segunda-feira, janeiro 04, 2016

Salário mínimo e luta de classes

Sejamos claros: quem se coloca contra o reajuste do salário mínimo na verdade quer a redução do poder de compra da maioria absoluta dos brasileiros.


Paulo Kliass*


Ao longo dos últimos anos, alguns substantivos e adjetivos acabaram ficando meio esquecidos, deixados de lado até mesmo pela maioria dos analistas políticos progressistas. Determinadas expressões de análise da dinâmica social, então, nem pensar mais em utilizá-las. Pecado para uns, sintoma de abordagem jurássica pra outros, o fato é que chamar as coisas e os fenômenos pelos nomes adequados passou a ser um incômodo. Mencionar categorias como capitalismo, exploração da força de trabalho ou mais-valia ficou, digamos assim, “démodé”.

Desde que Francis Fukuyama decidiu solenemente que estava decretado o Fim da História, em razão da suposta inevitabilidade histórica da supremacia do liberalismo após a queda do Muro de Berlim e o fim da experiência dos países socialistas, a questão das contradições do capitalismo deixaram de ser levadas a sério. E dentre elas, a oposição fundamental entre os interesses dos trabalhadores e os dos capitalistas. Sim, trata-se daquela contribuição essencial de Marx e Engels para o estudo e a crítica da realidade social e econômica ao longo da História: a famosa luta de classes.


O Decreto apenas regulamenta o previsto na Lei.


Pois a divulgação do novo valor do salário mínimo pela Presidenta Dilma acrescenta um novo ingrediente ao debate. O decreto que fixa em R$ 880 a menor remuneração recebida em nosso País apenas traduz em norma governamental o que está definido na lei n° 13.152, de 29 de julho de 2015, que prevê as regras para reajuste do salário mínimo para o quadriênio 2016-2019. O aumento de 11% é ligeiramente superior à inflação medida pelo INPC em 2015 somado ao pífio crescimento real do PIB em 2014. Então, qual é o grande problema?

O fato é que esse tema reacende os ânimos no Brasil das desigualdades. As gritarias e os esperneios vão desde os que não se conformam com uma política pública definindo regras mínimas de remuneração da força de trabalho até os argumentos mais sofisticados, que invocam as fragilidade das contas públicas para condenar qualquer tipo de vinculação dos gastos governamentais com o salário mínimo. Sejamos claros: quem se coloca contra o reajuste do salário mínimo e a vinculação de despesas sociais a tal valor, na verdade quer a redução do poder de compra da maioria absoluta dos cidadãos brasileiros. Simples assim!

Essa lengalenga é antiga. Desde a época em que o reajuste combinava com a comemoração do dia internacional de luta dos trabalhadores em primeiro de maio até o período mais recente, em que o aumento passou a valer desde o primeiro dia do ano civil. Quando Lula resolveu definir uma regra legal e institucional para esse procedimento, os catastrofistas já se colocaram em ação. Reajuste real do salário mínimo, é óbvio, iria provocar desemprego e aumento do tão falado custo Brasil. As empresas iriam quebrar e as contas da previdência social iriam explodir.


O salário mínimo subiu e o Brasil não quebrou.


Pois o que se viu foi um profundo desmentido da própria realidade sobre as teorias neoliberais e os modelitos do financismo, que sempre se colocaram de um lado muito bem definido na luta de classes. Os salários cresceram acima da inflação, a redução da desigualdade avançou e a crise que vivemos atualmente não tem absolutamente nada a ver com a (ainda baixa) remuneração do trabalhador. Quando a voz solitária do deputado federal, e depois senador, Paulo Paim (PT-RS) propunha fixar o salário mínimo em 100 dólares, todos achavam uma utopia ou uma tremenda irresponsabilidade. Pois ele chegou a valer quase US$ 400 (na época mais brava da valorização artificial da taxa de câmbio) e o Brasil tampouco quebrou por isso. Enquanto escrevo este artigo, o novo menor salário do nosso trabalhador passa a equivaler a US$ 220.

O argumento mais típico do pensamento “casa-grande-e-senzala” não aceita que o grau de desigualdade socioeconômica, que tão bem caracteriza nossas relações brasileiras, seja assim resolvido por conta de ganhos reais de salários. Afinal, os serviços domésticos e pessoais, dos quais nossas elites e parcela da classe média sempre estiveram habituadas a usufruir, ficaram mais caros. Os aeroportos e centros comerciais passaram a ser frequentados por gente que não está à altura desse tipo de frequência. As camadas mais próximas da base da pirâmide se apresentaram nos lugares com seus próprios veículos de passeio. As roupas e os acessórios de grife, pirateadas ou não, passaram a ser de uso generalizado na sociedade. Ora, como é que pode tanta audácia?

A retórica ganha um ponto de maior sofisticação quando se trata de discutir os ganhos reais do salário mínimo com base em seus efeitos macroeconômicos. Nesse caso, um dos focos do debate se orienta para a impossibilidade da economia brasileira suportar esse tipo de reajuste, em razão dos impactos sobre o tão falado “custo Brasil”. Uma forma de organização da produção, do comércio e dos serviços como a nossa, não teria condições de incorporar esse tipo de aumento, uma vez que os ganhos de produtividade não foram alcançados em igual período. A última década e meia se encarregou de demonstrar o oposto.


A mentira do rombo nas contas públicas.


O outro aspecto macro relaciona-se às finanças públicas. Nesse caso, a luta de classes ganha a escaramuça do desequilíbrio fiscal e invoca a premência do ajuste das contas governamentais. Afinal, a responsabilidade do déficit do Tesouro Nacional deve mesmo ser atribuída à fortuna mensal recebida por mais de 33 milhões de beneficiários da previdência social. Sim, pois 69% deles recebem até 1 salário mínimo por mês, enquanto sobe para 84% a parcela dos que ganham 2 salários mensais. Eles devem estar quebrando o Estado brasileiro!

Assim, o total de despesas realizadas pelo INSS ao longo de 12 meses equivale a R$ 434 bilhões, valor bastante inferior ao total de pagamento de juros da dívida pública federal - R$ 511 bi. O déficit previdenciário refere-se apenas ao subsistema dos trabalhadores rurais, uma vez que o subsistema dos trabalhadores urbanos ainda é superavitário. E ainda assim vale registrar o argumento de que as necessidades de financiamento dos agricultores não estão associadas a nenhum “desequilíbrio estrutural” do regime previdenciário. Na verdade, trata-se de uma decisão histórica da Assembléia Constituinte de 1988, que resolveu incorporar de forma cidadã esse vasto setor de nossa sociedade, ao qual era proibido o acesso ao sistema de previdência social até então.

E aqui a luta de classes escamoteia dos meios de comunicação informações relevantes. Por exemplo, 99% dos benefícios rurais são iguais a um salário mínimo. Além disso, a regressividade de nosso sistema tributário faz com que as faixas de menor renda sejam mais afetadas pelos impostos do que as do topo da pirâmide. Assim, mais de 50% da renda mensal das famílias que recebem até 2 salários mínimos voltam aos cofres públicos, sob a forma de tributação direta e indireta.

Já os que se demonstram profundamente indignados com a política de valorização real do salário mínimo contribuem com menos de 30% de sua renda para os tesouros federal, estadual e municipal. Assim, o desequilíbrio estrutural fiscal mais gritante encontra-se na conta de pagamento de juros da dívida pública. Ela apresenta um déficit anual de R$ 511 bi e recolhe pouco de R$ 150 bi sob a forma de tributos sobre essa massa de recursos públicos distribuídos às camadas mais ricas da sociedade. Já os beneficiários da previdência social apresentam um déficit de R$ 80 bi, dos quais R$ 40 bi retornarão ao caixa governamental sob a forma de impostos.


O Globo sugere triplicar o salário mínimo.


Mas o capitalismo funciona assim mesmo desde os seus primórdios: uma dinâmica permanente de luta de classes. Por intermédio de suas entidades, como o DIEESE, os trabalhadores buscam demonstrar que ainda há muito espaço para avançar na melhoria das conquistas salarias (e outras) dos trabalhadores. Já as classes dominantes se expressam por meio de órgãos de imprensa, como o conglomerado dominado pela “famiglia” Marinho, cujo editorial em 31 de dezembro passado tratou do tema. O texto alertava para os riscos de rombo nas contas públicas e qualificava a política de valorização do salário mínimo de “visão econômica tosca”. Ao lançar mão da ironia grossa, suspeita de sua eficácia como instrumento para retomar o crescimento econômico.

E o distraído escriba d’O Globo encerra sua peça com uma pergunta que deveria, na verdade, ser encarada como meta pelos governos ao longo dos próximos anos: “se é assim, por que não triplicar logo o salário mínimo?”. Eis, afinal, uma bela idéia apresentada pelo jornalão.

À luta, companheiros!



* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.

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