em Entrevista, por Guilherme Poggio
A nossa defesa é uma tarefa do povo brasileiro, tendo como vanguarda os corpos armados
Mauro Santayana
Sobre a mesa de centro da sala de espera há dois quepes militares, sendo estrangeiro um deles. Isso explica porque o Ministro da Defesa, Celso Amorim, me atenda alguns minutos depois da hora marcada: ele se despedia do Comandante da Marinha do Senegal, contra-almirante Mohamed Sane, que recebera meia hora antes.
O ex-chanceler é homem de boa biografia para ocupar o cargo, porque sempre foi afirmativo em suas posições. Em 1982, presidente da Embrafilme, teve a coragem de financiar, com dinheiro do Estado, a primeira denúncia cinematográfica das torturas cometidas pelos agentes da Ditadura, com o filme “Pra Frente, Brasil!”, de Roberto Farias. Foi, é claro, demitido.
Ao assumir o cargo de Chanceler, no governo Lula, Amorim – na presença da Embaixadora dos Estados Unidos – recomendou aos jovens diplomatas que, acima de tudo, não tivessem medo. E mostrou a que viera, ao nomear, para a Secretaria-Geral do Itamaraty, o Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, que fora ostensivamente hostilizado durante o governo anterior, em razão de sua firme atitude nacionalista. Conduziu política externa de afirmação nacional, coerente com a de alguns de seus antecessores, também do regime militar, que foi oposta à dos oito anos anteriores, os de Fernando Henrique Cardoso, e bem próxima de sua atuação quando, no governo Itamar Franco, ocupou pela primeira vez a Secretaria de Estado.
A nossa conversa começou com uma olhada ao mundo. Se, de acordo com a visão de Clausewitz, política internacional e guerra se complementam, com os embates armados se seguindo à movimentação diplomática, Amorim está no lugar certo. Ele, diplomata atento, conhece bem a história política internacional – e não só a partir do Tratado de Westphalia, que é tido como o alicerce do poder mundial de nosso tempo. Seus olhos vão mais atrás, na longa crônica dos conflitos planetários, desde que deles há registros. Enfim, o mundo é da forma que é. Sendo assim, temos que nos preparar, e conviver com a realidade – não com o sonho.
Todos os países têm uma estratégia de poder, e a mais conhecida delas, no mundo contemporâneo, é a dos Estados Unidos. Os norte-americanos nunca esconderam o seu projeto expansionista, exposto a partir de 1845 – quando se preparavam para a guerra com o México, com a doutrina do Destino Manifesto. A frase foi criada pelo jornalista John Sullivan, ao exigir, em artigo, a anexação do Texas: a “divina providência” dotara o país da missão de dominar o mundo.
JB – Ministro, qual é a estratégia de poder do Brasil?
CA – O Brasil – e isso não é só uma convicção nossa, mas é também do conhecimento da comunidade internacional – não tem o objetivo estratégico de expansão de seu poder no mundo. O que a natureza e a história nos deram é bastante. Não queremos outro poder que não seja o de garantir a nossa soberania territorial e o respeito internacional à nossa autodeterminação. Para isso, é claro, devemos dispor de suficiente capacidade militar de defesa. A nossa estratégia pode ser resumida em uma ideia básica: cooperação ativa com os nossos vizinhos continentais, a fim de manter a paz e a defesa de nossos interesses comuns, e capacidade bélica a fim de dissuadir a agressão de eventuais adversários externos à nossa região, por mais poderosos sejam. Não nos amedrontamos: estamos dispostos a resistir a qualquer agressão com determinação e bravura. É nesse duplo movimento que o Brasil vem agindo e continuará a agir.
Preocupações com a África
O Ministro lembra que a situação geopolítica do Brasil, com a nossa extensa costa atlântica, vis-à-vis com a África Ocidental, traz-nos responsabilidade e preocupação com essas águas, que sempre singramos, em nossas relações seculares com o outro grande continente meridional. Temos excelentes relações, também de natureza militar, com as novas nações, e não as limitamos àquelas que, tendo sido colonizadas por Portugal, são nossas irmãs históricas. A propósito, faz menção à visita de cortesia do contra-almirante Mohamed Sane, do Senegal, que acabara de receber. No decorrer do encontro o contra-almirante referiu-se a uma ação da Marinha Brasileira, em Cabo Verde, de treinamento de tripulações para atendimento médico e social das populações litorâneas e ribeirinhas, e mostrou interesse em receber a mesma colaboração.
Nesse particular, recordou que, terminado o regime de apartheid na África do Sul, tão logo a última nave de guerra sul-africana deixou o porto da Baía de Walvis, na Namíbia, nele encostou uma fragata brasileira. O Brasil está presente na Namíbia, ajudando seu povo a construir a nação, depois de dura dominação européia, iniciada pelos holandeses, há mais de 200 anos. Está presente na Namíbia, como está na Guiné, em Cabo Verde, em São Tomé e Príncipe e, naturalmente, em Angola. E em Moçambique – do outro lado do continente – isso sem falar em Timor Leste. Enfim, o Brasil não está ausente do mundo.
Amorim é cuidadoso nas respostas. Como Ministro da Defesa cabe-lhe preparar as forças militares a fim de cumprir as decisões tomadas pela Chefia do Governo e do Estado, a partir de uma visão conjunta do país e do planeta. Esse cuidado é ainda mais nítido, quando fala na geopolítica brasileira, a fim de não entrar nas atribuições do Itamaraty – que conduziu por mais de onze anos.
Não lhe é difícil, no entanto, manter, como diretriz mental, a linha básica da política externa que vem sendo a mesma, desde a Independência, mas de forma mais nítida com a República e com Rio Branco: a da permanente e pragmática defesa da soberania nacional, a do não alinhamento automático a essa ou àquela potência, e da autodeterminação dos povos, dentro das condições objetivas de seu tempo – ainda que eventualmente desprezada por certos governantes, como ocorreu com a doutrina das fronteiras ideológicas da Ditadura. Amorim, como bom diplomata, faz silêncio, quando lembro o alinhamento constrangedor do governo de Fernando Henrique a Washington.
Operação na fronteira
Conversamos dias depois de terminada a Operação Ágata VI que teve ampla repercussão internacional, mas foi pouco divulgada pela imprensa brasileira. O ministro está satisfeito com o desempenho das três forças no exercício de patrulhamento intensivo da fronteira. Ao mesmo tempo em que as tropas se preparam para eventuais combates na defesa do território – não contra os vizinhos, dos quais nada temos a temer – realizam a necessária coerção contra o contrabando, de armas e de drogas. E presta assistência médica e social às populações que vivem quase isoladas nos confins do Oeste e do Norte. Nossas fronteiras terrestres são extensas, e não há como delas cuidar apenas com as corporações policiais. É preciso, assim, ter tropas adestradas para intervir, sempre que necessário.
- Temos convidado os países vizinhos para enviar observadores a essas operações. Alguns os enviaram, outros, não. Houve ainda os que, decidiram realizar operações semelhantes e simultâneas em seu próprio território, e isso tornou a nossa tarefa ainda mais fácil – disse o Ministro.
Amorim, que é homem de formação intelectual inclinada para a cultura, como cineasta que foi (e pai de cineastas), não se sente deslocado entre os militares. Sempre entendeu que a ordem é a razão dos corpos armados, o que significa absoluto respeito à hierarquia. Na verdade, disciplina e hierarquia são atributos profissionais dos soldados, o que não impediu que houvesse sempre chefes militares que atuassem como homens de Estado.
O ministro cita Caxias, um clausewtziano, que, obtida a vitória sobre o Paraguai, com a tomada de Assunção, sugeriu o armistício generoso e o fim das hostilidades – e foi substituído no comando pelo Conde d’Eu. O genro do Imperador, impelido pelo ânimo vingador do Trono, atuou ali com os exageros que conhecemos e ainda nos constrange. Antes disso, na repressão aos movimentos libertários e descentralizadores das províncias, o Duque sempre promovera a anistia aos revoltosos, no momento em que as armas silenciavam.
Amorim não diz nada, mas entende a pausa de silêncio do entrevistador e a ela responde com a frase lateral:
- As experiências mais recentes estão cimentando, nas Forças Armadas, a opinião de que devem profissionalizar-se ao extremo e dispor dos mais avançados instrumentos de combate para a sua missão constitucional. Sempre repito a ideia de que a nossa defesa é indelegável. Por melhores amigos que tenhamos no mundo, não serão eles os responsáveis pela segurança de nossas fronteiras e de nossas razões. Essa é uma tarefa do povo brasileiro, tendo como vanguarda os corpos armados. As guerras modernas, sempre indesejáveis, mobilizam as nações em seu todo, e isso ficou bem claro na Segunda Guerra Mundial. Nenhuma política de defesa será eficaz se não houver o perfeito entrosamento patriótico entre os cidadãos uniformizados e os civis.
Tecnologia bélica
Entramos na questão da tecnologia bélica, que Amorim prefere qualificar como “de defesa”. Reitero-lhe uma preocupação, exposta neste mesmo Jornal do Brasil, com a desnacionalização da já de si modesta indústria brasileira de armamentos.
O Ministro procura tranquilizar a inquietação nacional com relação ao problema. Reconhece que descuidamos um pouco do assunto e que as dificuldades econômicas nacionais, manifestadas na dívida externa que consumia a maior parte das receitas orçamentárias, impediram o desenvolvimento da indústria estatal de armamentos e munições, e que empresas estrangeiras acabaram se associando às indústrias privadas nacionais do setor, absorvendo algumas delas. Mas pondera que nenhuma nação do mundo dispõe de indústria militar totalmente autônoma, mesmo que disponha de conhecimento para isso. Sempre compra alguma coisa que não consegue ainda produzir ou porque há outras razões, entre elas as da reciprocidade no comércio exterior.
- Já que temos de comprar, por que não comprar dos BRIC?
Amorim explica que estamos mantendo cooperação na área militar com a Índia, com aviões radares, que produzimos e os indianos equipam com os instrumentos eletrônicos. E que adquirimos helicópteros russos de ataque para a Força Aérea. Quanto aos aviões de caça, que muitos davam como certa a aquisição dos Raffale, da França, nada está ainda decidido. Caberá à Presidente (ou presidenta, como prefere o Ministro) a palavra final.
Autonomia da indústria de defesa
- Creio, diz o ministro, que nossa colaboração mais estreita se faz e se fará ainda mais no âmbito do IBAS – Índia, Brasil e África do Sul. Com esses países realizamos exercícios navais conjuntos e trabalhamos no desenvolvimento de equipamentos e petrechos de defesa. São países democráticos, com problemas sociais internos semelhantes e desafios idênticos, cada um deles de grande importância em seus continentes respectivos. E todos os três situados politicamente no Hemisfério Sul, ainda que a Índia esteja acima do Equador.
Mas ele ressalva a necessidade de incentivar a indústria nacional.
- Nossa preocupação maior, no entanto, é com o máximo de autonomia na indústria da defesa. Tudo o que nos for possível fabricar em nosso país, devemos fabricar. Sabemos que, em caso de um conflito, nem sempre podemos contar com alguns fornecedores. A Embraer está vendendo supertucanos para o mundo inteiro e acaba de exportá-los para a Indonésia. Ainda que não estejamos mais produzindo os blindados Osório – que teve uma encomenda volumosa para um país árabe desfeita por pressão de terceiros – começamos a produzir os Guaranis, em Minas Gerais. Estamos, com a Amazul, cuidando da modernização da Marinha, e queremos produzir nossas belonaves aqui mesmo. A Avibrás, por decisão da presidenta, está fabricando lançadores de foguetes. Avançamos na produção de munições não letais, e estamos na vanguarda dessa indústria, mas não descuidamos a produção de cartuchos convencionais, de que somos dos maiores produtores do mundo. A nossa indústria bélica se refaz, para chegar ao nível da necessidade. A indústria bélica é, sobretudo, tecnologia, que em nossos dias, significa eletrônica.
Como uma ideia puxa a outra, entramos na questão da cibernética, como um dos modernos meios de guerra. Amorim diz que não estamos alheios ao problema. Cita uma reunião ocorrida recentemente em Brasília, da qual participaram militares e especialistas civis.
- Nesse encontro, diz o ministro, um professor afirmou que a guerra cibernética já começou. Temos um Centro de Guerra Eletrônica em funcionamento e desenvolvemos pesquisas intensivas nesse campo de conhecimento. Em suma, não estamos desatentos. Sabemos que, sobretudo para a vigilância de nossos dois espaços mais vulneráveis, o da Amazônia, com seus imensos recursos naturais, e as águas atlânticas brasileiras, com o pré-sal, as armas eletrônicas têm prioridade absoluta.
O ministro está otimista. O Brasil cresce em seus entendimentos, na área da defesa, com os demais países do Continente. A Unasul e o Conselho de Defesa continental trabalham em conjunto e de forma a cada dia mais harmônica. Trata-se de uma fatalidade geográfica: a Natureza e a História nos uniram, e devemos dar a essa realidade uma construção política, na qual a autodeterminação de todos e de cada um esteja assegurada, e, da mesma forma, assegurada a paz na região, para servir à paz no mundo.
FONTE: Jornal do Brasil
FOTO: Agência Brasil
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