segunda-feira, abril 11, 2016

IMPEACHMENT E GOLPE CIVIL


Laércio Lopes*


O início do processo de impeachment da Presidente Dilma trouxe à baila questionamentos sobre a sua legalidade, o que levou a Presidente e seus defensores a tratarem o impeachment como golpe. A resposta dos defensores do impeachment - agora reforçada pelo posicionamento de pelo menos quatro ministros do STF-, é de que estando o impeachment previsto na CF/88 e em lei infraconstitucional, não se pode falar em golpe. Este último posicionamento se mostra simplista tanto do ponto de vista do direito como da política. Nesse sentido o ex-governador de São Paulo Claudio Lembo, citando um autor latino americano, em entrevista recente à Folha de São Paulo, disse que o impeachment se tornou uma novel ferramenta de golpe na américa latina, travestido de legalidade constitucional.

A imprensa tem divulgado que um membro de alta patente do poder judiciário tem mantido encontros com o presidente da câmara, com o vice-presidente da república e com senadores do PSDB, o mesmo que tem feito duras críticas ao governo e seu partido. Se em vez de ser um membro do poder judiciário a se encontrar com os principais atores do processo de impeachment fosse um general de alta patente, diríamos que poderíamos estar diante de um golpe militar travestido de impeachment, portanto há elementos para se dizer que está em curso um golpe civil, travestido de impedimento legal. Quando as tratativas extrapolam o âmbito do congresso nacional e nelas estão envolvidos membros de outros poderes, não se pode falar que está em jogo somente o processo de impeachment previsto na lei e na CF. Quando a articulação dá lugar a movimentações fora do congresso nacional, a legitimidade do processo se vê violada.

É de causar extrema perplexidade ver ministros e ex-ministros do STF virem a público, expressando um positivismo exacerbado, que foi fundamental para a vitória do nazismo na Alemanha, dizer que basta a norma estar positivada na Constituição para valer, sem qualquer compromisso com um exame moral ou de justiça. Isso sim, é violar a constituição e prostituir a sua tábua axiológica e o seu espirito. No dia 30.03.2016, na imprensa, o ministro Marco Aurélio do STF, esposou opinião de que se o crime de responsabilidade não estiver sobejamente comprovado tratar-se-ia de um golpe.

Ao se dizer que o impeachment está regrado legalmente por isso não é golpe, incorremos em graves erros e concordamos que um processo pode servir a chantagens, como foi deflagrado o processo ora em discussão quando todos viram que o presidente da Câmara somente o deflagrou ao não ser atendido em uma demanda pessoal. Seria como dizer: o processo de impeachment, no seu viés político, não tem regras morais.

Quando a CF e a Lei 1079/50 descrevem os crimes de responsabilidade o fazem em numerus clausus e deixam assentado que o processo somente tem justa causa se os crimes elencados forem devidamente tipificados e isso somente se viabiliza com um julgamento das contas, quando se tratar das chamadas pedaladas fiscais, não sendo possível tipificação por conta do mero julgamento por órgão auxiliar do congresso nacional. O princípio constitucional da presunção de não culpabilidade não permite que se extraia exegese da CF para se concluir que o presidente da república cometeu crime sem uma justificativa de tipificação. Se o critério fosse meramente político o crime a ser tipificado deveria ter natureza essencialmente política, ainda assim a justa causa somente adviria da tipificação dos atos cometidos com os dispositivos regentes do impeachment, seja pelo julgamento das contas pelo congresso nacional, seja por decisão do Poder Judiciário. Contudo, o processo de impeachment alberga tanto normas políticas como jurídicas, por isso se privilegiarmos apenas as normas políticas o processo de impeachment pode ser transformado em um instituto com regras somente vistas no parlamentarismo, portanto inapto para desapear o presidente. Sabemos no que no sistema jurídico brasileiro a única forma de tipificação das normas é a que se dá por intermédio de um julgamento, mas não de uma apreciação perfunctória por quem está desprovido de imparcialidade.

Dizer que o congresso pode tudo é banalizar o instituto, a Constituição, o processo democrático, e colocar em risco o próprio Estado Democrático de Direito. Admitir que o presidente da câmara - por ter a primazia para deflagrar o processo de impeachment-, pode, inclusive, chantagear o presidente, é o mesmo que dizer que a CF deu a ele o direito de iniciar um processo de “revogação” da vontade de milhões de brasileiros que elegeram o presidente, se não atendidas suas demandas pessoais.

Juristas de tomo dizem que basta garantir-se ampla defesa ao presidente para que a legitimidade do processo seja observada, ou seja, basta a garantida formal do devido processo legal; porém, há que se observar que o presidente da república está garantido pelo devido processo legal substantivo de permanência no cargo a que foi investido e os eleitores de verem mantidos o sentimento manifestado pelo voto conforme regras do Estado Democrático de Direito.

O ato do presidente da Câmara, que está reduzido ao momento de deflagrar o processo, estará sempre vinculado ao devido processo legal, sobretudo o substantivo, o que não era possível de se vislumbrar quando da promulgação da Lei 1079/50, já que a configuração do Estado Democrático de Direito era amplamente diversa da de hoje. Em se tratando de acusação de cometimento de crime, o intérprete deve se manter no âmbito da estrita legalidade, sendo-lhe defeso ampliar as hipóteses elencadas na lei ou na CF, o que se aplica também no processo de impeachment. Se a ato do presidente da Câmara não estiver na sua integralidade vinculado aos princípios constitucionais - inclusive o da moralidade-, na parte que não se vincula a qualquer princípio o titular deste poder torna-se ao mesmo tempo titular de um micropoder, descolado do poder da força normativa da Constituição, e o nosso sistema passa a ser formado por um sistema geral de poder inscrito na CF e outros micropoderes que se constroem ao se afastar a imposição da CF a determinados atos - sobretudo os políticos. Decorre disso que a CF passa a ser um documento de descontinuidades de poderes e a universalidade dos direitos humanos e fundamentais deixa de ter esta característica passando a ser um instituto com solução de continuidade e com tipificação precária, sem uma relação de interdependência, lançando esses efeitos ao processo democrático e ao Estado Democrático de Direito.

Na medida em que está expresso no art. 5°, LIV da CF que ninguém será privado da liberdade ou dos seus bens sem o devido processo legal, restou evidenciado que qualquer tipo de ato, independentemente da sua natureza, que tenha o potencial de privar alguém de algum direito, da sua liberdade ou bem, se curva ao devido processo legal.

O devido processo legal não se resume, como pensam e resumem alguns, à possibilidade de ampla defesa, mas, antes, com suporte no devido processo legal substancial, preserva a liberdade individual de não se ver processado sem justa causa, de não ver sua investidura ameaçada por atos não plenamente justificados e admitidos pela CF. No caso ora em comento a Presidente, com a aceitação do pedido de impeachment, perdeu a liberdade para exercer o seu mandato e está sendo privada de governar com tranquilidade. Se tudo isso são consequências naturais do processo de impeachment, então todas elas devem ser plenamente justificadas na CF e na garantia do devido processo legal substantivo. A preservação das regras do Estado Democrático de Direito denuncia que - ainda que o presidente tenha reprovação de 99% da população-, o processo de impeachment não pode ser transformado em um disfarçado recall, não reconhecido pela CF/88. Por isso é preciso fazer uma separação do que é descontentamento com a economia e o que é com o cometimento de crime de responsabilidade, porquanto somente o segundo pode ser considerado para o impeachment, embora em termos de política mostra-se quase impossível fazer esta separação.

Basta uma leitura –ainda que perfunctória do inciso LIV, do art. 5º da CF/88- para se concluir que, a liberdade e os bens das pessoas estão assegurados pelo devido processo legal substantivo, o que significa que os atos chamados políticos ou aqueles a que se querem dar natureza de interna corporis, ao violarem o referido princípio, não permanecem imunes a sindicabilidade do Poder Judiciário. Na lição de Carlos Roberto Siqueira Castro, na concepção originária adjetiva da cláusula do devido processo legal, esta não visava a um questionamento da substância ou conteúdo dos atos do Poder Público, em particular daqueles editados pelo legislativo, razão pela qual essa garantia não teria logrado desde logo erigir-se em limitação do mérito das normas jurídicas, o que viria a ocorrer anos mais tarde com a formulação da teoria do substantive due process. A partir de então deu-se uma exploração pretoriana das potencialidades da cláusula due process of law como mecanismo de controle axiológico da atuação do Estado e de seus agentes e do mérito dos atos normativos. Assim, o devido processo legal na sua dimensão substantiva nascera com ideia de proteção de direitos fundamentais de índole naturalista, controlando a razoabilidade e racionalidade da lei. Desse modo, uma lei não poderia ser considerada constitucional se não portadora de razoabilidade e racionalidade, o que tornara o devido processo legal substantivo em verdadeiro standard de justiça.

Poderíamos dizer que o devido processo legal substantivo consagra a ideia de totalidade da constituição - único princípio que tem esta característica -, posto que não se pode construir uma constituição sem o devido processo legal substantivo, eis que perderia ela a ideia de constituição se este princípio não for sempre observado. Tanto assim o é que José Afonso da Silva, no prefácio da obra de Carlos Roberto Siqueira Castro, diz que, embora o devido processo legal não viesse expressamente escrito nas CF 1967/69, bastava uma leitura atenta da Constituição para que o instituto nela fosse encontrado. A vida, a liberdade e a igualdade são processos. Às vezes se apresentam interligados por uma relação de interdependência, outras vezes a separação não se faz possível e em outras vezes a separação decorre de um corte metodológico / epistemológico, apenas para uma fundamentação adequada. Para que a vida, a liberdade e a igualdade sejam processadas no direito e na política - construídos culturais – faz-se necessário que os instrumentos racionalidade e razoabilidade sejam manejados a possibilitar a adequação daqueles processos nos instrumentos direito e política, para adequá-los ao Estado Democrático de Direito. Vale então dizer que o devido processo legal substantivo é a instrumentalização da racionalidade e da razoabilidade - tanto no direito como na política.

O jornal Folha de São Paulo publicou no dia 02.04.2016 que o Ministro Marco Aurélio teria deferido liminar para determinar que o deputado Eduardo Cunha admita o pedido de afastamento do vice-presidente Michel Temer e envie para uma comissão especial analisar. Esta decisão do ministro Marco Aurélio estaria absolutamente respaldada no devido processo legal substantivo que implica em dar sindicabilidade ao poder judiciário para analisar a racionalidade e razoabilidade do mérito dos atos administrativos e normativos de todos os poderes. Se assim não fosse, o presidente da Câmara teria poderes ilimitados e não limitados pelos princípios constitucionais, poder este maior do que o da Suprema Corte. Em um Estado Democrático de Direito não pode haver qualquer ato que não possa ser revisto pela Suprema corte na sua racionalidade ou razoabilidade, sobretudo quando viola um princípio constitucional - na espécie, os da moralidade e isonomia. Se de outro modo se entendesse o impeachment, ou seja, um processo com poderes ilimitados do presidente da Câmara, poderia ele se transformar sempre um golpe da maioria quando não contemplada pelo poder central em suas demandas particulares, deixando de ser um dispositivo jurídico constitucional. Esta decisão histórica – determinar que o presidente da câmara atenda a determinados pressupostos constitucionais - deixaria estremes de dúvidas de que os princípios constitucionais devem ser observado nas decisões políticas; isso porque se o vice-presidente também assinou normas que se referem a pedaladas fiscais e foi citado na operação lava-jato, violaria princípios vetores da Constituição, como o da isonomia e moralidade, deixar de fora o vice, vez que isso implicaria em se ter que, como já afirmamos acima, o presidente da Câmara pudesse se utilizar de um importante instrumento do Estado Democrático de Direito para favorecer amigos do partido ou da política. Aqui sim se aplicaria o direito penal do inimigo. Não é preciso qualquer esforço exegético para se convencer da correção da decisão, se for confirmada, o que será um marco no direito brasileiro, pois afastará visões conservadoras que querem interpretar a CF a partir de uma leitura que a rebaixa a um documento condicionado à vontade dos que querem o poder pelo poder, sem compromisso com uma transformação da sociedade e do mundo, além do que redefinirá o instituto do impeachment dando-lhe verdadeiros aspectos de constitucionalidade.


A regra fundamental da hermenêutica, segundo preconiza a doutrina da filosofia do direito, reside no reconhecimento de uma circularidade metódica: o círculo hermenêutico enuncia que a parte só é compreensível a partir do todo e que este dever ser compreendido em função das partes. Significa isso que a totalidade maior não restringe a interpretação da Constituição como texto abstrato, porquanto o ajustamento da norma do impeachment à Carta Maior postula também um resguardo do Estado Democrático de Direito para o futuro. Daí decorre que a totalidade maior, em casos tais, ou seja, quando há um ajustamento político-jurídico no sistema, há que se considerar não somente para um caso concreto, o que poderia se configurar em um casuísmo, mas sim utilizar o caso concreto como um paradigma que sinaliza como uma correção no sistema para o futuro, máxime quando a totalidade menor (norma infraconstitucional) revelar-se uma verdadeira lacuna axiológica, menos pelo seu envelhecimento enquanto interpretação teleológica do que pelo fato de o sistema constitucional ter ganhado uma nova configuração a partir de uma leitura axiológica da sua força normativa, como ocorreu no Brasil a partir de 1988. Conforme Hottois, a circularidade metódica postula que o vaivém entre as partes que compõem a totalidade não revela uma dialética verdadeiramente limitada e tem no historicismo um corolário desse procedimento para se compreender as expressões de espírito e situá-las em seu contexto histórico.

Nos E.U.A e em outras grandes democracias do mundo o poder judiciário é o grande protagonista e fiador da democracia e, no Brasil, sobretudo pela juventude de nossa democracia e consequente fragilidade das nossas instituições, impende que não seja diferente. O processo de impeachment perde a sua legitimidade se não for conduzido por parlamentares de ilibada conduta, não podendo ser conduzido por sócios majoritários de falcatruas.

Vivemos um momento único para redefinirmos como o processo de impeachment deve se conformar a uma leitura axiológica da Constituição, dos seus princípios e do seu espírito, visto que a ultrapassada tese da separação de poderes a afastar a sindicabilidade do Poder Judiciário somente serve à dominação dos que forem rejeitados nas urnas e buscam um atalho a burlar a via constitucional de acesso ao poder.

Uma leitura moderna sobre a titularidade das tarefas deferidas a cada um dos poderes na Constituição deve levar em conta que esta divisão não traz qualquer tipo de elemento estanque; ao revés, enuncia que o cumprimento dessas tarefas deve ser realizado por aquele poder que melhor cumpra os desígnios da Constituição, sobretudo se o cumprimento revelar uma sintonia com o espirito da Carta da República. Qualquer outro tipo de interpretação pode levar a uma constatação de que as constituições estão submetidas há uma hermenêutica da titularidade dos poderes, que acaba por submeter a Constituição, e não ser por ela submetida.

Em sendo o STF guardião da CF, não só em relação à normas jurídicas em sentido estreito, mas em relação a toda as normas nela contidas deve, pois, no processo de impeachment: i) zelar pela indivisibilidade de deflagração do processo quando o presidente e o vice-presidente incorrerem na violação das mesmas normas ou igualmente se omitiram; ii) declarar que todo o processo de impeachment se vincula às normas e princípios da CF, inclusive o da moralidade; iii) declarar que somente serão consideradas normas interna corporis as do regimento que não implicarem em violação de direitos de pessoas ou grupos; iv) que mesmo findo o processo no Senado Federal, com a condenação ou absolvição, pode ser chamado a averiguar se ocorreu alguma nulidade no processo e anula-lo, se for o caso, com suporte em um exame da racionalidade ou razoabilidade; v) declarar nulo o voto quando o deputado ou senador expressa-lo por um outro motivo que não o especificado no processo, já que o voto do parlamentar no caso se equipara a de um julgamento. Essa seria uma justificativa mínima para um julgador político.

Portanto, a grande tarefa que cabe aos juízes nos momentos de crise institucional é a de posicionar-se como garantes das regras do Estado Democrático de Direito sem tomar partido, eis que ao fim e ao cabo sem uma posição do Poder Judiciário que se mostre, serena, justa e fincada nos princípios verdadeiramente democráticos, não haverá saída.



O início do processo de impeachment da Presidente Dilma trouxe à baila questionamentos sobre a sua legalidade, o que levou a Presidente e seus defensores a tratarem o impeachment como golpe. A resposta dos defensores do impeachment - agora reforçada pelo posicionamento de pelo menos quatro ministros do STF-, é de que estando o impeachment previsto na CF/88 e em lei infraconstitucional, não se pode falar em golpe. Este último posicionamento se mostra simplista tanto do ponto de vista do direito como da política. Nesse sentido o ex-governador de São Paulo Claudio Lembo, citando um autor latino americano, em entrevista recente à Folha de São Paulo, disse que o impeachment se tornou uma novel ferramenta de golpe na américa latina, travestido de legalidade constitucional.

A imprensa tem divulgado que um membro de alta patente do poder judiciário tem mantido encontros com o presidente da câmara, com o vice-presidente da república e com senadores do PSDB, o mesmo que tem feito duras críticas ao governo e seu partido. Se em vez de ser um membro do poder judiciário a se encontrar com os principais atores do processo de impeachment fosse um general de alta patente, diríamos que poderíamos estar diante de um golpe militar travestido de impeachment, portanto há elementos para se dizer que está em curso um golpe civil, travestido de impedimento legal. Quando as tratativas extrapolam o âmbito do congresso nacional e nelas estão envolvidos membros de outros poderes, não se pode falar que está em jogo somente o processo de impeachment previsto na lei e na CF. Quando a articulação dá lugar a movimentações fora do congresso nacional, a legitimidade do processo se vê violada.

É de causar extrema perplexidade ver ministros e ex-ministros do STF virem a público, expressando um positivismo exacerbado, que foi fundamental para a vitória do nazismo na Alemanha, dizer que basta a norma estar positivada na Constituição para valer, sem qualquer compromisso com um exame moral ou de justiça. Isso sim, é violar a constituição e prostituir a sua tábua axiológica e o seu espirito. No dia 30.03.2016, na imprensa, o ministro Marco Aurélio do STF, esposou opinião de que se o crime de responsabilidade não estiver sobejamente comprovado tratar-se-ia de um golpe.

Ao se dizer que o impeachment está regrado legalmente por isso não é golpe, incorremos em graves erros e concordamos que um processo pode servir a chantagens, como foi deflagrado o processo ora em discussão quando todos viram que o presidente da Câmara somente o deflagrou ao não ser atendido em uma demanda pessoal. Seria como dizer: o processo de impeachment, no seu viés político, não tem regras morais.

Quando a CF e a Lei 1079/50 descrevem os crimes de responsabilidade o fazem em numerus clausus e deixam assentado que o processo somente tem justa causa se os crimes elencados forem devidamente tipificados e isso somente se viabiliza com um julgamento das contas, quando se tratar das chamadas pedaladas fiscais, não sendo possível tipificação por conta do mero julgamento por órgão auxiliar do congresso nacional. O princípio constitucional da presunção de não culpabilidade não permite que se extraia exegese da CF para se concluir que o presidente da república cometeu crime sem uma justificativa de tipificação. Se o critério fosse meramente político o crime a ser tipificado deveria ter natureza essencialmente política, ainda assim a justa causa somente adviria da tipificação dos atos cometidos com os dispositivos regentes do impeachment, seja pelo julgamento das contas pelo congresso nacional, seja por decisão do Poder Judiciário. Contudo, o processo de impeachment alberga tanto normas políticas como jurídicas, por isso se privilegiarmos apenas as normas políticas o processo de impeachment pode ser transformado em um instituto com regras somente vistas no parlamentarismo, portanto inapto para desapear o presidente. Sabemos no que no sistema jurídico brasileiro a única forma de tipificação das normas é a que se dá por intermédio de um julgamento, mas não de uma apreciação perfunctória por quem está desprovido de imparcialidade.

Dizer que o congresso pode tudo é banalizar o instituto, a Constituição, o processo democrático, e colocar em risco o próprio Estado Democrático de Direito. Admitir que o presidente da câmara - por ter a primazia para deflagrar o processo de impeachment-, pode, inclusive, chantagear o presidente, é o mesmo que dizer que a CF deu a ele o direito de iniciar um processo de “revogação” da vontade de milhões de brasileiros que elegeram o presidente, se não atendidas suas demandas pessoais.

Juristas de tomo dizem que basta garantir-se ampla defesa ao presidente para que a legitimidade do processo seja observada, ou seja, basta a garantida formal do devido processo legal; porém, há que se observar que o presidente da república está garantido pelo devido processo legal substantivo de permanência no cargo a que foi investido e os eleitores de verem mantidos o sentimento manifestado pelo voto conforme regras do Estado Democrático de Direito.

O ato do presidente da Câmara, que está reduzido ao momento de deflagrar o processo, estará sempre vinculado ao devido processo legal, sobretudo o substantivo, o que não era possível de se vislumbrar quando da promulgação da Lei 1079/50, já que a configuração do Estado Democrático de Direito era amplamente diversa da de hoje. Em se tratando de acusação de cometimento de crime, o intérprete deve se manter no âmbito da estrita legalidade, sendo-lhe defeso ampliar as hipóteses elencadas na lei ou na CF, o que se aplica também no processo de impeachment. Se a ato do presidente da Câmara não estiver na sua integralidade vinculado aos princípios constitucionais - inclusive o da moralidade-, na parte que não se vincula a qualquer princípio o titular deste poder torna-se ao mesmo tempo titular de um micropoder, descolado do poder da força normativa da Constituição, e o nosso sistema passa a ser formado por um sistema geral de poder inscrito na CF e outros micropoderes que se constroem ao se afastar a imposição da CF a determinados atos - sobretudo os políticos. Decorre disso que a CF passa a ser um documento de descontinuidades de poderes e a universalidade dos direitos humanos e fundamentais deixa de ter esta característica passando a ser um instituto com solução de continuidade e com tipificação precária, sem uma relação de interdependência, lançando esses efeitos ao processo democrático e ao Estado Democrático de Direito.

Na medida em que está expresso no art. 5°, LIV da CF que ninguém será privado da liberdade ou dos seus bens sem o devido processo legal, restou evidenciado que qualquer tipo de ato, independentemente da sua natureza, que tenha o potencial de privar alguém de algum direito, da sua liberdade ou bem, se curva ao devido processo legal.

O devido processo legal não se resume, como pensam e resumem alguns, à possibilidade de ampla defesa, mas, antes, com suporte no devido processo legal substancial, preserva a liberdade individual de não se ver processado sem justa causa, de não ver sua investidura ameaçada por atos não plenamente justificados e admitidos pela CF. No caso ora em comento a Presidente, com a aceitação do pedido de impeachment, perdeu a liberdade para exercer o seu mandato e está sendo privada de governar com tranquilidade. Se tudo isso são consequências naturais do processo de impeachment, então todas elas devem ser plenamente justificadas na CF e na garantia do devido processo legal substantivo. A preservação das regras do Estado Democrático de Direito denuncia que - ainda que o presidente tenha reprovação de 99% da população-, o processo de impeachment não pode ser transformado em um disfarçado recall, não reconhecido pela CF/88. Por isso é preciso fazer uma separação do que é descontentamento com a economia e o que é com o cometimento de crime de responsabilidade, porquanto somente o segundo pode ser considerado para o impeachment, embora em termos de política mostra-se quase impossível fazer esta separação.

Basta uma leitura –ainda que perfunctória do inciso LIV, do art. 5º da CF/88- para se concluir que, a liberdade e os bens das pessoas estão assegurados pelo devido processo legal substantivo, o que significa que os atos chamados políticos ou aqueles a que se querem dar natureza de interna corporis, ao violarem o referido princípio, não permanecem imunes a sindicabilidade do Poder Judiciário. Na lição de Carlos Roberto Siqueira Castro, na concepção originária adjetiva da cláusula do devido processo legal, esta não visava a um questionamento da substância ou conteúdo dos atos do Poder Público, em particular daqueles editados pelo legislativo, razão pela qual essa garantia não teria logrado desde logo erigir-se em limitação do mérito das normas jurídicas, o que viria a ocorrer anos mais tarde com a formulação da teoria do substantive due process. A partir de então deu-se uma exploração pretoriana das potencialidades da cláusula due process of law como mecanismo de controle axiológico da atuação do Estado e de seus agentes e do mérito dos atos normativos. Assim, o devido processo legal na sua dimensão substantiva nascera com ideia de proteção de direitos fundamentais de índole naturalista, controlando a razoabilidade e racionalidade da lei. Desse modo, uma lei não poderia ser considerada constitucional se não portadora de razoabilidade e racionalidade, o que tornara o devido processo legal substantivo em verdadeiro standard de justiça.

Poderíamos dizer que o devido processo legal substantivo consagra a ideia de totalidade da constituição - único princípio que tem esta característica -, posto que não se pode construir uma constituição sem o devido processo legal substantivo, eis que perderia ela a ideia de constituição se este princípio não for sempre observado. Tanto assim o é que José Afonso da Silva, no prefácio da obra de Carlos Roberto Siqueira Castro, diz que, embora o devido processo legal não viesse expressamente escrito nas CF 1967/69, bastava uma leitura atenta da Constituição para que o instituto nela fosse encontrado. A vida, a liberdade e a igualdade são processos. Às vezes se apresentam interligados por uma relação de interdependência, outras vezes a separação não se faz possível e em outras vezes a separação decorre de um corte metodológico / epistemológico, apenas para uma fundamentação adequada. Para que a vida, a liberdade e a igualdade sejam processadas no direito e na política - construídos culturais – faz-se necessário que os instrumentos racionalidade e razoabilidade sejam manejados a possibilitar a adequação daqueles processos nos instrumentos direito e política, para adequá-los ao Estado Democrático de Direito. Vale então dizer que o devido processo legal substantivo é a instrumentalização da racionalidade e da razoabilidade - tanto no direito como na política.

O jornal Folha de São Paulo publicou no dia 02.04.2016 que o Ministro Marco Aurélio teria deferido liminar para determinar que o deputado Eduardo Cunha admita o pedido de afastamento do vice-presidente Michel Temer e envie para uma comissão especial analisar. Esta decisão do ministro Marco Aurélio estaria absolutamente respaldada no devido processo legal substantivo que implica em dar sindicabilidade ao poder judiciário para analisar a racionalidade e razoabilidade do mérito dos atos administrativos e normativos de todos os poderes. Se assim não fosse, o presidente da Câmara teria poderes ilimitados e não limitados pelos princípios constitucionais, poder este maior do que o da Suprema Corte. Em um Estado Democrático de Direito não pode haver qualquer ato que não possa ser revisto pela Suprema corte na sua racionalidade ou razoabilidade, sobretudo quando viola um princípio constitucional - na espécie, os da moralidade e isonomia. Se de outro modo se entendesse o impeachment, ou seja, um processo com poderes ilimitados do presidente da Câmara, poderia ele se transformar sempre um golpe da maioria quando não contemplada pelo poder central em suas demandas particulares, deixando de ser um dispositivo jurídico constitucional. Esta decisão histórica – determinar que o presidente da câmara atenda a determinados pressupostos constitucionais - deixaria estremes de dúvidas de que os princípios constitucionais devem ser observado nas decisões políticas; isso porque se o vice-presidente também assinou normas que se referem a pedaladas fiscais e foi citado na operação lava-jato, violaria princípios vetores da Constituição, como o da isonomia e moralidade, deixar de fora o vice, vez que isso implicaria em se ter que, como já afirmamos acima, o presidente da Câmara pudesse se utilizar de um importante instrumento do Estado Democrático de Direito para favorecer amigos do partido ou da política. Aqui sim se aplicaria o direito penal do inimigo. Não é preciso qualquer esforço exegético para se convencer da correção da decisão, se for confirmada, o que será um marco no direito brasileiro, pois afastará visões conservadoras que querem interpretar a CF a partir de uma leitura que a rebaixa a um documento condicionado à vontade dos que querem o poder pelo poder, sem compromisso com uma transformação da sociedade e do mundo, além do que redefinirá o instituto do impeachment dando-lhe verdadeiros aspectos de constitucionalidade.


A regra fundamental da hermenêutica, segundo preconiza a doutrina da filosofia do direito, reside no reconhecimento de uma circularidade metódica: o círculo hermenêutico enuncia que a parte só é compreensível a partir do todo e que este dever ser compreendido em função das partes. Significa isso que a totalidade maior não restringe a interpretação da Constituição como texto abstrato, porquanto o ajustamento da norma do impeachment à Carta Maior postula também um resguardo do Estado Democrático de Direito para o futuro. Daí decorre que a totalidade maior, em casos tais, ou seja, quando há um ajustamento político-jurídico no sistema, há que se considerar não somente para um caso concreto, o que poderia se configurar em um casuísmo, mas sim utilizar o caso concreto como um paradigma que sinaliza como uma correção no sistema para o futuro, máxime quando a totalidade menor (norma infraconstitucional) revelar-se uma verdadeira lacuna axiológica, menos pelo seu envelhecimento enquanto interpretação teleológica do que pelo fato de o sistema constitucional ter ganhado uma nova configuração a partir de uma leitura axiológica da sua força normativa, como ocorreu no Brasil a partir de 1988. Conforme Hottois, a circularidade metódica postula que o vaivém entre as partes que compõem a totalidade não revela uma dialética verdadeiramente limitada e tem no historicismo um corolário desse procedimento para se compreender as expressões de espírito e situá-las em seu contexto histórico.

Nos E.U.A e em outras grandes democracias do mundo o poder judiciário é o grande protagonista e fiador da democracia e, no Brasil, sobretudo pela juventude de nossa democracia e consequente fragilidade das nossas instituições, impende que não seja diferente. O processo de impeachment perde a sua legitimidade se não for conduzido por parlamentares de ilibada conduta, não podendo ser conduzido por sócios majoritários de falcatruas.

Vivemos um momento único para redefinirmos como o processo de impeachment deve se conformar a uma leitura axiológica da Constituição, dos seus princípios e do seu espírito, visto que a ultrapassada tese da separação de poderes a afastar a sindicabilidade do Poder Judiciário somente serve à dominação dos que forem rejeitados nas urnas e buscam um atalho a burlar a via constitucional de acesso ao poder.

Uma leitura moderna sobre a titularidade das tarefas deferidas a cada um dos poderes na Constituição deve levar em conta que esta divisão não traz qualquer tipo de elemento estanque; ao revés, enuncia que o cumprimento dessas tarefas deve ser realizado por aquele poder que melhor cumpra os desígnios da Constituição, sobretudo se o cumprimento revelar uma sintonia com o espirito da Carta da República. Qualquer outro tipo de interpretação pode levar a uma constatação de que as constituições estão submetidas há uma hermenêutica da titularidade dos poderes, que acaba por submeter a Constituição, e não ser por ela submetida.

Em sendo o STF guardião da CF, não só em relação à normas jurídicas em sentido estreito, mas em relação a toda as normas nela contidas deve, pois, no processo de impeachment: i) zelar pela indivisibilidade de deflagração do processo quando o presidente e o vice-presidente incorrerem na violação das mesmas normas ou igualmente se omitiram; ii) declarar que todo o processo de impeachment se vincula às normas e princípios da CF, inclusive o da moralidade; iii) declarar que somente serão consideradas normas interna corporis as do regimento que não implicarem em violação de direitos de pessoas ou grupos; iv) que mesmo findo o processo no Senado Federal, com a condenação ou absolvição, pode ser chamado a averiguar se ocorreu alguma nulidade no processo e anula-lo, se for o caso, com suporte em um exame da racionalidade ou razoabilidade; v) declarar nulo o voto quando o deputado ou senador expressa-lo por um outro motivo que não o especificado no processo, já que o voto do parlamentar no caso se equipara a de um julgamento. Essa seria uma justificativa mínima para um julgador político.

Portanto, a grande tarefa que cabe aos juízes nos momentos de crise institucional é a de posicionar-se como garantes das regras do Estado Democrático de Direito sem tomar partido, eis que ao fim e ao cabo sem uma posição do Poder Judiciário que se mostre, serena, justa e fincada nos princípios verdadeiramente democráticos, não haverá saída.

*Advogado, Mestre em Direito - PUC-SP

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