Roberto Requião[1]
O recém-publicado programa da Fundação Ulysses Guimarães “Uma ponte para o futuro” faz lembrar o clássico romance do escritor siciliano Giuseppe Tomasi di Lampedusa, il gattopardo, o Leopardo, em português. O tema obra é a decadência da aristocracia siciliana durante o Risorgimento, a Unificação Italiana conduzida pela luta popular sob a bandeira de um Estado republicano moderno.
A velha e decadente nobreza siciliana não queria saber de mudança. Porém, os ventos revolucionários não podem ser barrados. Mas podem ser desviados, através de uma mudança controlada. O Príncipe de Falconeri resume essa estratégia em sua assertiva que virou um clássico:
“A não ser que nos salvemos, dando-nos as mãos agora, o povo nos submeterá à República. Para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude. ”
Sabemos que o sistema político da Nova República se estabilizou através de uma dicotomia entre PT X PSDB. Essa dicotomia manteve forças progressistas e populares entretidas primeiro na esperança da eleição do PT, depois nos avanços sociais que o PT veio construindo aos poucos. Esse modelo entrou em parafuso com o PT liderando um ajuste fiscal absolutamente antissocial. Em reação, o PSDB ficou inicialmente atônito entre a crítica incoerente e o aplauso com sorriso amarelo. Depois, passou a pedir ainda mais arrocho pelo governo, supostamente revoltado contra a timidez, a desfaçatez ou a suposta falta de convicções do governo em relação ao ajuste. Enfim, o PSDB ficou perdido.
Mais atônito está povo, que depositava suas esperanças na atenção que o PT dava ao social, ainda que há muito já havia percebido que era falsa a dicotomia PT/PSDB na questão da regulação do sistema financeiro e da política macroeconômica. Na prática, para ambos, os juros indecentes foi o 1º mandamento. Dilma até se esforçou para reduzi-lo, mas por não conscientizar o povo sobre isso e por não mexer na estrutura do Tripé Macroeconômico (câmbio flutuante e metas de inflação e superávit primário), que alimenta os juros altos, não teve força para manter a iniciativa.
Sobre as regras de gestão da macroeconomia criadas por FHC, nenhum grande partido ousa levantar dúvidas. É um tabu. Um silêncio total. Uma unanimidade burra total. Apesar dessa unanimidade, um paradoxo acontece todas as eleições, em especial na última.
No ano passado, os pré-candidatos do PSB à presidência, que era a grande “novidade” das eleições, passaram meses falando que a dicotomia PT/PSDB era falsa e mantinha o país na mesmice e que eles queriam ser a alternativa a isso. Eles seriam o veículo da mudança. Porém, depois que todo mundo já tinha mais do que entendido que eles seriam “o novo”, eles vinham dizendo que o Brasil deveria louvar e respeitar o Tripé das regras macroeconômicas de FHC com ainda maior afinco. Apesar do PT e do PSDB nunca terem deixado de segui-lo e muito menos de louvá-lo.
O que me deixava impressionado é que repetiam supostas vantagens desse modelo como se fosse uma grande novidade, e não algo já aborrecidamente repetido pelos jornais, economistas e políticos há mais de 15 anos. Paradoxalmente, todos os candidatos, exceto Luciana do PSOL e Mauro Iasi do PCB faziam o mesmo, louvando o Tripé como se isso fosse inédito e seu grande diferencial. Impressiona-me que candidatos ditos “nanicos”, que tem finalmente tinham a grande chance de suas vidas para serem conhecidos por todos os brasileiros e usar isso para falar algo diferente que justificassem sua candidatura alternativa, se esmerem para usar seus 15 minutos de fama para repetir a mesma coisa que já diziam os principais candidatos.
Isso já havia acontecido em eleições anteriores. Hoje é um jogo que não tem credibilidade. O velho barbudo disse que a história se repete primeiro como tragédia, depois como farsa. Depois que o PT se rendeu à unanimidade do Tripé e agora, pior, ao ajuste draconiano a la grega, ninguém mais acredita nas convicções que os partidos alegam ter e nem na inocência daqueles que se dizem grandes adversários para depois concordarem no essencial.
Recentemente, o Senador Cristovam Buarque mostrou-se como pré-candidato à presidência da República, pois também estaria cansado com a dicotomia entre PT e PSDB. Não me lembro, porém, que ele seja um opositor do modelo do Tripé, provavelmente o maior ponto de consenso entre PT e PSDB. Também não conheço bem a alternativa ao Tripé que formula o outro pré-candidato do partido que quer acabar com dilema PT/PSDB, o ex-Ministro da Fazenda Ciro Gomes.
Todos os políticos criticam os juros elevados do Brasil, mas não lembro de um parlamentar ou chefe do poder executivo que, como eu, tenha criticado abertamente o Tripé como sendo o instrumento, o labirinto, que mantém os juros brasileiros como os maiores do mundo.
A grande maioria ou se cala ou rende homenagens a Mamon [2], através de elogios ao santificado Tripé. Porém, é a necessidade desesperada de reiterar “devoção cega” ao Tripé que está levando a economia brasileira à pior recessão em sua história, enquanto a maior parte do mundo está se recuperando da crise econômica.
No meio dessa crise, a Fundação Ulysses Guimarães, do PMDB, lança com grande destaque um novo documento dando a entender que tem uma solução inovadora para os problemas do Brasil, chamado: “Uma ponte para o futuro”. Inclusive alguns correligionários chegaram a dizer que já era hora de acabar com a “falsa dicotomia” PT x PSDB, repetindo o que já tinham dito os candidatos do PSB, Rede e PDT. Fiquei feliz ao saber que nossos intelectuais estavam se dedicando a propor algo novo para o país.
Imaginam minha decepção ao ler o documento. O programa não tem nada de novo. É apenas uma cópia de um conjunto de medidas repetidamente exigidas pelo setor financeiro, “o mercado”, e que ainda não foram satisfeitas no governo do PT. É a mesma cansativa e monótona oferta de quase todos os partidos e políticos aos interesses da banca e dos rentistas. Ou seja, simula mudar alguma coisa para que tudo fique como está.
Parece que os bancos viraram os únicos eleitores no Brasil, e que todos devem se esmerar em agradá-los repetindo o mesmo ritual de submissão a seus interesses, enquanto criam novas fachadas para desviar a atenção do povo.
Mas isso acontece no mundo inteiro hoje. Na Grécia aconteceu o mesmo. A diferença é que lá o objeto de adoração a Mamon não é o Tripé. Lá é o euro e a Troika. Quando a Grécia entrou na crise, os partidos tradicionais de Centro e Direita se uniram para fazer o ajuste fiscal mais regressivo da história do país.
Não deu certo, a economia afundou e o desemprego alcançou recorde. O povo se revoltou e votou na esquerda tradicional, o partido socialista grego, PASOK, que prometia fazer um ajuste com maior cuidado com o social. Eleitos fizeram o contrário, foram ainda mais antissociais que a velha direita grega. O resultado foi ainda pior. A dívida, que os remédios dos diversos pacotes tentavam curar, só crescia, enquanto os efeitos colaterais matavam o povo grego. Foram 5 pacotes.
Até que o povo grego farto da enganação vota em um jovem, Tsipras, de um partido de extrema esquerda, o SYRIZA, criado e eleito exatamente para impedir o país de continuar se submetendo aos mesmos pacotes que prometiam acabar com o ajuste fiscal e enfrentar a Troika. Depois de 6 meses de negociação, ele se rende a avança a um novo pacote para esmagar ainda mais o povo grego no “moinho de carne” do arrocho fiscal e social, na esperança de que o pouco sangue que ainda restava pudesse satisfazer os insaciáveis credores.
O que resta ao povo grego? Que esperanças pode ter o povo grego na chamada democracia? Ou melhor, o que resta no nosso modelo político de democracia, no sentido original criado pelos mesmos gregos há mais de 2 mil anos, se as imposições do interesse do setor financeiro jamais podem ser contestadas?
Eu tenho esperança, eu ainda conto com a mudança. O povo está vendo todas essas manobras e não está gostando, por isso, vivemos tempos de crise. Crise é a decadência do velho e a possibilidade de ascensão do novo. As crises são pródigas em oportunidades de mudanças. Nelas, a mudança não parece mais impossível.
Mas essa não é apenas uma crise econômica e de submissão do sistema político ao interesse de apenas um setor, o financeiro. Estamos vivendo também uma crise de impaciência do povo com relação à corrupção. A decadência da Nova República, que substituiu o regime militar salta aos olhos. Não sabemos o que pode resultar disso. Pode ser um regime autoritário, pois o que vemos em grande parte da oposição à Presidenta é chamamentos a golpismos dos mais diversos, desde militares, a judiciais, passando até por golpes contábil-fiscais e exaltações fascistas. Esse golpismo permanente me lembra a velha ameaça de Carlos Lacerda a Getúlio Vargas. Carlos Lacerda dizia antes das eleições que consagraram Getúlio:
“O Sr. Getúlio Vargas não deve ser candidato à presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar.”
É visível que estão recorrendo ao mesmo expediente. Isso significa que esse tipo de oposição já não mais respeita as regras democráticas instituídas na Nova República.
Gostaria assim de buscar nas origens da Nova República elementos para entender como poderemos superar essa crise. A Nova República foi plenamente instituída com a Constituição de 88. Os fundamentos dessa Constituição foram primeiramente organizados em um documento do PMDB, publicado 6 anos antes no meio da crise da dívida externa brasileira. O documento chama-se “Esperança e Mudança”. Esse foi o programa que deu alma ao PMDB por mais de uma década. Ele se baseava em três pilares que foram incorporados na constituição de 88:
1) Um regime legal altamente voltado à preservação dos direitos civis, sociais e trabalhistas
2) Uma organização do Estado que visava controlar o poder do Executivo através de um judiciário, legislativo e até mesmo ministério público muito fortalecidos e completamente autônomos.
3) Um regime de intervenção econômica claramente nacional-desenvolvimentista orientado para a industrialização, a preservação do emprego e dos salários e serviços públicos voltados ao interesse da população e não dos lucros.
A constituição foi elaborada e promulgada sob a liderança do presidente PMDB, tendo o PMDB como principal base de apoio e tendo o “Esperança e Mudança” como principal fonte de inspiração. Todavia, foi promulgada no apagar das luzes de uma conturbada fase de transição entre a época de ouro do capitalismo que termina em 1973 e a Era da Globalização, que se inicia nos anos 90 do século XX.
Nos anos 90, vivemos uma avalanche neoliberal, antisocial e antinacional, em total antagonismo com a constituição de 88. Destruí-la passou a ser um dos grandes objetivos das forças que apoiavam o neoliberalismo. Desde então, a constituição recebeu safras anuais de emendas. Primeiro, no governo FHC, buscou-se destruir os fundamentos nacionais-desenvolvimentistas, como o conceito de “empresa nacional”, o controle nacional sobre a produção mineral, os impostos sobre as exportações de commodities, o monopólio do petróleo e diversas medidas que se opunham ao controle do Estado sobre os setores estratégicos e sobre a oferta de serviços públicos.
Depois passaram a atacar os princípios sociais da Constituição. Os direitos de aposentadoria, a destinação de recursos para saúde e educação através da DRU[3], entre outros. Mas ao contrário dos princípios nacional-desenvolvimentistas, nessa área o avanço dos neoliberais foi pequeno, até este ano de 2015. Isso acontece porque a sociedade brasileira, os partidos de esquerda, as alas populares dos vários partidos e o governo do PT sempre se opuseram à maioria das propostas de emendas constitucionais que visavam a perda de direitos sociais, trabalhistas e da atenção especial que a Saúde e a Educação recebem de nossa Constituição.
Porém, neste ano de 2015 tudo mudou. Ao trair suas promessas de campanha, e se entregar a um ajuste fiscal neoliberal e ao aumento dos juros que ela mesma havia combatido com coragem, Dilma perdeu o discurso, o controle da agenda política e a popularidade. Seus adversários na imprensa e no Congresso se aproveitaram disso para tentar toda sorte de golpismos que pudessem ser usados para encurralar o governo.
Aproveitando a fragilidade do governo do PT e a perda de afinidade deste com os setores sociais progressistas e a instabilidade política, os partidos e políticos que queriam agradar o todo poderoso setor financeiro, descobriram que não é mais suficiente apenas oferecer o Tripé e os juros mais altos do mundo. A moda agora é levar como oferenda a Mamon todas as conquistas sociais da Constituição de 88.
Para isso contam com o providencial apoio do verdadeiro equívoco dos nossos constituintes: o Executivo frágil que leva à instabilidade política. Essa tendência decorre do desequilíbrio entre responsabilidade e poder em nossa Constituição. Nela, quase toda responsabilidade recai sobre o Executivo. Porém, se comparado à responsabilidade e ao ônus pelos próprios erros, há excesso de poder no judiciário, no Ministério Público e até na Polícia Federal em relação ao comando do Executivo. Para complicar, o governo do PT, o Congresso, e o STF e o TSE aprovaram leis, práticas e interpretações que reforçaram essa tendência à instabilidade dando mais poder aos órgãos já carentes de responsabilidade.
O mesmo aconteceu em relação à imprensa, que se tornou o maior poder da República. A imprensa assim se tornou o “Poder Moderador” que seria o fiel da balança na condução do processo político. Elegeu e derrubou o Collor, elegeu e garantiu a estabilidade política no governo FHC. Porém, manteve o governo Lula e Dilma sobre crescente pressão. Ao invés de moderar a instabilidade, a acentuou. Não conseguiu derrubar o Presidente Lula, porque – além da incrível capacidade de comunicação, articulação e de atender ao setor financeiro – teve a grande sorte de suceder um governo extremamente impopular e infeliz e pode contar com inédita expansão dos preços das commodities. Dilma não pode contar plenamente com nada disso. Ela começou o primeiro governo sobre uma fortaleza de popularidade e prosperidade. A fortaleza foi corroída em razão dos próprios erros e da tendência do nosso modelo político à instabilidade política.
Considerando esses fatores, chegamos a essa aparente crise terminal da Nova República. Agora, o que precisamos não é radicalizar no neoliberalismo buscando agradar os setores mais poderosos da sociedade e, assim, esgotar o resto da gordura de princípios de estabilidade social, econômica e política que ainda sobrou da Constituição de 88. Se fizermos isso, acabará certamente com o resto de credibilidade que tem esse sistema democrático que estamos vivendo e haverá sérios riscos de o país descambar para o “conflito civil”.
Proponho o contrário. Fazer como o PMDB fez em 1982 com o “Esperança e Mudança”: usar a crise terminal do regime militar para pensar um programa construído com apoio de todas as bases do partido e realmente focado no interesse do povo brasileiro. E mais, eu proponho começarmos a reflexão exatamente sobre o texto do “Esperança e Mudança”, para entendermos o que foi implementando, o que deu certo o que não deu, o que está atual, o que não está.
Eu suspeito que tem algo que nunca foi verdadeiramente implementado no “Esperança e Mudança”: a reflexão aprofundada sobre o Caráter Nacional Brasileiro. A Alma Brasileira deve ser uma inspiração para ação coletiva do Estado em prol da construção de uma Nação que pode ser um modelo e um caminho para uma humanidade. Depois que superarmos definitivamente a desigualdade e a pobreza, nossa Pátria pacífica, mestiça e calorosa será uma luz para guiar a humanidade para longe das trevas da intolerância, das guerras, da indiferença, da falta de solidariedade e do preconceito.
Com muita tristeza temos que admitir a morte do Rio Doce. A crise ambiental e climática já mobiliza as Nações. A crise política e econômica turva as nossas perspectivas de futuro. A intolerância religiosa, o terrorismo e a profusão de conflitos militares parecem estar conduzindo o mundo para uma grande guerra. Tudo isso traz medo e indignação. Precisamos usar essa indignação como combustível da nossa ação. E a nossa ação agora deve ser canalizada para construirmos um novo Projeto Nacional Autêntico. Ele será a verdadeira “Ponte para o Futuro”. Para tal, deverá ser construída com reflexão democrática, participação e dialogo abertos. Proponho ao PMDB e a todos que quiserem contribuir nos lançarmos nessa empreitada com o coração aberto e a esperança renovada para a verdadeira mudança.
Vamos resgatar o orgulho de ser brasileiro!!
Roberto Requião,
Brasília, Distrito Federal, 18 de novembro de 2015.
[1] Roberto Requião é Senador, no segundo mandato. Foi governador do Paraná por três vezes, prefeito de Curitiba e deputado estadual. É graduado em direito e jornalismo com pós-graduação em urbanismo.
[2] Mamon é um termo, derivado da Bíblia, usado para descrever riqueza material ou cobiça, na maioria das vezes, mas nem sempre, personificado como uma divindade. A própria palavra é uma transliteração da palavra hebraica ”Mamom” (מָמוֹן), que significa literalmente “dinheiro”. Como ser, Mamon representa o terceiro pecado, a Ganância ou Avareza, também o anticristo, devorador de almas, e um dos sete príncipes do Inferno. Sua aparência é normalmente relacionada a um nobre de aparência deformada, que carrega um grande saco de moedas de ouro, e “suborna” os humanos para obter suas almas. Em outros casos é visto com uma espécie de pássaro negro (semelhante ao Abutre), porém com dentes capazes de estraçalhar as almas humanas que comprara.
[3] A Desvinculação de Receitas da União (DRU) é um mecanismo que permite ao governo federal usar livremente 20% de todos os tributos federais vinculados por lei a fundos ou despesas. A principal fonte de recursos da DRU são as contribuições sociais, que respondem a cerca de 90% do montante desvinculado.
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