Carta Maior
A Esude formará quadros civis e militares ligados às forças armadas dos governos sul-americanos.
Daniel Martins Silva
Em fevereiro de 2014, líderes de governo aprovaram a criação da Escola Sul-Americana de Defesa (Esude) durante reunião executiva do Conselho de Defesa Sul-Americano da Unasul ocorrida no Suriname. Agora a Escola inaugura suas atividades, dando um novo passo para além daquele dado com o Centro de Estudos Estratégicos de Defesa (Ceed).
De acordo com a Declaracão do Conselho de chefes de estado e de governo da Unasul de dezembro de 2014, a iniciativa deverá ser “um centro de altos estudos do Conselho de Defesa Sul-americano (CDS), de articulação das iniciativas nacionais dos Estados Membros, formação e capacitação de civis e militares em matéria de defesa e segurança regional de nivel político-estratégico”.
A entidade funcionaria em rede, seguindo princípios da pluralidade e representação equitativa de membros, gradualidade e flexibilidade, e também consenso, complementariedade, cooperação e qualidade. Quatro importantes eixos de ação conduziriam os estudos: 1) geração de estratégias focadas na construção da ciberpaz sobre a base de uma ciberdefesa de proteção contra espionagem, 2) consolidação de politicas de defesa, 3) cooperação militar, ações humanitárias e operações de paz; 4) desenvolvimento da indústria de defesa na região, bem como a capacitação para garanti-la.
A inauguração oficial da escola aconteceu hoje (17/04) na sede da UNASUL em Quito, no Equador, quando tomou posse o primeiro diretor-geral da ESUDE, Antônio Jorge Ramalho, eleito por consenso entre os vice-ministros de Defesa que se reuniram ontem (16/04). Antônio Jorge é doutor em sociologia pela Universidade de São Paulo e professor do Instituito de Relações Internacionais da Universidade de Brasília. Também atuou no Ministério da Defesa dirigindo o Departamento de Cooperação, e colaborou com o Itamaraty na implantação do Centro de Estudos Brasileiros em Porto Príncipe, no Haiti. Entre 2009 e 2011, foi assessor da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República na área de defesa. O comando da escola também era concorrido com a indicação da Argentina de Jorge Battaglino, diretor da Escola de Defesa Nacional do país.
De acordo com o prof. Héctor Luis Saint-Pierre, ex-assessor do departamento de relações internacionais do Ministério da Defesa do Equador, as instituições participantes serão indicadas pelos ministérios de defesa dos países. Ernesto Samper, secretário-geral da Unasul em recente coletiva de imprensa, mencionou que as entidades integrantes seriam as "acadêmicas militares", o que quer dizer que a curto prazo ainda não se tem a expectativa de que universidades e academias civis sejam incluídas.
A Esude poderá ser uma alternativa ao pensamento de defesa que ainda ronda a América do Sul, que responde as novas ameaças com as velhas abordagens há muito desenhadas pela Escola das Américas (U.S. Army School of the Americas - SOA): centro norte-americano de formação militar, fundado em 1946, com atual sede na base de Fort Benning, no estado da Geórgia, EUA. Desde sua fundação até hoje mudou de nome e sede por três vezes. Até 1950 estaria registrada como “Centro de Adestramento Latino-americano- Divisão da Terra”, sendo depois substituido por “US Army Caribbean School” (Escola Caribenha do Exército dos Estados Unidos). Inicialmente alocada em Fort Amador, no Panamá, permaneceu naquele país até 1984, quando uma petição do presidente panamenho, Jorge Illueca, ordenou o fechamento das atividades no território do Panamá. Só então a organização foi transferida para os Estados Unidos.
Diante da expansão do comunismo no ocidente que se materializava na Revolução Cubana de 1963, várias foram as formas de contenção de uma possível ameaça soviética. Na busca patológica contra o regime, os Estados Unidos (governo e também atores não-governamentais, tais como corporações multinacionais) financiaram atividades para repreensão da resistência e legitimação dos regimes militares que derrubaram governos populares e nacionalistas, bem como massacraram lutas sociais no campo, nas fábricas e nas universidades. Fazia-se necessário intensificar a cooperação entre as forças armadas de diversas nacionalidades da América Latina. Afirma-se que cerca de 64 mil militares latino-americanos[1] teriam sido treinados em técnicas de contra-insurgência, comando e guerra psicológica, inteligência militar e táticas de interrogatório (como revelam os manuais de ensino da instituição liberados pelo Pentágono em 1996[2]). Os princípios que sustentaram o projeto de formação desta escola estavam fortemente conformados pela lógica da Doutrina de Segurança Nacional - pensamento que ganhou proeminência após a Segunda Guerra Mundial nos Estados Unidos, e que entendia que a defesa deveria se basear não somente na proteção de fronteiras, mas no controle de "forças internas de agitação".
O relatório da Comissão Nacional da Verdade (2014) revela que a participação dos Estados Unidos no golpe de 1964, além do apoio logístico-militar (já amplamente revelados nosr documentos em domínio público liberados pelo governo norte-americano[3]), por meio da Operação Brother Sam, também se deu intensamente "na formação e especialização dos agentes". Os cursos realizados, não apenas na Escola das Américas, prepararam funcionários de diversos organismos ligados à repressão no Estado brasileiro.
A gestão de John Kennedy expandiu enormemente os treinamentos militares para latino-americanos. De acordo com Schimidili[4], os oficiais também eram convidados a participar de cursos em bases militares nos Estados Unidos, tendo inclusive criado, em 1960, um programa especial para os militares da região no Army Special Warfare Center (situado em Fort Bragg, na Carolina do Norte). Cabe também mencionar o Colégio Inter-americano de Defesa, criado em 1962, em Fort McNair, em Washignton, no âmbito da Junta Inter-americana de Defesa (1947). Os cursos oferecidos nestas "escolas" ensinavam técnicas e analisavam os diversos aspectos da estratégia contra-insurgente (psicológico, sociológico, paramilitar, etc.).
Em 1999, o deputado John Joseph Moakley, da Casa dos Representantes (House of Representatives) enviou uma proposta legislativa[5] para o fechamento da Escola das Américas, que ocorreu em dezembro de 2000. A SOA foi renomeada como Instituto de Cooperacão e Segurança do Hemisfério Ocidental (texto_detalhe Hemisphere Institute for Security Cooperation - WHINSEC) em 2001, embora tenha mantido a função e vários de seus princípios. A WHINSEC foi e continua sendo centro de formação policial contra o tráfico de drogas em países na América Central, como a Costa Rica e México. Os resultados desastrosos da abordagem militarizante para lidar com o narcotráfico na América Latina repercutem nos desaparecimentos forçados dos 43 estudantes de Ayotzinapa ou na revelação do Ministério de Defesa mexicano de que um dos mais violentos cartéis de droga teria recrutado ex-oficiais graduados na WHINSEC[6].
A constatada participação de diversos ex-formandos da Escola das Américas em recentes golpes de Estados promovidos na região (em Honduras e na Venezuela), comprovam o teor da herança que permanece em alguns setores do ambiente militar latino-americano. Em 2007, Evo Morales anunciou que o governo iria paulatinamente deixar de enviar militares bolivianos para treinamento na instituição. Antes dela, a Argentina, Uruguai e Venezuela anunciaram a retirada de seu corpo militar em treinamentos na instituição.
Resquícios da lógica de segurança norte-americana também se refletem na permanência de bases militares na América do Sul. Uma nova unidade de força tarefa militar dos Estados Unidos para a região, com sede em Soto Cano, base aérea em Honduras, deverá se instalar neste ano com 250 marines. O Special Purpose Marine Air-Ground Task Force-South, de acordo com o site Defensa[7], deverá colaborar no treinamento com as forças militares dos países sul-americanos, em missões de assistência humanitária e operações anti-droga. No clima de caça às bruxas, a tríplice fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina foi incorporada ao discurso da guerra contra o terror sem evidências concretas.
Se despentagonizar já é mote conhecido, no entendimento de que a soberania do espaço e de seus recursos tem maior importância para a agenda da região, cabe enfatizar que a formação e a capacitação em defesa sul-americana precisa responder os desafios regionais com autonomia, proposição, mas também enfrentando os obstáculos que se colocam para a participação democrática e cidadã na construção da política de defesa regional. Em tempos em que revelam-se exercícios militares ao som de apologia à tortura é sintomático o que nos disse uma vez o diplomata e escritor brasileiro Guimarães Rosa: o passado também é urgente.
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