta Dilma precisa falar regularmente à sociedade; em cadeia nacional e em fóruns tripartites setoriais.
Se quiser pautar a mídia sem se deixar pautar por ela, o governo deve reconhecer na democracia o único contraponto à ditadura do mercado e acioná-la como fator hegemônico na reordenação do curso do desenvolvimento.
FHC, Serra e outros valem-se da névoa espessa criada pelo próprio noticiário para insistir em políticas e agendas condenadas, mas ainda não substituídas no plano mundial --o que dificulta a sua ruptura definitiva no país e, mais grave, no próprio campo progressista.
A expectativa de que o vendaval pudesse amainar depressa ancorava-se, como se viu, na subestimação da dominância financeira intrínseca à natureza do problema, que agregou desafios adicionais às políticas contracíclicas.
Desfeita a miragem de uma turbulência passageira verifica-se que os avanços de agora em diante serão mais difíceis.
Após vitórias significativas contra a pobreza, ir além, em tempos de vacas magras, no pasto ralo das commodities, implica afrontar a desigualdade nos seus alicerces estruturais. Ou seja, ali onde se sedimenta o estoque da riqueza, na esfera fundiária, urbana, patrimonial, tributária ou financeira.
Fábulas amenas de retorno a um mundo de desconcentração financeira amigável e produtiva, sob o comando dos mercados, custam caro.
No final, não entregam o prometido.
É esse purgatório em dimensões compactas que o Brasil está a experimentar.
Recidivas da crise mundial –como as desta 2ª feira de bolsas em transe-- evidenciam a urgência de um poder de coordenação, capaz de colocar as coisas no papel de coisas; e devolver à sociedade o comando do seu destino.
Todo o desafio brasileiro hoje gira em torno desse nó górdio.
A mídia tanto insiste que às vezes até setores do governo e do PT parecem acreditar na mística dos mercados racionais, que farão as melhores escolhas para o bem da sociedade.
O país precisa desesperadamente estabelecer uma agenda de conversas entre os brasileiros sem ser pautado pela mistificação midiática.
Só há uma pessoa capaz de puxar essa conversa porque foi legitimada na urna para fazê-lo: a Presidenta da República.
Companheira Dilma Rousseff, o bonde da história está passando a sua frente, pela segunda vez.
Tenha certeza, não haverá uma terceira.
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