O objetivo deste blog é discutir um projeto de desenvolvimento nacional para o Brasil. Esse projeto não brotará naturalmente das forças de mercado e sim de um engajamento político que direcionará os recursos do país na criação de uma nação soberana, desenvolvida e com justiça social.
quarta-feira, junho 27, 2012
José Luís Fiori: O homem que enxergou o ABC como futura ameaça a Washington
Do Viomundo
DEBATE ABERTO
Nicholas Spykman e a América Latina
Para o principal geoestrategista norte-americano do século XX, qualquer ameaça à hegemonia dos EUA na América Latina deverá vir do sul, em particular da Argentina, Brasil e Chile. Uma ameaça à hegemonia nesta região terá que ser respondida através da guerra, escreveu Spykman.
José Luís Fiori, na Carta Maior, sugerido pelo ZePovinho
O principal “geoestrategista” norte-americano do século XX, nasceu em Amsterdam, em 1893, e morreu nos Estados Unidos, em 1943.
Era de origem holandesa, mas fez seus estudos superiores na Universidade da Califórnia, e foi professor da Universidade de Yale, onde dirigiu o seu Instituto de Estudos Internacionais, entre 1935 e 1940.
Morreu ainda jovem, com 49 anos, e deixou apenas dois livros sobre a política externa norte-americana: o primeiro, America’s Strategy in World Politics, publicado em 1942, e o segundo, The Geography of the Peace, publicado um ano depois da sua morte, em 1944.
Dois livros que se transformaram na pedra angular do pensamento estratégico norte-americano de toda a segunda metade do século XX, e do início do século XXI.
Nicholas Spykman não foi um cientista, foi um “geopolítico” e a geopolítica não é uma ciência, é apenas uma disciplina que estuda a relação entre o espaço e a expansão do poder, antecipando e racionalizando as decisões estratégicas dos países que exercem poder fora de suas fronteiras nacionais.
É por isto, aliás, que só existe produção geopolítica relevante, nas chamadas “grandes potências”, e cada uma delas tem sua própria “escola geopolítica”, com suas preocupações, objetivos e racionalizações específicas.
Como no caso clássico da “escola geopolítica alemã”, de Friederich Ratzel e Karl Haushofer, com a sua teoria do “espaço vital” e do “pan-germanismo”, que serviu de ponto de partida para explicar a “necessidade geográfica” de expansão alemã, na direção da Europa Central, e da Rússia/União Soviética.
Ou também, como no caso da “escola geopolítica inglesa” de Halford Mackinder, com sua famosa tese de que “quem controla o “coração do mundo”( situado mais ou menos entre Berlim e Moscou), controla também a “ilha mundial” (a Eurásia), e quem controla a “ilha mundial” controla o mundo”.
Teoria que serviu de base para justificar a política externa britânica durante todo o século XX, e seu permanente veto e bloqueio de qualquer aliança entre a Alemanha e a Rússia/União Soviética.
Dentro desta tradição, não há dúvida que Nicholas Spykman foi o pai da “escola geopolítica norte-americana”. Ele partiu das idéias de Halford Mackinder, mas modificou sua tese central: para Spykman, quem tem o poder mundial não é quem controla diretamente o “coração do mundo”, é quem é capaz de cercá-lo, como os Estados Unidos fizeram durante toda a Guerra Fria, e seguem fazendo até os nossos dias.
Spykman escreveu seus dois livros antes da entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial, e por isto chama atenção a sua capacidade genial de prever o que aconteceria depois da guerra, tanto quanto a semelhança entre suas propostas estratégicas e a política externa que os Estados Unidos adotaram efetivamente, durante a segunda metade do século XX, na Europa, Ásia e América.
Em 1942, Nicholas Spykman defendeu a necessidade de uma aliança estratégica e de uma hegemonia conjunta, anglo-americana, para “gerir o mundo” depois do fim da Guerra, como de fato ocorreu, em São Francisco, em Bretton Woods, e na formulação da Doutrina Churchill-Truman da “cortina de ferro”.
Além disto, Spykman defendeu a necessidade de que os Estados Unidos reconstruíssem e protegessem a Alemanha, depois da guerra, para facilitar a “contenção” da União Soviética, como aconteceu durante toda a Guerra Fria. E defendeu também a necessidade de reconstruir e proteger o Japão, para enfrentar a ameaça futura da China, que era na época o principal aliado asiático dos Estados Unidos.
Por fim, Spykman se opôs ao projeto da unificação européia, e defendeu a manutenção do equilíbrio de poder europeu, tutelado pelos Estados Unidos, como vem acontecendo cada vez mais, depois da queda do Muro de Berlim.
E com relação à América, o que foi que previu e propôs Nicholas Spykman? Sobre este ponto, chama a atenção o grande espaço que ele dedica na sua obra à discussão da América Latina, e em particular, à “luta pela América do Sul”. Ele parte de uma separação radical, entre a América dos anglo-saxões e a América dos latinos.
Nas suas palavras “as terras situadas ao sul do Rio Grande constituem um mundo diferente do Canadá e dos Estados Unidos. E é uma coisa desafortunada que as partes de fala inglesa e latina do continente tenham que ser chamadas igualmente de América, evocando uma similitude entre as duas que de fato não existe”.
Em seguida, ele propõe dividir o “mundo latino” em duas regiões, do ponto de vista da estratégia americana, no sub-continente: uma primeira, “mediterrânea”, que incluiria o México, a América Central e o Caribe, alem da Colômbia e da Venezuela; e uma segunda que incluiria toda a América do Sul, abaixo da Colômbia e da Venezuela.
Feita esta separação geopolítica, Spykman define a “América Mediterrânea como uma zona em que a supremacia dos Estados Unidos não pode ser questionada. Para todos os efeitos trata-se um mar fechado cujas chaves pertencem aos Estados Unidos.. o que significa que o México, Colômbia e Venezuela (por serem incapazes de se transformar em grandes potências ), ficarão sempre numa posição de absoluta dependência dos Estados Unidos”.
Donde, qualquer ameaça à hegemonia americana na América Latina deverá vir do sul, em particular da Argentina, Brasil e Chile, a “região do ABC”. Nas palavras do próprio Spykman: “para nossos vizinhos ao sul do Rio Grande, os norte-americanos seremos sempre o “Colosso do Norte”, o que significa um perigo, no mundo do poder político. Por isto, os países situados fora da nossa zona imediata de supremacia, ou seja, os grandes estados da América do Sul (Argentina, Brasil e Chile) podem tentar contrabalançar nosso poder através de uma ação comum ou através do uso de influências de fora do hemisfério”.
E neste caso, conclui: “uma ameaça à hegemonia americana nesta região do hemisfério (a região do ABC) terá que ser respondida através da guerra”.
O mais interessante é que se estas análises, previsões e advertências não tivessem feitas por Nicholas Spykman, pareceriam bravata de algum destes populistas latino-americanos, que inventam inimigos externos e que se multiplicam como cogumelos, segundo a idiotia conservadora.
*José Luís Fiori, cientista político, é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
PS do Viomundo: A cacofonia dos que agora pretendem justificar, na mídia brasileira, o golpe fast food que aconteceu no Paraguai, se divide entre os convictos, os bobo-alegres que falam de orelhada e os porta-vozes da SPI-Embajada. Notem que os repórteres vão a Assunção mas ficam reproduzindo o oficialismo, as declarações de autoridades, sejam pró ou contra o Lugo. Os deserdados paraguaios, do campo, não são ouvidos e não podem mandar delegações a Brasília para fazer lobby.
terça-feira, junho 26, 2012
Santayana: os EUA estão de olho na Tríplice Fronteira
Conforme o Wikileaks revelou, a embaixada norte-americana informava, em 2009, que a direita preparava um “golpe democrático” contra Lugo.
O Conversa Afiada reproduz artigo de Mauro Santayana do JB online:
O golpe em Assunção e a tríplice fronteira
A moderação dos Estados Unidos, que dizem estranhar a rapidez do processo de impeachment do presidente Lugo, não deve alimentar o otimismo continental. Em plena campanha eleitoral, a equipe de Obama (mesmo a senhora Clinton) caminha com cautela, e não lhe convém tomar atitudes drásticas nestas semanas. Esta razão os leva a deixar o assunto, neste momento, nas mãos da OEA. Na verdade, se as autoridades de Washington não ordenaram a operação relâmpago contra Lugo, não há dúvida de que o Parlamento paraguaio vem sendo, e há muito, movido pelo controle remoto do Norte.
E é quase certo que, ao agir como agiram, os inimigos de Lugo contavam com o aval norte-americano. E ainda contam. Conforme o Wikileaks revelou, a embaixada norte-americana informava a Washington, em março de 2009, que a direita preparava um “golpe democrático” contra Lugo, mediante o Parlamento. Infelizmente, não sabemos o que a embaixada dos Estados Unidos em Assunção comunicou ao seu governo depois e durante toda a maturação do golpe: Assange e Meaning estão fora de ação.
Não é segredo que os falcões ianques sonham com o controle da Tríplice Fronteira. Não há, no sul do Hemisfério, ponto mais estratégico do que o que une o Brasil ao Paraguai e à Argentina. É o ponto central da região mais populosa e mais industrializada da América do Sul, a pouco mais de duas horas de voo de Buenos Aires, de São Paulo e de Brasília. Isso sem falar nas cataratas do Iguaçu, no Aquífero Guarani e na Usina de Itaipu. Por isso mesmo, qualquer coisa que ocorra em Assunção e em Buenos Aires nos interessa, e de muito perto.
Não procede a afirmação de Julio Sanguinetti, o ex-presidente uruguaio, de que estamos intervindo em assuntos internos do Paraguai. É provável que o ex-presidente — que teve um desempenho neoliberal durante seu mandato — esteja, além de ao Brasil e à Argentina, dirigindo suas críticas também a José Mujica, lutador contra a ditadura militar, que o manteve durante 14 anos prisioneiro, e que vem exercendo um governo exemplar de esquerda no Uruguai.
Não houve intervenção nos assuntos internos do Paraguai, mas a reação normal de dois organismos internacionais que se regem por tratados de defesa do estado de direito no continente, o Mercosul e a Unasul — isso sem se falar na OEA, cujo presidente condenou, ad referendum da assembleia, o golpe parlamentar de Assunção.
É da norma das relações internacionais a manifestação de desagrado contra decisões de outros países, mediante medidas diplomáticas. Essas medidas podem evoluir, conforme a situação, até a ruptura de relações, sem que haja intervenção nos assuntos internos, nem violação aos princípios da autodeterminação dos povos.
A prudência — mesmo quando os atos internos não ameacem os países vizinhos — manda não reconhecer, de afogadilho, um governo que surge ex-abrupto, em manobra parlamentar de poucas horas. E se trata de sadia providência expressar, de imediato, o desconforto pelo processo de deposição, sem que tenha havido investigação minuciosa dos fatos alegados, e amplo direito de defesa do presidente.
Registre-se o açodamento nada cristão do núncio apostólico em hipotecar solidariedade ao sucessor de Lugo, a ponto de celebrar missa de regozijo no dia de sua posse. O Vaticano, ao ser o primeiro a reconhecer o novo governo, não agiu como Estado, mas, sim, como sede de uma seita religiosa como outra qualquer.
O bispo é um pecador, é verdade, mas menos pecador do que muitos outros prelados da Igreja. Ele, ao gerar filhos, agiu como um homem comum. Outros foram muito mais adiante nos pecados da carne — sem falar em outros deslizes, da mesma gravidade — e têm sido “compreendidos” e protegidos pela alta hierarquia da Igreja. O maior pecado de Lugo é o de defender os pobres, de retornar aos postulados da Teologia da Libertação.
Lugo parece decidido a recuperar o seu mandato — que duraria, constitucionalmente, até agosto do próximo ano. Não parece que isso seja fácil, embora não seja improvável. Na realidade, Lugo não conta com a maior parcela da classe média paraguaia, e possivelmente enfrente a hostilidade das forças militares. Os chamados poderes de fato — a começar pela Igreja Católica, que tem um estatuto de privilégios no Paraguai — não assimilaram o bispo e as suas ideias. Em política, no entanto, não convém subestimar os imprevistos.
Os fazendeiros brasileiros que se aproveitaram dos preços relativamente baixos das terras paraguaias, e lá se fixaram, não podem colocar os seus interesses econômicos acima dos interesses permanentes da nação. É natural que aspirem a boas relações entre os dois países e que, até mesmo, peçam a Dilma que reconheça o governo. Mas o governo brasileiro não parece disposto a curvar-se diante dessa demanda corporativa dos “brasiguaios”.
No Paraguai se repete uma endemia política continental, sob o regime presidencialista. O povo vota em quem se dispõe a lutar contra as desigualdades e em assegurar a todos a educação, a saúde e a segurança, mediante a força do Estado. Os parlamentos são eleitos por feudos eleitorais dominados por oligarcas, que pretendem, isso sim, manter seus privilégios de fortuna, de classe, de relações familiares.
Nós sofremos isso com a rebelião parlamentar, empresarial e militar (com apoio estrangeiro) contra Getulio, em 1954, que o levou ao suicídio; contra Juscelino, mesmo antes de sua posse, e, em duas ocasiões, durante seu mandato. Todas foram debeladas. A conspiração se repetiu com Jânio, e com Jango — deposto pela aliança golpista civil e militar, patrocinada por Washington, em 1964.
A decisão dos países do Mercosul de suspender o Paraguai de sua filiação ao tratado, e a da Unasul de só reconhecer o governo paraguaio que nasça das novas eleições marcadas para abril, não ferem a soberania do Paraguai, mas expressam um direito de evitar que as duas alianças continentais sejam cúmplices de um golpe contra o estado democrático de direito no país vizinho.
Zé Alencar impediu golpe paraguaio x Lula
Leia artigo de Tarso sobre o Paraguai e o Brasil, na Carta Maior: Um golpe de novo tipo contra Lugo.
Quem é o Pelé ?
O Conversa Afiada reproduz testemunho histórico do Governador Tarso Genro sobre o papel do vice-presidente José Alencar ao impedir um Golpe mervalmente paraguaio contra o Nunca Dantes.
Tarso Genro chama também a OAB às falas – a OAB Golpista.
Só no Brasil: uma ordem de Advogados, de Advogados … Golpista !
(Clique aqui para relembrar a passagem gloriosa de Roberto Busato à frente da instituição que Raymundo Faoro presidiu. Hoje quem está lá é o Ophir.)
Leia artigo de Tarso sobre o Paraguai e o Brasil, na Carta Maior:
Um golpe de novo tipo contra Lugo
No Paraguai o Poder Legislativo na condição de Tribunal político atentou contra dois princípios básicos de qualquer democracia minimamente séria: o princípio da “ampla defesa” e o princípio do “devido processo legal”. É impossível um processo justo – mesmo de natureza política – que dispense um mínimo de provas. É impossível garantir o direito de defesa – mesmo num juízo político – sem que o réu tenha conhecimento pleno do crime ou da responsabilidade a partir da qual esteja sendo julgado. Tudo isso foi negado ao Presidente Lugo. O artigo é de Tarso Genro.
Tarso Genro (*)
O que foi tentado contra Lula, na época do chamado mensalão – que por escassa margem de votos não teve o apoio da OAB Federal numa histórica decisão do seu Conselho ainda não revelada em todas as suas implicações políticas – foi conseguido plenamente contra o Presidente Lugo. E o foi num fulminante e sumário ritual, que não durou dois dias. Não se alegue, como justificativa para apoiar o golpe, que a destituição do Presidente Lugo foi feita “por maioria” democrática, pois a maioria exercida de forma ilegal também pode ser um atentado à democracia. É fácil dar um exemplo: “por maioria”, o Poder Legislativo paraguaio poderia legislar adotando a escravidão dos seus indígenas?
No Paraguai o Poder Legislativo na condição de Tribunal político atentou contra dois princípios básicos de qualquer democracia minimamente séria: o princípio da “ampla defesa” e o princípio do “devido processo legal”. É impossível um processo justo – mesmo de natureza política – que dispense um mínimo de provas. É impossível garantir o direito de defesa – mesmo num juízo político – sem que o réu tenha conhecimento pleno do crime ou da responsabilidade a partir da qual esteja sendo julgado. Tudo isso foi negado ao Presidente Lugo.
O que ocorreu no Paraguai foi um golpe de estado de “novo tipo”, que apeou um governo legitimamente eleito através de uma conspiração de direita, dominante nas duas casas parlamentares. Estas jamais engoliram Lugo, assim como a elite privilegiada do nosso país jamais engoliu o Presidente Lula. Lá, eles tiveram sucesso porque o Presidente Lugo não tinha uma agremiação partidária sólida e estava isolado do sistema tradicional de poder, composto por partidos tradicionais que jamais se conformaram com a chegada à presidência de um bispo ligado aos movimentos sociais. A conspiração contra Lugo estava no Palácio, através do Vice-Presidente que agora, “surpreso”, assume o governo, amparado nas lideranças parlamentares que certamente o “ajudarão” a governar dentro da democracia.
Aqui, eles não tiveram sucesso porque – a despeito das recomendações dos que sempre quiseram ver Lula isolado, para derrubá-lo ou destruí-lo politicamente – o nosso ex-Presidente soube fazer acordos com lideranças dos partidos fora do eixo da esquerda, para não ser colocado nas cordas. Seu isolamento, combinado com o uso político do”mensalão”, certamente terminaria em seu impedimento. Acresce-se que aqui no Brasil – sei isso por ciência própria pois me foi contado pelo próprio José Alencar- o nosso Vice presidente falecido foi procurado pelos golpistas “por dentro da lei” e lhes rejeitou duramente.
A tentativa de golpe contra o Presidente Chavez, a deposição de Lugo pelas “vias legais”, a rápida absorção do golpe “branco” em Honduras, a utilização do território colombiano para a instalação de bases militares estrangeiras têm algum nexo de causalidade? Sem dúvida têm, pois, esgotado o ciclo das ditaduras militares na América Latina, há uma mudança na hegemonia política do continente, inclusive com o surgimento de novos setores de classes, tanto no mundo do trabalho como no mundo empresarial. É o ciclo, portanto, da revolução democrática que, ou se aprofunda, ou se esgota. Estes novos setores não mais se alinham, mecanicamente, às posições políticas tradicionais e não se submetem aos velhos padrões autoritários de dominação política.
Os antigos setores da direita autoritária, porém, incrustados nos partidos tradicionais da América latina e apoiados por parte da grande imprensa (que apoiaram as ditaduras militares e agora reduzem sua influência nos negócios do Estado) tentam recuperar sua antiga força, a qualquer custo. São estes setores políticos – amantes dos regimes autoritários – que estão embarcando neste golpismo “novo tipo”, saudosos da época em que os cidadãos comuns não tinham como fazer valer sua influência sobre as grandes decisões públicas.
É a revolução democrática se esgotando na América Latina? Ou é o início de um novo ciclo? A queda de Lugo, se consolidada, é um brutal alerta para todos os democratas do continente, seja qual for o seu matiz ideológico. Os vícios da república e da democracia são infinitamente menores dos que os vícios e as violências ocultas de qualquer ditadura.
Pela queda de Lugo, agradecem os que apostam num autoritarismo “constitucionalizado” na A.L., de caráter antipopular e pró-ALCA. Agradecem os torturadores que não terão seus crimes revelados, agradecem os que querem resolver as questões dos movimentos sociais pela repressão. Agradece, também, a guerrilha paraguaia, que agora terá chance de sair do isolamento a que tinha se submetido, ao desenvolver a luta armada contra um governo legítimo, consagrado pelas urnas.
(*) Governador do Rio Grande do Sul
Em tempo: o ansioso blogueiro entrevistou José Alencar e ponderou que ele e Lula se davam tão bem que nem precisavam trocar palavras. Se entendiam com o olhar. Pareciam Pelé e Coutinho. Alencar respondeu, às gargalhadas: precisa ver quem é o Pelé e quem é o Coutinho. Nessa mesma entrevista ele disse: prefiro a morte à desonra. PHA
sexta-feira, junho 22, 2012
Rafael Correa a Carta Maior, Página/12 e La Jornada: “Estamos diante de uma guerra não convencional”
Do Carta Maior
Em uma entrevista especial concedida à Carta Maior e aos jornais Página/12, da Argentina, e La Jornada, do México, o presidente do Equador, Rafael Correa analisa o que considera ser um dos principais problemas do mundo hoje: o poder das grandes corporações de mídia que agem como um verdadeiro partido político contra governos que não rezam pela sua cartilha. “Essa é a luta, não há luta maior. Estamos diante de uma guerra não convencional, mas guerra, de conspiração, desestabilização e desgaste”.
Carta Maior, La Jornada e Página/12
Rio de Janeiro – Representante de uma nova geração de líderes políticos da esquerda latinoamericana, o presidente do Equador, Rafael Correa, foi lançado para a linha de frente do cenário político mundial com o pedido de asilo político feito, em Londres, pelo fundador do Wikileaks, Julian Assange. Há poucas semanas, Assange entrevistou Correa e os dois conversaram, entre coisas, sobre um tema de interesse de ambos: as operações de manipulação conduzidas pelas grandes corporações midiáticas. Agora, durante sua passagem pela Rio+20, Rafael Correa voltou com força ao tema.
Em uma entrevista especial concedida à Carta Maior e aos jornais Página/12, da Argentina, e La Jornada, do México, analisa este que considera ser um dos principais problemas do mundo hoje: o poder das grandes corporações de mídia que, na América Latina, agem como um verdadeiro partido político contra governos que não rezam pela cartilha desses grupos. “Essa é a luta, não há luta maior. Estamos diante de uma guerra não convencional, mas guerra, de conspiração, desestabilização e desgaste”.
Na entrevista, Correa fala sobre o pedido de asilo de Assange, relata o debate sobre uma nova lei de comunicações no Equador e faz um balanço pessimista sobre os resultados da Rio+20.
Há um argumento segundo o qual a liberdade de imprensa é propriedade dos meios de comunicação empresariais. Imagino que essa não seja a sua opinião.
Correa: Não nos enganemos. Desde que se inventou a impressora a liberdade de imprensa, entre aspas, responde à vontade, ao capricho e à má fé do dono da impressora. Devemos lutar para inaugurar a verdadeira liberdade de imprensa que é parte de um conceito maior e um direito de todos os cidadãos, que é a liberdade de expressão, que defendemos radicalmente. No entanto, o poder midiático que faz negócios com o objetivo de ter lucro, até isso quer privatizar. Então, se eles têm tanta vocação para comunicar, como dizem, que o façam sem finalidades lucrativas, porque para mim isso é uma contradição.
Este é um grande problema na América Latina e também em nível planetário. Tenho tomado conhecimento que existem posições semelhantes às nossas, mas houve um tempo em que nos sentíamos muito sozinhos, quando fomos vítimas de um ataque tremendo por não abaixar a cabeça diante de um negócio muitas vezes corrupto e encoberto sob a capa da liberdade de expressão. Essa é a luta, não há luta maior.
Presidente, nestes dias foram divulgados telegramas pelo Wikileaks onde apareceram jornalistas equatorianos que eram considerados informantes pela embaixada dos Estados Unidos. Isso confirma as hipóteses levantadas quando você foi vítima de um golpe de Estado.
Correa: As mentiras deles sempre acabam sendo derrubadas. Entidades que financiam esses empórios midiáticos, certas organizações que, em nome da sociedade civil, nos denunciam ante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a SIP, ante todos os lados. Agora vemos que esses senhores são identificados via Wikileaks como informantes da embaixada (estadunidense). Wikileaks que nunca é publicado pela maioria da imprensa comercial. Não é só isso. Essa gente é financiada pela USAID, que vocês conhecem. A USAID financiou com 4,5 milhões de dólares a estes supostos defensores da liberdade de expressão, supostamente para fortalecer a democracia e a ação cívica. Na verdade, para fortalecer a oposição aos governos progressistas da América Latina e os povos da região tem que reagir contra esse tipo de prática.
Independentemente da solicitação do senhor Assange – ele solicitou asilo político -, ele disse que quer vir para o Equador para seguir cumprindo sua missão em defesa da liberdade de expressão sem limites, porque o Equador é um território de paz comprometido com a justiça e a verdade. Isso que o senhor Assange disse é mais próximo da realidade do Equador do que as porcarias que o poder midiático publica todos os dias.
Sabemos que o senhor ainda não tomou uma decisão sobre a situação que está atravessando alguém que revelou informações secretas sobre conspirações dos Estados Unidos e está pagando com a prisão por ter trabalhado pela liberdade de imprensa.
Correa: Se, no Equador, alguém tivesse passado a centésima parte do que passou Assange, nós seríamos chamados de ditadores e repressores, mas como o que Assange divulgou afeta as grandes potências e isso evidencia uma moral dupla e como os Estados nos tratam por meio de suas embaixadas, então é preciso aplicar todo o peso da lei contra Assange. E o chamam de violador.
Eu não quero antecipar minha decisão. Recebemos o pedido de asilo, analisaremos as causas desse pedido e tomaremos uma decisão quando for pertinente. Ele está em nossa em nossa embaixada em Londres sob a proteção do Estado equatoriano.
É claro que há aqui uma dupla moral, uma para os poderosos e outra para os débeis, uma para os que querem manter o status quo e para sua imprensa, e outra para os governos que querem mudar esse status quo e para a imprensa alternativa. Todos os dias há julgamentos em países desenvolvidos contra jornais. Neste caso não há problema, porque isso é civilização, mas, processar em nosso país um jornal ou um jornalista é qualificado como barbárie. E não é verdade que nós criminalizamos a opinião, pois em nosso país todos os dias publicam tudo, todos os dias publicam que há falta de liberdade de expressão. Qualquer um pode dizer que o governo é bom ou mau, que é competente ou incompetente. Mas o que não pode se dizer em um meio de comunicação é que o presidente, ou qualquer cidadão, é um criminoso de lesa humanidade e que ele disparou sem aviso prévio contra um hospital, porque isso é difamação, isso é delito em qualquer país.
O caso Assange pode dar origem a uma tensão diplomática entre Equador e Grã-Bretanha?
Correa: Isso é a última coisa que queremos, mas nós não vamos pedir permissão a nenhum país para tomar decisões soberanas. O Equador não tem mais alma de colônia nem alma de vassalo. Se dar asilo, refúgio ou residência a fugitivos da justiça provocasse deterioração, a relação da América Latina com os Estados Unidos estaria deterioradíssima. Porque, provavelmente, Argentina, Brasil, México e outros países não devem estar de acordo que qualquer fugitivo que viole a justiça. Esse não é o caso do senhor Assange, mas sim de corruptos como os banqueiros que quebraram o Equador em 99 e fugiram para os Estados Unidos, onde gozam hoje de uma vida bastante cômoda.
Vocês têm um Murdoch no Equador?
Correa: No Equador, temos seis famílias que representam heranças familiares, não é propriedade democrática, um capitalismo popular onde há 10 mil acionistas em um empório. Os meios de comunicação no Equador são manejados por meia dúzia de famílias, que decidem o que os equatorianos devem saber e conhecer. Vocês se dão conta da vulnerabilidade que temos como sociedade? A informação depende dos interesses e dos caprichos de meia dúzia de famílias. Mas se um governo soberano e digno não as chama para consultar sobre o nome dos ministros ou sobre a indicação de embaixadores, como ocorria antes, vão com tudo para cima desse governo porque ele não se submete aos seus caprichos. É um problema mundial, mas em outros países é atenuado com participação, profissionalismo muito profundo, uma ética muito forte, tudo o que brilha por sua ausência aqui no Equador.
Presidente, um funcionário da Usaid acaba de dizer que eles estão ajudando as oposições a estes governos.
Correa: Franqueza anglo-saxã.
Impunidade?
Correa: Impunidade e arrogância.
Essa ideia nos fala de um tempo da informação como arma de guerra e a América Latina sofre uma verdadeira invasão dessas fundações como a USAID, a NED, o IRI. Isso não torna muito perigosa a nossa situação? A presença das ONGs destas fundações não é perigosa para o Equador?
Correa: Oxalá consigamos despertar os povos latino-americanos para essa situação. As direitas, os grupos de poder, sabem que nas urnas não conseguirão nos derrotar. Daí as campanhas contínuas de desgastes, de propaganda, de difamação, de enfraquecimento e desestabilização. Nós vivemos isso desde os primeiros dias de governo. Desde o primeiro dia de governo. O mesmo ocorre na Venezuela, na Bolívia, na Argentina e em todos os governos progressistas da região. Sofremos as campanhas desses meios que são a vanguarda do capitalismo, do status quo dos partidos tradicionais de direita que se afundaram por seus próprios erros, para difamar, para distorcer a verdade com a cumplicidade de veículos da mídia internacional.
Essa é a contradição de que fala Ignacio Ramonet. Na Europa hoje há desemprego, estagnação, resgate de milionários, resgate de bancos e não de cidadãos, e os jornais dizem que isso é necessário, que é sério, técnico e correto. Que as pessoas morram de fome, precisamos salvar o capital! Enquanto isso, em países como o Equador, que é um dos que mais crescem na América Latina, que reduziu a pobreza, gerou mais emprego, tem a taxa de desemprego mais baixa da região e da história, todos os dias nos dizem que isso é populismo e demagogia, que é preciso mudar de governo.
Estamos ante uma campanha propagandística para defender os poderes fáticos que sempre dominaram nossos países. A direita perdeu as eleições nos Estados Unidos e agora chegam essas organizações para financiar esses grupos na América Latina. Estamos diante de uma guerra não convencional, mas guerra, de conspiração, desestabilização e desgaste.
Por isso pergunto sobre o tema da informação como arma de guerra, como a arma letal antes do primeiro disparo.
Correa: Estou convencido disso. Alguns ainda imaginam a imprensa, sobretudo na América Latina, como o quarto poder nascente, que floresceu quando chegaram as democracias, quando ocorreram avanços técnicos e se multiplicaram as publicações, quando se avançou na alfabetização e as grandes massas passaram a poder ler. Esse poder impediria que o poder político, o poder do Estado, ultrapasse certos limites. Assim chegou a desinformação. Lembremos, por exemplo, do affair Dreyfus na França, quando por racismo e xenofobia se acusou um capitão judeu, como denunciou Emile Zola em seu famoso editorial “Eu acuso”. Essa imprensa limitava os excessos do poder político, mas esse vigoroso e ingênuo cachorrinho, bem intencionado, que lutava pelos interesses dos cidadãos, converteu-se de repente em um mastim feroz, com um poder ilimitado, raivoso, que não só tenta encurralar o Estado como também os próprios cidadãos.
O poder midiático na América Latina, como ocorre no Equador, é frequentemente superior ao poder político. Precisamos tirar certos estereótipos de cena ou do ambiente de certa burocracia internacional como alma de ONG, como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos que fala de pobrezinhos jornalistas e de malvados políticos. Isso não é certo. Os políticos são, muitas vezes, patrióticos. A antipatia que certos jornalistas alimentam, desfiando seus ódios e amarguras, acaba fazendo com que se metam inclusive em questões pessoais, com a família, etc. Então, vejamos a realidade. Trata-se de tabus e nos ensinaram a ter medo de criticar esses negócios, como se, criticando-os, estaríamos criticando a liberdade de expressão. Esses são os negócios da má imprensa.
Presidente, viremos a página e passemos à crise
Correa – É que esse tema (da mídia) me apaixona. É um tema acadêmico que me apaixona, ao qual dedicarei meu tempo quando sair da presidência. Pretendo me dedicar a ele, investigar e escrever porque se trata de um problema gravíssimo, porque estamos nas mãos de um poder midiático que superou inclusive o poder financeiro e político, e domina o mundo.
Você resumiu ontem em uma palavra o documento final da Rio+20, classificando-o como “lírico”…
Correa – É assim. Não há compromisso concreto. Podem verificar. Onde há um compromisso em cifras, por exemplo, com o limite de emissões de gases, compensações, acordos, acordos vinculantes como seria uma declaração de direitos da natureza em um tribunal internacional do meio ambiente, como propôs o Equador. Não há nada disso. Fala-se de cuidar melhor do planeta, mas não há um compromisso concreto. O avanço é muito pequeno.
A que atribui a ausência dos Estados Unidos e da Alemanha? Elas podem ter contribuído para essa falta de compromissos concretos?
Correa – Vai mais além. O problema não é técnico. Todo mundo sabe qual é o problema, todo o mundo sabe quais são as respostas. O problema é político. Quem gera os bens ambientais e quem consome esses bens ambientais? Se os países ricos ou os países em desenvolvimento podem consumir gratuitamente um bem que outros geram por que é que vão se comprometer a compensar e cuidar. Não farão isso a não ser que esteja em perigo evidente sua própria existência ou seus próprios interesses.
Então, o problema é político, é a relação de poder. Imagine que a situação fosse a inversa, que a Floresta Amazônica, por exemplo, estivesse nos Estados Unidos e que eles fossem geradores de bens ambientais e que nós dos países em desenvolvimento fôssemos os consumidores. Já teriam nos invadido em nome dos direitos humanos, da justiça, da liberdade, etc., para exigir compensações. Então, esse é um problema de poder. Enquanto não mudarem as relações de poder, muito pouco se irá avançar.
Considera então que o saldo provisório da Rio+20 é um fracasso?
Correa – Sim. Não se conseguiu avançar quase nada. Não há compromisso concreto, nada concreto. Nem sequer dinheiro. Houve uma reunião do G-20 no México e a maioria, 80% dos que estavam lá, regressaram para suas casas. Não vieram para a Rio+20. Não interessa. Apenas alguns poucos vieram para a Cúpula, sobretudo latino-americanos.
Houve também a Cúpula dos Povos, um encontro muito interessante.
Correa – Quisemos participar, mas não foi possível, estava muito longe. Infelizmente foi um problema de logística. Mas vamos ter um evento de direitos da natureza, paralelo à Cúpula, nos mesmos locais da Cúpula, para o qual convidamos 400 dirigentes de organizações sociais alternativas, progressistas de esquerda que buscam a justiça de nossa América e do mundo inteiro. O presidente Evo Morales também participará dessa conferência.
Eu queria perguntar-lhe sobre o que representam estas alianças como a do Pacífico (Colômbia, Chile, Peru e México) e o anúncio feito pelo presidente Felipe Calderón do Transpacífico, que é algo novo. Isso pode ser visto como uma ameaça à integração e à unidade da América Latina?
Correa – Bom, o maior problema em essência sobre o tema do cuidado com o meio ambiente e que também está na base da crise da Europa e dos Estados Unidos é que tudo foi mercantilizado. Eles não querem ver isso porque afeta os interesses dominantes. O mercado é uma realidade econômica que não podemos negar, mas o grande desafio da humanidade é que a sociedade deve conseguir dominar o mercado. O que temos hoje é o mercado dominando a sociedade e as pessoas, mercantilizando tudo. Como o mercado só se interessa pelo que é mercadoria, pelo que tem preços explícitos, não administra adequadamente bens públicos como o meio ambiente. Por isso pode consumir irresponsavelmente bens ambientais, bens públicos globais, depredar a natureza, etc., porque não têm preços explícitos, porque não são mercadoria.
Então, quanto mais se ampliar essa lógica do mercado, mais esses problemas se agravarão e os perigos serão ainda maiores para a conservação do planeta. Eu diria que nós somos muito críticos destes tratados de livre comércio, somos muito críticos da mercantilização da vida e da humanidade em geral. Esse é um dos grandes desafios que enfrentamos. Insisto, o mercado é um fenômeno econômico irrefutável, mas o grande desafio é fazer com que as sociedades dominem o mercado e não o contrário.
Senhor presidente, que medidas os países da América Latina deveriam tomar para não perder o rumo da histórica na direção de uma integração regional soberana e progressista. Como vê os avanços no Mercosul, na Unasul e na Comunidade Andina de Nações (CAN)?
Correa – Avançou-se como nunca antes. Isso não quer dizer que estejamos bem. Teremos que avançar muito mais rápido. Creio que há uma vocação concreta e uma posição integracionista sincera, não uma integração mercantilista como havia antes. O Mercosul nasceu na noite neoliberal dos anos 90. A CAN nasceu a todo vapor e depois diminuiu. A integração mercantilista não quer fazer grandes sociedades de nações, mas sim grandes mercados, não fazer cidadãos de nossa América, mas sim consumidores. A concepção da Unasul é diferente. Nós temos uma concepção integral, onde uma parte é comercial, que sempre é importante, mas não é o mais importante, e as outras partes tem a ver com conectividade, nova arquitetura financeira regional, harmonização de políticas, políticas de defesa. Oxalá consigamos avançar também em políticas trabalhistas para que nunca mais caiamos na América Latina na armadilha de competir para atrair investimentos, deteriorando e precarizando as forças de trabalho. Ao invés de atrair capitais na base do suor e das lágrimas de nossos trabalhadores, pensamos em outro mundo. Como disse, creio que avançamos, mas precisamos ir muito mais rápido.
O senhor tocou de passagem o tema do Conselho de Defesa Sulamericano, que está objetivamente estancado, e seu país sofreu um ataque estrangeiro em 2008. Na sua avaliação, com a chegada do presidente Santos na Colômbia, a hipótese de tensões entre Colômbia e Equador está completamente dissipada?
Correa - As relações bilaterais entre Equador e Colômbia gozam de um extraordinário momento. Há uma grande coordenação com o governo do presidente Santos. A Colômbia sempre foi o vizinho com o qual tivemos a melhor relação em nossa história. Infelizmente, essa história, séculos de irmandade, foi rompida pela traição de um presidente como Uribe. Mas, graças a deus, com o governo do presidente Santos isso foi superado e creio que ele também tem uma vocação integracionista muito profunda e apoia – de fato, tem apoiado – a proposta do Conselho de Defesa.
O Conselho de Defesa teve seus primeiros estremecimentos com o anúncio da radicação de tropas dos Estados Unidos na Colômbia. Essa possível radicação de tropas norte-americanas na Colômbia está definitivamente abortada?
Correa – Não tenho maiores conhecimentos a respeito desse assunto. Até onde sei há uma estreita colaboração norteamericana com o pretexto da luta antidrogas e oxalá que a ajuda se concentre aí. Mas temos que fazer um esforço de bastante ingenuidade para nos convencermos disso porque muitas vezes se fazem outras coisas com essas supostas ajudas, sobretudo com governos que não sigam a linha de Washington.
A pergunta anterior está associada a outras situações graves como a remilitarização com novas bases no Panamá e outros três centros operacionais do comando Sul , uma base nova no Chile e nas Malvinas o grande problema é a base britânica ali instalada. Toda esta expansão dos Estados Unidos não é ameaçadora para a região?
Correa – Nós queremos nos convencer que com Barack Obama, que acreditamos ser uma boa pessoa, a política internacional dos EUA mudou, mas as evidências nos mostram que não é assim, que tudo continua lamentavelmente igual, sobretudo no que diz respeito à América Latina, cujos governos comprometidos com justiça, dignidade e soberania passaram a ser vistos como uma ameaça para seus interesses. Devemos estar muito atentos a essa presença das forças armadas norte-americanas em nossa América e a esse processo de rearmamentismo que está ocorrendo nesta época tão difícil e complexa.
COMENTÁRIO E & P - Na verdade a imprensa se transformou numa força de alienação mundial. A desinformação vem primeiro antes de qualquer tiro em qualquer guerra. A maior força dos Estados Unidos está em que eles controlam a imprensa mundial. Todas as informações são dadas de acordo com os seus interesses,oxalá se essas informações não são geradas no Departamento de Estado e depois repassadas para as agências de notícias que as vendem para o mundo inteiro, inclusive para as empresas brasileiras. Deve haver um pacto entre as famílias midiáticas latino-americanas e o governo dos Estados Unidos. Isso inclui os Frias, Civitas, Marinhos e Mesquitas. Todos os veículos de desinformação dessas famílias trabalham em grupo e de forma organizada. Assim massacram todos os países que não seguem a cartilha dos estadunidenses, os que seguem e são ditaduras, como o Egito foi por muito tempo, desde que aliado, são "esquecidos". O projeto dos Estados Unidos é implantar governos fantoches no mundo inteiro. Esses governos defendem os interesses das transnacionais dos esteites e colocam toda a riqueza nacional e o seu povo para serem explorados por elas. O governo Efeagácê foi um exemplo de fantoche no Brasil, a exemplo de Menem e de Fujimori. Todos os líderes que ameaçam a hegemonia dos Estados Unidos na América Latina são atacados diariamente pela imprensa golpista, como aconteceu com Lula nessa semana, em que as famílias mandaram todos os seus colunistas atacarem aquele que é a maior liderança política do nosso país e do mundo. A entrevista com o presidente Rafael Corrêa revela bem o objetivo da imprensa que é em nome da liberdade de imprensa, implantar uma ditadura midiática e até política. Atualmente representam um risco para a democracia da América Latina. Quanto aos Estados Unidos, estes representam um risco à humanidade e ao desenvolvimento econômico e social dos povos do mundo.
quarta-feira, junho 20, 2012
Revolução à americana: a fábrica de opositores
Por Natália Viana, na Agência Pública
No canto superior do documento, um punho cerrado estampa a marca da organização. No corpo do texto lê-se: “Há uma tendência presidencialista forte na Venezuela. Como podemos mudar isso? Como podemos trabalhar isso?”. Mais abaixo, o leitor encontra as seguintes frases: “Economia: o petróleo é da Venezuela, não do governo. É o seu dinheiro, é o seu direito… A mensagem precisa ser adaptada para os jovens, não só para estudantes universitários… E as mães, o que querem? Controle da lei, a polícia agindo sob autoridades locais. Nós iremos prover os recursos necessários para isso”.
O texto não está em espanhol nem foi escrito por algum membro da oposição venezuelana; escrito em inglês, foi produzido por um grupo de jovens baseados em outro lado do mundo – na Sérvia.
O documento “Análise da situação na Venezuela, Janeiro de 2010”, produzido pela organização Canvas, cuja sede fica em Belgrado, está entre os documentos da empresa de inteligência Stratfor vazados pelo WikiLeaks.
O último vazamento do WikiLeaks – ao qual a Pública teve acesso – mostra que o fundador desta organização se correspondia sempre com os analistas da Stratfor, empresa que mistura jornalismo, análise política e métodos de espionagem para vender “análise de inteligência” a clientes que incluem corporações como a Lockheed Martin, Raytheon, Coca-Cola e Dow Chemical – para quem monitorava as atividades de ambientalistas que se opunham a elas – além da Marinha americana.
O Canvas (sigla em inglês para “centro para conflito e estratégias não-violentas”) foi fundado por dois líderes estudantis da Sérvia, que participaram da bem-sucedida revolta que derrubou o ditador Slobodan Milosevic em 2000. Durante dois anos, os estudantes organizaram protestos criativos, marchas e atos que acabaram desestabilizando o regime. Depois, juntaram o cabedal de conhecimento em manuais e começaram a dar aulas a grupos oposicionistas de diversos países sobre como se organizar para derrotar o governo. Foi assim que chegaram à Venezuela, onde começaram a treinar líderes da oposição em 2005. Em seu programa de TV, Hugo Chávez acusou o grupo de golpista e de estar a serviço dos Estados Unidos. “É o chamado golpe suave”, disse.
Os novos documentos analisados pela Pública mostram que se Chávez não estava totalmente certo – mas também não estava totalmente errado.
O começo, na Sérvia
“Foram dez anos de organização estudantil durante os anos 90”, diz Ivan Marovic, um dos estudantes que participaram dos protestos contra Milosevic. “No final, o apoio do exterior finalmente veio. Seria bobo eu negar isso. Eles tiveram um papel importante na etapa final. Sim, os Estados Unidos deram dinheiro, mas todo mundo deu dinheiro: alemães, franceses, espanhóis, italianos. Todos estavam colaborando porque ninguém mais apoiava o Milosevic”, disse ele em entrevista à Pública.
“Dependendo do país, eles doavam de um determinado jeito. Os americanos têm um ‘braço’ formado por ONGs muito ativo no apoio a certos grupos, outros países como a Espanha não têm e nos apoiavam através do ministério do exterior”. Entre as ONGs citadas por Marovic estão o National Endowment for Democracy (NED), uma organização financiada pelo congresso americano, a Freedom House e o International Republican Institute, ligado ao partido republicano – ambos contam polpudos financiamentos da USAID, a agência de desenvolvimento americana que capitaneou movimentos golpistas na América Latina nos anos 60, inclusive no Brasil.
Todas essas ONGs são velhas conhecidas dos governos latinoamericanos, incluindo os mais recentes.
Foi o IRI, por exemplo, que ministrou “cursos de treinamento político” para 600 líderes da oposição haitiana na República Dominicana durante os anos de 2002 e 2003. O golpe contra Jean-Baptiste Aristide, presidente democraticamente eleito, aconteceu em 2004. Investigado pelo Congresso dos Estados Unidos, o IRI foi acusado de estar por trás de duas organizações que conspiraram para derrubar Aristide. Na Venezuela, o NED enviou US$ 877 mil para grupos de oposição nos meses anteriores ao golpe de Estado fracassado em 2002, segundo revelou o New York Times. Na Bolívia, segundo documentos do governo americano obtidos pelo jornalista Jeremy Bigwood, parceiro da Pública, a USAID manteve um “Escritório para Iniciativas de Transição”, que investiu US$ 97 milhões em projetos de “descentralização” e “autonomias regionais” desde 2002, fortalecendo os governos estaduais que se opõem a Evo Morales.
Procurado pela Pública, o líder do Canvas, Srdja Popovic, diz que a organização não recebe fundos governamentais de nenhum país e que seu maior financiador é o empresário sérvio Slobodan Djinovic, que também foi líder estudantil.
Porém, um PowerPoint de apresentação da organização, vazado pelo WikiLeaks, aponta como parceiros do Canvas o IRI e a Freedom House, que recebem vultosas quantias da USAID.
Para o pesquisador Mark Weisbrot, do instituto Center for Economic and Policy Research, de Washington, organizações como a IRI e Freedom House “não estão promovendo a democracia”. “Na maior parte do tempo, estão promovendo exatamente o oposto. Geralmente promovem as políticas americanas em outros países, e isto significa oposição a governos de esquerda, por exemplo, ou a governos dos quais os Estados Unidos não gostam”.
Fase dois: da Bolívia ao Egito
Vista através do mesmo PowerPoint de apresentação, a atuação do Canvas impressiona. Entre 2002 e 2009, realizou 106 workshops, alcançando 1800 participantes de 59 países. Nem todos são desafetos americanos – o Canvas treinou ativistas por exemplo na Espanha, no Marrocos e no Azerbaijão – mas a lista inclui muitos deles: Cuba, Venezuela, Bolívia, Zimbabue, Bielorrussia, Coreia do Norte, Siria e Irã.
Segundo o próprio Canvas, sua atuação foi importante em todas as chamadas “revoluções coloridas” que se espalharam por ex-países da União Soviética nos anos 2000.
O documento aponta como “casos bem sucedidos” a transferência de conhecimento para o movimento Kmara em 2003 na Geórgia, grupo que lançou a Revolução Rosas e derrubou o presidente; uma ajudinha para a Revolução Laranja, em 2004, na Ucrânia; treinamento de grupos que fizeram a Revolução dos Cedros em 2005, no Líbano; diversos projetos com ONGs no Zimbabue e a coalizão de oposição a Robert Mugabe; treinamento de ativistas do Vietnã, Tibete e Burma, além de projetos na Síria e no Iraque com “grupos pró-democracia”. E, na Bolívia, “preparação das eleições de 2009 com grupos de Santa Cruz” – conhecidos como o mais ferrenho grupo de adversários de Evo Morales.
Até 2009, o principal manual do grupo, “Luta não violenta – 50 pontos cruciais” já havia sido traduzido para 5 línguas, incluindo o árabe e o farsi.
Um das ações do Canvas que ganhou maior visibilidade foi o treinamento de uma liderança do movimento 6 de Abril, considerado o embrião da primavera egípcia. O movimento começou a ser organizado pelo Facebook para protestar em solidariedade a trabalhadores têxteis da cidade de Mahalla al Kubra, no Delta do Nilo. Foi a primeira vez que a rede social foi usada para este fim no Egito. Em meados de 2009, Mohammed Adel, um dos líderes do 6 de Abril viajou até Belgrado para ser treinado por Popovic.
Nos emails aos analistas da Stratfor, Popovic se gaba de manter relações com os líderes daquele movimento, em especial com Mohammed Adel – que se tornou uma das principais fontes de informação a respeito do levante no Egito em 2011. Na comunicação interna da Stratfor, ele é mencionado sob o codinome RS501.
“Acabamos de falar com alguns dos nossos amigos no Egito e descobrimos algumas coisas”, informa ele no dia 27 de janeiro de 2011. “Amanhã a irmadade muçulmana irá levar sua força às ruas, então pode ser ainda mais dramático… Nós obtivemos informações melhores sobre estes grupos e como eles têm se organizado nos últimos dias, mas ainda estamos tentando mapeá-los”.
Documentos da Stratfor
Os documentos vazados pelo WikiLeaks mostram que o Canvas age de maneira menos independente do que deseja aparentar. Em pelo menos duas ocasiões, Srdja Popovic contou por email ter participado de reuniões no National Securiy Council, o conselho de segurança do governo americano.
A primeira reunião mencionada aconteceu no dia 18 de dezembro de 2009 e o tema em pauta era Russia e a Geórgia. Na época, integrava o NSC o “grande amigo” de Popovic – nas suas próprias palavras – o conselheiro sênior de Obama para a Rússia, Michael McFaul, que hoje é embaixador americano naquele país.
No mesmo encontro, segundo Popovic relatou mais tarde, tratou-se do financiamento de oposicionistas no Irã através de grupos pró-democracia, tema de especial interesse para ele. “A política para o Irã é feita no NSC por Dennis Ross. Há uma função crescent sobre o Irã no Departamento de Estado sob o Secretário Assistente John Limbert. As verbas para programas pró-democracia no Irã aumentaram de US$ 1,5 milhão em 2004 para US$ 60 milhões em 2008 (…) Depois de 12 de junho de 2009, o NSC decidiu neutralizar os efeitos dos programas existentes, que começaram com Bush. Aparentemente a lógica era que os EUA não queriam ser vistos tentando interferir na política interna do Irã. Os EUA não querem dar ao regime iraniano uma desculpa para rejeitar as negociações sobre o programa nuclear”, reclama o sérvio, para quem o governo Obama estaria agindo como “um elefante numa loja de louça” com a nova política. “Como resultado, o Iran Human Rights Documentation Center, Freedom House, IFES e IRI tiveram seus pedidos de recursos rejeitados”, descreve em um email no início de janeiro de 2010.
A outra reunião de Popovic no NSC teria ocorrido às 17 horas do dia 27 de julho de 2011, conforme Popovic relatou à analista Reva Bhalla.
“Esses caras são impressionantes”, comentou, em um email entusiasmado, o analista da Stratfor para o leste europeu, Marko Papic. “Eles abrem usa lojinha em um país e tentam derrubar o governo. Quando bem usados são uma arma mais poderosa que um batalhão de combate da força aérea”.
Marko explica aos seus colegas da Stratfor que o Canvas – nas suas palavras, um grupo tipo “exporte-uma-revolução” – “ainda depende do financiamento dos EUA e basicamente roda o mundo tentando derrubar ditadores e governos autocráticos (aqueles de quem os Estados Unidos não gostam)”. O primeiro contato com o líder do grupo, que se tornaria sua fonte contumaz, se deu em 2007. “Desde então eles têm passado inteligência sobre a Venezuela, a Georgia, a Sérvia, etc”.
Em todos os emails, Popovic demonstra grande interesse em trocar informações com a Strtafor, a quem chama de “CIA de Austin”. Para isso, vale-se dos seus contatos entre ativistas em diferentes países. Além de manter relação com uma empresa do mesmo filão idológico, se estabelece uma proveitosa troca de informações. Por exemplo, em maio de 2008 Marko diz a ele que soube que a inteligência chinesa estaria considerando atacar a organização pelo seu trabalho com ativistas tibetanos. “Isso já era esperado”, responde Srdja. Em 23 de maio de 2011, ele pede informações sobre a autonomia regional dos curdos no Iraque.
Venezuela
Um dos temas mais frequentes na conversa com analistas da Stratfor é a Venezuela; Srdja ajuda os analistas a entenderem o que a oposição está pensando. Toda a comunicação, escreve Marko Papic, é feita por um email seguro e criptografado. Além disso, em 2010, o líder do Canvas foi até a sede da Stratfor em Austin para dar um briefing sobre a situação venezuelana.
“Este ano vamos definitivamente aumentar nossas atividades na Venezuela”, explica o sérvio no email de apresentação da sua “Análise da situação na Venezuela”, em 12 de janeiro de 2010. Para as eleições de setembro daquele ano, relata que “estamos em contato próximo com ativistas e pessoas que estão tentando ajudá-los”, pedindo que o analista não espalhe ou publique esta informação. O documento, enviado por email, seria a “fundação da nossa análise do que planejamos fazer na Venezuela”. No dia seguinte, ele reitera em outro email: “Para explicar o plano de ação que enviamos, é um guia de como fazer uma revolução, obviamente”.
O documento, ao qual a Pública teve acesso, foi escrito no início de 2010 pelo “departamento analítico” da organização e relata, além dos pilares de suporte de Chávez, listando as principais instituições e organizações que servem de respaldo ao governo (entre elas, os militares, polícia, judiciário, setores nacionalizados da economia, professores e o conselho eleitoral), os principais líderes com potencial para formarem uma coalizão eficiente e seus “aliados potenciais” (entre eles, estudantes, a imprensa independente e internacional, sindicatos, a federação venezuelana de professores, o Rotary Club e a igreja católica).
A indicação do Canvas parece, no final, bem acertada. Entre os principais líderes da oposição que teriam capacidade de unificá-la estão Henrique Capriles Radonski, governador do Estado de Miranda e candidato de oposição nas eleições presidenciais de outubro pela coalizão Mesa de Unidade Democrática, além do prefeito do distrito metropolitano de Caracas, Antonio Ledezma, e do ex-prefeito do município de Chacao, Leopoldo Lopez Mendoza. Dois líderes estudantis, Alexandra Belandria, do grupo Cambio, e Yon Goicochea, do Movimiento Estudiantil Venezolano, também são listados.
O objetivo da estratégia, relata o documento, é “fornecer a base para um planejamento mais detalhado potencialmente realizado por atores interessados e pelo Canvas”. Esse plano “mais detalhado” seria desenvolvido posteriormente com “partes interessadas”.
Em outro email Popovic explica:“Quando alguém pede a nossa ajuda, como é o caso da Venezuela, nós normalmente perguntamos ‘como você faria?’ (…) Neste caso nós temos três campanhas: unificação da oposição, campanha para a eleição de setembro (…). Em circunstâncias NORMAIS, os ativistas vêm até nós e trabalham exatamente neste tipo de formato em um workshop. Nós apenas os guiamos, e por isso o plano acaba sendo tão eficiente, pois são os ativistas que os criam, é totalmente deles, ou seja, é autêntico. Nós apenas fornecemos as ferramentas”.
Mas, com a Venezuela, a coisa foi diferente, explica Popovic: “No caso da Venezuela, por causa do completo desastre que o lugar está, por causa da suspeita entre grupos de oposição e da desorganização, nós tivemos que fazer esta análise inicial. Se eles irão realizar os próximos passos depende deles, ou seja, se eles vão entender que por causa da falta de UNIDADE eles podem perder a corrida eleitoral antes mesmo que ela comece”.
Aqueles que receberam a análise (como o pessoal da Strartfor, por exemplo) aprenderam que segunda a lógica do Canvas os principais temas a serem explorados em uma campanha de oposição na Venezuela são:
- Crime e falta de segurança: “A situação deteriorou tremendamente e dramaticamente desde 2006. Motivo para mudança”
- Educação: “O governo está tomando conta do sistema educacional: os professores precisam ser atiçados. Eles vão ter que perder seus empregos ou se submeter! Eles precisam ser encorajados e haverá um risco. Nós temos que convencê-los de que os temos como alta esfera da sociedade; eles detêm uma responsabilidade que valorizamos muito. Os professores vão motivar os estudantes. Quem irá influenciá-los? Como nós vamos tocá-los?”
- Jovens: “A mensagem precisa ser dirigida para os jovens em geral, não só para os estudantes universitários”.
-Economia: “O petróleo é da Venezuela, não do governo, é o seu dinheiro, é o seu direito! Programas de bem-estar social”.
- Mulheres: “O que as mães querem? Controle da lei, a polícia agindo sob as autoridades locais. Nós iremos prover os recursos necessários para isso. Nós não queremos mais brutamontes”.
- Transporte: “Trabalhadores precisam conseguir chegar aos seus empregos. É o seu dinheiro. Nós precisamos exigir que o governo preste contas, e da maneira que está não conseguimos fazer isso”.
- Governo: “Redistribuição da riqueza, todos devem ter uma oportunidade”.
- “Há uma forte tendência presidencialista na Venezuela. Como podemos mudar isso? Como podemos trabalhar com isso?”
No final do email, Popovic termina com uma crítica grosseira aos venezuelanos que procura articular: “Aliás, a cultura de segurança na Venezuela não existe. Eles são retardados e falam mais que a própria bunda. É uma piada completa”.
Procurado pela Pública, o líder do Canvas negou que a organização elabore análises e planos de ação revolucionária sob encomenda. E foi bem menos entusiasta com relação ao seu “guia” elaborado para a Venezuela.
“Nós ensinamos as pessoas a analisarem e entenderem conflitos não-violentos – e durante o processo de aprendizagem pedimos a estudantes e participantes que utilizem as ferramentas que apresentam no curso. E nós também aprendemos com eles! Depois usamos o trabalho que eles realizaram e combinamos com informações públicas para criar estudos de caso”, afirmou. “E isso é transformado em análises mais longas por dois estagiários. Usamos estas análises nas nossas pesquisas e compartilhamos com estudantes, ativistas, pesquisadores, professores, organizações e jornalistas com os quais cooperamos – que estão interessados em entender o fenômeno do poder popular”.
Questionado, Popovic também respondeu às criticas feitas por Hugo Chávez no seu programa de TV: “É uma fórmula bem conhecida… Por décadas os regimes autoritários de todo o mundo fazem acusações do tipo ‘revoluções exportadas’ como sendo a principal causa dos levantes em seus países. O movimento pró-democracia na Sérvia foi, claro, acusado de ser uma ‘ferramenta dos EUA’ pela TV estatal e por Milosevic, antes dos estudantes derrubarem o seu regime. Isso também aconteceu no Zimbabue, Bielorrusia, Irã…”
O ex-colega de movimento estudantil, Ivan Marovic – que ainda hoje dá palestras sobre como aconteceu a revolta contra Milosevic – concorda com ele: “É impossível exportar uma revolução. Eu sempre digo em minhas palestras que a coisa mais importante para uma mudança social bem-sucedida é ter a maioria da população ao seu lado. Se o presidente tem a maioria da população ao lado dele, nada vai acontecer”.
Marovic avalia, no entanto, que houve uma mudança de percepção do “braço de ONGs” dos governos ocidentais, em especial dos Estados Unidos, depois da revolução na Sérvia em 2000 e as “revoluções coloridas” que se seguiram no leste europeu. “Um mês depois de derrubarmos o Milosevic, o New York Times publicou um artigo dizendo que quem realmente derrubou o Milosevic foi a assistência financeira americana. Eles estão aumentando o seu papel. E agora acreditam que a grana dos Estados Unidos pode derrubar um governo. Eles tentaram a mesma coisa na Bielorrusia, deram um monte de dinheiro para ONGs, e não funcionou”.
O pesquisador Mark Weisbrot concorda, em termos. É claro que nenhum grupo estrangeiro, ainda mais um grupo pequeno, pode causar uma revolução em um país. Para ele, não é o dinheiro do governo americano – seja através de ONGs pagas pelo National Security Council, pela USAID ou pelo Departamento de Estado – que faz a diferença. “A elite venezuelana, por exemplo, não precisa deste dinheiro. O que estes grupos financiados pelos EUA, antigamente e hoje, agregam são duas coisas: uma é habilidade e o conhecimento necessário em subverter regimes. E a segunda coisa é que esse apoio tem um papel unificador. A oposição pode estar dividida e eles ajudam a oposição a se unificar”. Para ele, muitas vezes o patrocínio americano tem uma “influência perniciosa” em movimentos legítimos. “Sempre tem pessoas grupos lutando pela democracia nestes países, com uma variedade de demandas, reforma agrária, proteções sociais, empregos… E o que acontece é que eles capitaneiam todo o movimento com muito dinheiro, inspirado pelas políticas que interessam aos EUA. Muitas vezes, os grupos democráticos que recebem o dinheiro acabam caindo em descrédito”.
terça-feira, junho 19, 2012
Santayana: nem Obama nem Romney
Pela primeira vez, na Idade Moderna uma realidade geopolítica nova abre cunha no sistema internacional de poder sob a hegemonia da Europa Ocidental.
O Conversa Afiada reproduz artigo de Mauro Santayana do JB online:
Os gregos em Los Cabos e as intrigas no continente
Mauro Santayana
Há uma curiosa interpretação dos resultados eleitorais da Grécia – a de que a direita ganhou as eleições. O que as urnas revelaram foi a vitória da razão nacionalista: tanto os conservadores da Nova Democracia – não tão conservadores assim – quanto a extrema-direita e a coligação de esquerda Syriza, defendem uma postura de resistência contra as exigências da Europa, ditadas pela chanceler Ângela Merkel. O Pasok, provável parceiro de Samaras no governo, tampouco se encontra à direita do espectro.
Apesar de todo o simbolismo da Grécia, que teve seu fulgor no tempo clássico, e se escondeu da História até recentemente, o problema do mundo não se encontra em Atenas. Ele, como o diabo, está em todos os lugares. Como temos insistido, ele é de natureza política e se resume na aspiração das finanças internacionais em criar um estado único universal, sob seu domínio direto e tirânico, com a definitiva escravização dos povos, e a resistência do sentimento nacionalista e da razão humanística. Para lembrar que o vocábulo problema vem do léxico grego (proboulema significava projeto de lei enviado à Boule, ou seja, ao parlamento de Atenas), a questão é sempre política.
É uma luta que se encontra na alma histórica do Ocidente. A Igreja presumia ter herdado o imperialismo romano, e os anglossaxões, têm buscado, desde o século 16, ocupar o mando, ao substituir o Sacro Império, primeiro a partir de Londres e, mais tarde, de Washington.
A capital do mundo, nestes dois dias, se deslocou para Los Cabos, com a reunião do Grupo dos 20. Ontem, segunda-feira, o New York Times publicava matéria sobre a “nova rivalidade” no universo latino-americano, entre o México e o Brasil. Segundo a análise, o Brasil está perdendo espaço para o México, que – como é óbvio – segue integralmente a cartilha neoliberal e se encontra condenado pela natureza e pela história a viver encostado nos Estados Unidos, como irmão xifópago atrofiado: não podem separar-se os dois, a menos que uma catástrofe planetária abra o mar ao longo da fronteira. Nem podem integrar-se, embora a fatalidade demográfica, com a predominância mestiça, e a força genética, possa expulsar, com o tempo que se torna veloz, a cultura da Nova Inglaterra.
De acordo com o texto do jornal de Nova Iorque, estamos, os brasileiros, dependendo da China, que importa as nossas mercadorias, enquanto indústrias americanas, no México, competem com o país asiático, suprindo o mercado norte-americano, em condições competitivas com os chineses. Em suma, a recessão chinesa significará uma desgraça para o nosso país.
As coisas não são tão simples assim. A própria matéria do jornal americano lembra que temos dois trunfos. O primeiro deles é o da política social, com o crescimento do mercado interno. O outro é o de que as circunstâncias, ao nos fazer parceiros da China, nos fazem seus companheiros de viagem – pelo menos nesse trecho histórico. Faltou, ao falar na China, referir-se aos Brics.
Pela primeira vez, na Idade Moderna – isto é, no meio milênio que nos separa do Renascimento e da descoberta do hemisfério em que vivemos – uma realidade geopolítica nova abre cunha no sistema internacional de poder sob a hegemonia da Europa Ocidental (da qual os Estados Unidos são projeção geopolítica): a aliança entre os países que emergem. Ela rompe os marcos geográficos e se alicerça no fator humano, ao englobar a metade da população do mundo, que se encontram na Ásia, na África e no Brasil. E não nos esqueçamos que, na hora da decisão, o Mercosul se somará com o Brasil.
Mesmo que essa aliança não venha a ter futuro em horizonte mais longo, porque a História não é preguiçosa, essa coalizão pode definir o destino da Humanidade nas próximas décadas.
Assim, todas as previsões no curto prazo são meras especulações que atendem ao desejo dos analistas. Os gregos, açulados pela emergência, provavelmente encontrarão um caminho intermediário, entre a ruptura definitiva com o euro e a submissão a Berlim. Se se confirmar a decisão de Tsipras, de manter a coligação de esquerda na oposição, o governo a ser formado terá que dar alguma satisfação ao povo e ela só pode ser entendida na amenização das medidas de arrocho exigidas pela senhora Merkel.
O governo brasileiro tem a consciência de que as procelas atingirão também o nosso país. Daí as medidas de cautela que estão sendo tomadas. A reunião de Dilma com os governadores, embora não tivesse tom dramático, revelou a sua preocupação em assegurar a unidade institucional interna, sem prejuízo das divergências político-partidárias, que se acirrarão nestes dois anos próximos. A decisão de conceder empréstimos federais aos estados, para investimentos, em condições bem mais amenas do que as impostas por Fernando Henrique para a amortização das dívidas antigas, vindas ainda do governo militar, serve a esse propósito. Estamos atingindo uma consciência republicana que separa as instituições permanentes do Estado das naturais divergências dos partidos, sujeitos às hesitações das circunstâncias.
O sentimento de nação sempre prevalece para erguer diques e quebra-ventos contra os vendavais planetários. Não devemos nos esmorecer na tarefa de buscar a unidade da América do Sul, e isso implica desdenhar as provocações externas que buscam criar arestas entre o Brasil e seus vizinhos. Somos suficientemente adultos para reconhecer a nossa força, e entender que devemos administrá-la com modéstia e prudência. De qualquer forma, há duas eleições que podem mudar tudo – além dos rumos que a Grécia tomará: as eleições presidenciais mexicanas dentro de poucos dias, e as eleições alemãs do ano que vem. De Washington nada devemos esperar de bom; se Obama nos quer cozinhar em banho-maria, Mitt Romney pretende assar-nos em fogo vivo.
Consumo e investimento
por Delfim Netto
De Valor Econômico
Consumo e investimento
Por Antonio Delfim Netto
O Brasil é um país curioso. Frequentemente metemo-nos em discussões ociosas, que obscurecem os problemas em lugar de iluminá-los. É o caso, agora, dessa questão aparentemente transcendental, de saber se o que pode elevar o PIB no curto prazo é o consumo ou o investimento. Consumo e investimento são umbilicalmente ligados quando consideramos como dado o PIB pelo lado da demanda global, como se pode ver numa economia simplificada ao extremo como a exposta abaixo.
Tudo o que foi fisicamente produzido numa unidade de tempo na economia (por hipótese sem governo e sem comércio exterior), só pode ter dois destinos: ser consumido ou não. Chamemos o não consumido de poupança e façamos a hipótese que ela foi "investida" para aumentar o estoque de capital da sociedade sobre o qual age a força de trabalho ativa para produzir o PIB.
Como se reparte a demanda global entre consumo e investimento tem sido tema de discussão na economia desde a origem dos tempos, mas até agora nenhuma teoria resistiu às torturas econométricas. Pelo menos dois fatores parecem determinar empiricamente o nível do consumo: tamanho do próprio PIB e o valor da "riqueza potencial" do consumidor, que podemos assimilar ao crédito de que ele dispõe. A utilização desse crédito, por sua vez, depende da taxa de juros real da economia e do seu prazo. Com relação ao investimento, que aumenta a capacidade produtiva, é a mesma coisa: ele parece depender de muitas variáveis, mas no esqueleto que estamos construindo vamos supo-lo dependente apenas da taxa de juros real.
A política econômica parece estar no caminho correto
A que nos levam tantas hipóteses? Que deve haver um equilíbrio no tempo entre o consumo e o investimento para que o sistema funcione e cresça continuadamente a capacidade produtiva.
Para entender isso um pouco melhor, continuemos com algumas hipóteses heroicas. Suponhamos que o PIB máximo que pode ser produzido depende apenas do estoque de capital disponível, que essa relação seja direta e estável e que seu uso não reduza sua quantidade (depreciação nula). Por exemplo, três unidades de capital adequadamente utilizadas pela força de trabalho empregada produzem no ano uma unidade do PIB, ou seja a "produtividade" do capital é 1/3.
De que depende o crescimento da capacidade produtiva dessa sociedade quando não há restrição de oferta de mão de obra? Apenas do aumento do estoque de capital (que, por hipótese, não diminui com sua utilização). Em outras palavras, apenas do nível de investimento com relação ao PIB.
Deve ter ficado claro nessa construção extremamente simplificada que: 1) dada a capacidade produtiva da sociedade (no caso o estoque de capital sobre o qual se aplica o trabalho), ela determina o limite superior do PIB que pode ser produzido; 2) o nível do uso dessa capacidade, isto é, o PIB que será produzido, depende da demanda global. Basicamente, do nível de crédito dos consumidores (influenciado pela taxa de juro real e pelo prazo concedido) somado ao nível de investimento (que depende da taxa de juro real); e 3) a taxa de crescimento do PIB (não o seu nível) depende da produtividade do capital e da taxa de investimento com relação ao PIB.
A boa notícia é que, a despeito da sua simplicidade, tal modelo contém a essência do desenvolvimento descarnado de toda complexidade. Podemos modificar todas as "hipóteses heroicas" e, ainda assim, o núcleo do processo é que consumo e investimento têm relações múltiplas entre eles. A elevação da demanda global no curto prazo pode, sim, ser estimulada pelo aumento do crédito ao consumidor e/ou pelo investimento. O efeito adicional do investimento é que, além de ampliar a demanda de consumo no curto prazo, pavimenta o aumento da capacidade produtiva e, assim, aumenta o desenvolvimento futuro.
É claro que tirar recomendações normativas de modelos abstratos como esse é sempre uma temeridade, mas a intuição mostra que a política econômica do governo (fiscal, monetária e cambial) parece estar no caminho correto, aumentando a demanda interna no curto prazo pela redução da taxa de juros real, pela ampliação do nível de crédito e pela redução do déficit do balanço em conta corrente. O problema é que isso eleva o nível do PIB mas, por si só, não aumenta a capacidade produtiva e, logo, inibe o crescimento futuro.
É necessário cooptar o setor privado para a ampliação dos investimentos públicos através de concessões (o recente leilão das telecomunicações, pela ação do competente ministro Paulo Bernardo, foi exemplar), de parcerias público-privadas etc. Mesmo crescendo menos em 2012 do que em 2011, devemos terminar o ano com o PIB rodando em torno de 4% a 4,5% entre o último trimestre deste ano e o seu homólogo do ano passado.
Precisamos preparar o ambiente de negócios para manter esse crescimento ao longo de 2013 e seguintes, insistindo na melhoria do sistema tributário, no aumento da competição interna, na flexibilização do mercado de trabalho e no fortalecimento da segurança jurídica nas relações comerciais, que têm sido seriamente prejudicadas com intervenções desajeitadas do Poder Judiciário.
Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento. Escreve às terças-feiras
Da retranca ao ataque
Amir Khair - O Estado de S.Paulo
O desafio do governo é crescer 4,5% neste ano, 5,5% em 2013 e 6,0% em 2014. Isso, em plena crise internacional, com a Europa em franca recessão, os Estados Unidos derrapando e China e Índia em forte desaceleração. Não será fácil. Algumas análises apostam em crescimento mais próximo de 2% do que de 3%, e parece que o próprio governo pode desistir de alcançar o objetivo deste ano.
O cenário externo dificulta o crescimento e desinflaciona os preços em todos os países, apontando para políticas de estímulo ao crescimento. Mas qual o melhor caminho a trilhar?
1 - Investimento e Consumo. Duas possibilidades de estímulo são levantadas no debate econômico. Uma é brecar o consumo, pois considera o endividamento e a inadimplência das famílias elevado, e o que se precisa é ampliar o investimento. A outra, que vem sendo trilhada pelo governo, é que deve continuar o estímulo ao consumo, pois ainda há espaço para seu crescimento, e ampliar o investimento.
Nesse debate, há uma clara oposição entre investimento e consumo, como se fossem antagônicos, pois, na teoria, a soma do investimento com o consumo é a poupança gerada num mesmo período. Mas não é tão simples assim. Pode haver uma interação entre consumo e investimento. Por exemplo, maior perspectiva de consumo atrai o investimento, ou ainda, perspectiva de mais investimento pode animar o consumo. Creio que investimento e consumo se interagem e se potencializam. Há, por assim, dizer uma sinergia entre eles.
Na vida da empresa, no entanto, o que mais influi é a interação na qual maior perspectiva de consumo é que a induz a investir, caso sua capacidade de produção seja insuficiente. Decisões de investimento são vitais para o sucesso dos negócios. Por essa razão, essas decisões são balizadas por estudos minuciosos de perspectivas de mercado e das ações da concorrência, onde o marketing tem papel relevante.
Investir por impulso, sem base de sustentação, pode dar certo, mas os riscos são maiores. Erros de avaliação podem levar à falência. Com a globalização e a crise internacional, os problemas crescem e a probabilidade de falência é maior. Nessa conjuntura, que pode perdurar por vários anos, torna-se difícil ao empresário arriscar sua empresa com investimento de retorno sujeito a chuvas e trovoadas.
Assim, pode-se prever um encolhimento dos investimentos em quase todos os países nesta crise. Infelizmente, é o que ocorre no setor privado no País. Nessas situações é que entra o governo procurando animar a economia. Mas como? Ampliando suas despesas e/ou reduzindo seus tributos. A ampliação de despesas pode ocorrer no custeio, no investimento ou em ambos.
A de efeito mais rápido é nas despesas com custeio, pois fazer investimentos no setor público no Brasil é ser obrigado a trilhar longo caminho burocrático, ditado pelo cipoal legislativo que domina a entranha do serviço público. A burocracia infernal anda de mão dada com empecilhos de toda ordem, com destaque para contestação judicial de empresas que podem se sentir prejudicadas numa concorrência, retardando a obra.
O governo federal vai acelerar a despesa de custeio antecipando compras governamentais, que poderão atingir R$ 60 bilhões, poderá ampliar programas de inclusão social e de renda e, como anunciou, estimular os Estados na realização de obras com financiamentos das instituições oficiais de crédito. Nesse caso, com reflexos a partir de 2013.
2 - Motor do crescimento. A corrente que defende toda força ao investimento parece que, para fortalecer seu argumento, precisa combater o estímulo ao consumo. O argumento que usa é o da saturação do consumo, pois considera o endividamento das famílias excessivo e a inadimplência elevada. Assim, o motor do crescimento baseado no consumo deve ser abandonado e substituído pelo investimento.
A presidente refuta essa tese argumentando que existe potencial inexplorado de consumo e que as taxas de juros dos financiamentos baixando abrem ainda mais espaço para o aproveitamento desse potencial. Mas reconhece que deve ser ampliado o estímulo ao investimento público e privado. De certa forma, não vê oposição entre consumo e investimento, mas que ambos devem ser estimulados.
Creio que essa política de reconhecer a importância do consumo e investimento é a mais acertada e que pode favorecer recuperação mais rápida da economia, tanto no curto como no longo prazo. No curto prazo, o que influi mais é o estímulo ao consumo em curso pela redução das taxas de juros bancária. No médio e longo prazos, o que influi é a continuidade da expansão do consumo e a maturação dos investimentos, tanto públicos quanto privados. Não há outro caminho.
É necessário ter os pés no chão. Abandonar a política de estímulo ao consumo pode causar a paralisia da atividade econômica em ambiente de crise internacional e atentar contra o investimento. Seria um desastre. E o governo, felizmente, não vai trilhar esse caminho.
3 - Acelerar. O que importa é acelerar o consumo. É condição necessária para enfrentar a crise. E o mais potente instrumento para isso é a redução das taxas de juros ao consumidor, ainda extremamente elevadas. Segundo a Associação Nacional dos Executivos de Finanças, Administração e Contabilidade (Anefac), a taxa média de juros para a pessoa física atingiu o menor nível desde 1995, quando teve início a série. Ela foi de 105,4% ao ano em maio, contra 107,0% em abril.
Mas as taxas do cartão de crédito resistem ao movimento de corte geral, permanecendo em 223% há pelo menos um ano. Apesar da redução da taxa ao consumidor, ela pouco caiu, ficando dez vezes mais elevada do que a praticada nos países emergentes (10%). No nível acima de 100%, o consumidor que usa o crediário paga por um produto o equivalente a dois. É um assalto ao seu bolso e poderoso freio ao consumo e ao crescimento econômico.
Assim, falar em saturação do consumo é desconhecer a importância dos juros na aquisição de um bem ou serviço financiado.
O governo deve continuar a apertar o cerco aos bancos, reduzindo duas das três fontes de ganhos anormais: a dos títulos do governo com taxas balizadas pela Selic e a das tarifas bancárias. É urgente a queda acelerada da Selic e o tabelamento das tarifas com forte redução das mesmas. A parcimônia do Copom na redução da Selic e o não tabelamento das tarifas bancárias é que estão impedindo a prática de taxas de juros civilizadas, pois com a redução dos ganhos nessas duas fontes, os bancos se vêm obrigados a usar mais a terceira fonte, que é ampliar suas operações de crédito, gerando maior concorrência entre eles.
Dificilmente o governo conseguirá ativar a economia para atingir suas metas de crescimento se não atuar rapidamente para colocar a Selic no nível de 5% (dos emergentes) e tabelar as tarifas bancárias. A bola está com o governo. É preciso sair da retranca e passar para o ataque.
MESTRE EM FINANÇAS PÚBLICAS PELA FGV E CONSULTOR
domingo, junho 17, 2012
O neoliberalismo e a morte da Terra
Da Carta Maior
Ao que parece, o homem está à espera de uma catástrofe – como foi a peste negra, no século 14 – a fim de compreender as dimensões de seus erros. O que está matando o mundo, hoje, é a peste da ganância do capitalismo, que transformou a razão científica em mera servidora do dinheiro, principalmente a partir do neoliberalismo.
Mauro Santayana
Não se pode esperar muito da Conferência do Rio. Há quarenta anos que o problema do meio ambiente vem sendo discutido e, nesse tempo, pouco se fez de objetivo a fim de assegurar as condições que a biosfera oferece à Natureza. Ao que parece, o homem está à espera de uma catástrofe – como foi a peste negra, no século 14 – a fim de compreender as dimensões de seus erros. Naquele século emblemático – no qual historiadores encontram semelhanças com o nosso – a população européia quase desapareceu. Pulgas e ratos levaram a peste da Ásia e encontraram o continente vulnerável à bactéria Yersinia pestis: segundo os cálculos, mais de um terço dos europeus pereceram no curso de quatro anos. Como vemos, seres aparentemente tão frágeis são capazes de promover hecatombes.
O que está matando o mundo, hoje, vale repetir, é a peste da ganância do capitalismo, que transformou a razão científica em mera servidora do dinheiro, principalmente a partir do neoliberalismo. Todos nós sabemos que os nutrientes químicos, como o nitrogênio, e agrotóxicos, estão matando os rios e extensões cada vez maiores dos oceanos. A Monsanto continua, firme, em nome da liberdade do mercado, a envenenar os solos e os mananciais de água – isso sem falar nas suas sementes transgênicas. O que já era ruim em 1972, quando se reuniu, em Estocolomo, a Primeira Conferência sobre o Meio-Ambiente, tornou-se muito pior a partir da conjuração anti-estado, promovida por Reagan, Thatcher – e, como coringa solto na jogada, o papa Karol Wojtila. Nestes últimos trinta e dois anos, não obstante as sucessivas declarações de alarme, e três novas conferências realizadas, pouco se fez de objetivo, a fim de salvar a natureza. Assim, o neoliberalismo acelera o assassinato da Terra.
A realidade nos impõe uma constatação: enquanto os Estados Unidos que, para o bem e para o mal, são o modelo da civilização contemporânea, não mudarem a sua matriz energética, e não contiverem a insensatez da bio-engenharia a serviço dos interesses do grande capital, o mundo continuará sua marcha para a tragédia.
Em nosso caso, a salvação da biodiversidade com que nos privilegiou a Natureza e, em seguida, a História, vem correndo novos e evitáveis riscos, a partir do desmantelamento do Estado, promovido pelo governo neoliberal de Fernando Henrique Cardoso.
Desde Getúlio Vargas, o Brasil dispunha de grupos técnicos de planejamento de infraestrutura a médio e longo prazo. Durante o governo de Juscelino, esses grupos se tornaram a vanguarda do desenvolvimento da economia nacional. Os governos militares mantiveram alguns deles, reorganizaram outros e esvaziaram os demais. Um desses grupos, talvez o mais importante para o nosso desenvolvimento, era o Geipot – reorganizado em 1965, durante o governo de Castelo Branco, abandonado por Fernando Henrique e hoje em liquidação. A União teve o prejuízo de 400 milhões de reais na execução das obras da Ferrovia Norte-Sul, por falta de um órgão como o Geipot. O serviço das empreiteiras não foi fiscalizado, dia-a-dia, como deveria ter sido, e erros graves, além da não execução das obras planejadas, como estações e depósitos, foram constatados pela nova diretoria da Valec, a estatal que administra a implantação do grande trecho ferroviário.
Outra imprevisão do governo se manifesta agora, na Hidrelétrica do Jirau. Dois milhões de metros cúbicos de madeira e lenha, retirados da área a ser coberta pelas águas, estão destinados a apodrecer, por falta de aproveitamento econômico. A retirada dessa cobertura vegetal deveria ter sido planejada com antecedência e seu aproveitamento, da mesma forma.
Outras áreas da Amazônia estão sendo desmatadas para a exportação – legal e ilegal – da madeira, com os danos conhecidos ao meio-ambiente. É urgente que se planifique o aproveitamento racional da madeira e dos outros bens naturais existentes nas áreas a serem inundadas nas outras hidrelétricas em construção no território brasileiro. Há, ainda, no fundo da futura represa – cujo enchimento se iniciará ainda este ano – muita cobertura vegetal que, se não retirada a tempo, irá provocar danos imensos ao ambiente, ao produzir metano, um dos gases mais poluidores da atmosfera, além do carbono.
A eficiência do Estado se garante mediante o estudo prévio de suas necessidades e de suas possibilidades, ou seja, de planejamento. Desde o Império, empreendedores e homens de Estado pensaram em termos de planejamento. Até hoje é válido o projeto ferroviário de Mauá, que previa a ligação ferroviária entre o Norte e o Sul, entre o Leste e o Oeste, e o aproveitamento dos rios para o transporte de carga pesada. Vargas, na plataforma eleitoral de 1930, reafirmou a necessidade de planejamento e seguiu a idéia durante o Estado Novo. Vargas retomou o projeto nacional, em 1951 e Juscelino deu-lhe prosseguimento de forma vigorosa, em seu mandato. Com a desconstrução do estado nacional, o governo Fernando Henrique deixou o planejamento por conta das empreiteiras e dos estrangeiros. Vale lembrar a contratação da Booz Allen pelo governo tucano, para “identificar os gargalos” que dificultam o desenvolvimento do país, quando não faltam técnicos competentes nos quadros da administração federal para cuidar do planejamento dos projetos de infra-estrutura no Brasil, como é o caso dos transportes e da energia.
É hora de o Estado assumir diretamente a sua responsabilidade e buscar os meios constitucionais para acabar com as agências reguladoras e devolver aos ministérios as tarefas que devem ser suas. As agências reguladoras foram, nos Estados Unidos de Roosevelt e do New Deal, o instrumento do Estado para conduzir a economia nos anos de crise. No Brasil, elas tiveram o objetivo contrário, o de entregar aos agentes privados, a serviço dos interesses estrangeiros, a administração dos setores estratégicos nacionais, como a energia elétrica, as telecomunicações, as rodovias, as ferrovias e os portos – isso sem falar na saúde, com a Anvisa.
Mauro Santayana é colunista político do Jornal do Brasil, diário de que foi correspondente na Europa (1968 a 1973). Foi redator-secretário da Ultima Hora (1959), e trabalhou nos principais jornais brasileiros, entre eles, a Folha de S. Paulo (1976-82), de que foi colunista político e correspondente na Península Ibérica e na África do Norte
UNB prova que urna eletrônica é vulnerável
Entre os riscos, a prática do “voto de cabresto digital”, em municípios onde o “coronelismo” é exercido com rigor, e até a clonagem de urnas
Ricardo Rodrigues - Do Hoje em Dia - 17/06/2012
EUGENIO MORAES
Diego de Freitas Aranha: “Se falhas não forem corrigidas, as eleições não terão o curso perfeito”
Ao contrário do que o Tribunal Superior Eleitoral reitera há anos, a inviolabilidade da urna eletrônica é mera figura de retórica. A convite do próprio TSE, equipe da Universidade de Brasília (UnB), liderada pelo professor Diego de Freitas Aranha, mostrou em testes que o sistema utilizado no Brasil apresenta falhas. Uma delas é o risco de imperar o “voto de cabresto digital”, em municípios onde o “coronelismo” é exercido com rigor, e até a clonagem de urnas.
“Vulnerabilidades da urna eletrônica representam um ataque à imagem e à confiabilidade da autoridade eleitoral”, diz. O mais grave de tudo é que a falha era conhecida na área de segurança há pelo menos 17 anos.
A brecha que permitia a quebra de sigilo do voto foi relatada ao TSE por Aranha, que se prontificou a ajudar na solução das vulnerabilidades. Convite do tribunal para isso nunca chegou ao mestre e doutor em Ciência da Computação, especialista em implementação eficiente de algoritmos criptográficos e projeto de primitivas criptográficas para fornecimento de anonimato computacional.
Ele cita o caso de partido que já pagou para quebrar a inviolabilidade da urna eletrônica, mas não dá detalhes. “Os partidos podem falar mais sobre isso do que eu”.
Para atender “requisitos mínimos” de segurança, o acadêmico sugere que a urna adote o voto verificável pelo eleitor. A impressão do voto foi aprovada no Congresso e valeria a partir de 2014, mas foi suspensa pelo STF, sob a alegação de que imprimir o voto compromete o direito ao sigilo, oferecendo “uma falsa e cara sensação de segurança”.
Qual brecha permitia a quebra de sigilo do voto?
O software de urna não oferece segurança na forma como embaralhava o registro dos votos. Na prática, se alguém soubesse a ordem de votação – por exemplo, que você foi o quinto a votar –, era possível determinar, também, em quem você votou, sem que a urna fosse violada para isso. Nas eleições, isso significa que é possível determinar a ordem em que cada voto foi realizado e, sabendo a ordem de eleitores de uma sessão, determinar em quem eles votaram. Por isso, o RDV (registro digital do voto) tem os votos fora de ordem. O método (algoritmo) utilizado pela urna era previsível. Derrotamos o mecanismo de embaralhamento dos votos para armazenamento no RDV, única medida tomada pelo software para proteger o sigilo. Esse tipo de erro é conhecido na área de segurança há pelo menos 17 anos, mas só agora foi detectado e corrigido na urna brasileira.
É a volta do coronelismo e do voto de cabresto digital?
Temos a figura do ‘atacante’ capaz de comprar votos, exercer pressão política e monitorar eleitores. Há, pelo menos, três modalidades de voto de cabresto digital: os eleitores são coagidos a votar logo na abertura da seção; o primeiro eleitor coagido usa um marcador de bloco (números primos, por exemplo); os eleitores votam em horas ou posições pré-determinadas.
Como ocorrem ataques ao sistema eletrônico de votos?
Ataque direto é feito a partir da semente pública (código-fonte), que permite recuperar os votos em ordem do RDV – o substituto eletrônico do papel onde eram registrados os votos – um arquivo público disponibilizado aos partidos após o fim da eleição. Ataque indireto faz a busca exaustiva da semente e compara os ‘buracos’ do RDV. Hoje, só com informação pública é possível fazer ataques ao sistema de votação eletrônica. A partir do LOG (público aos partidos) é possível associar voto à hora de votação; recuperar votos em ordem a partir da semente pública; recuperar a semente a partir dos votos fora de ordem. Assim, fica derrotado completamente o único mecanismo de urna para proteger o sigilo do voto.
Como proteger o sigilo?
Mecanismos de segurança têm de resistir até a ataques internos. Esse embargo precisa ser feito para não afetar a segurança e sigilo do voto, pois o programa de urna tem de deixar informação para a auditoria dos partidos. O que pode ser feito para corrigir esses problemas é usar gerador de números verdadeiramente aleatórios em hardware; gerador nativo do GNU/Linux (random) com qualidade criptográfica; gerador nativo do GNU/Linux (urandom) sem qualidade criptográfica, mas superior. A questão exige estudo mais aprofundado para descobrir, na prática, se eles são viáveis e seguros.
O TSE utiliza práticas não recomendáveis?
Chaves criptográficas são declaradas no código-fonte. Mídias de todas as urnas são cifradas com a mesma classe criptográfica. Se vazou, abre meio milhão de urnas sem dificuldade. É como trancar a casa e por a chave debaixo do tapete, na esperança de que o ladrão não vai procurá-la ali. Essa vulnerabilidade poderia ser verificada por qualquer ferramenta de análise de código. Mas a integridade de bibliotecas dinâmicas não era verificada pelo TSE. À ausência de ferramentas de análise de código se somam a utilização de algoritmos obsoletos, implementações repetidas de primitivas criptográficas, além de informação sobre servidores, usuários e senhas.
O que mais preocupou os “investigadores” no teste?
A presença de uma chave secreta usada por todas as urnas brasileiras no código-fonte. O vazamento da chave compartilhada tem impacto devastador. Há preocupação demasiada em ofuscação ao invés de segurança. Ênfase em atacantes externos e não em atacantes internos, que compartilham dados de 500 mil urnas. Agentes internos têm muito mais potencial de exercer a fraude. O discurso de que a urna é inviolável distorce o senso crítico de quem trabalha com ela. Atualmente, há 100% de privacidade e 0% de verificação. O ideal seria 95% de privacidade e 95% de verificabilidade.
O ‘atacante’ já conhece o sistema desde muito antes?
Não sei se houve resultados alterados em eleições passadas. Desde 2003, o embaralhamento dos votos é feito (pelo RDV). Ou nas anteriores ele era melhor, ou era pior, seja lá o que isso significa, ou era equivalente. As três hipóteses são igualmente preocupantes. No nosso caso, apenas o equipamento “sabe’ para quem é o voto de cada eleitor.
Confissões inéditas de Dilma - "As marcas da tortura sou eu"
DoLuisnassif
Em outubro de 2001, nove anos antes de ser eleita presidente, Dilma Rousseff revelou, em depoimento ao Conselho dos Direitos Humanos de Minas Gerais, detalhes do sofrimento vivido nos porões da ditadura em Juiz de Fora. Até então, nem os companheiros de luta sabiam que Esteia, seu codinome na militância, tinha sido torturada na cidade mineira, onde ficou encarcerada por dois meses, em 1972. Só era sabido o tempo de prisão em São Paulo e no Rio de Janeiro. Os documentos, só agora revelados, mofavam em uma sala do conselho e trazem revelações emocionantes da hoje chefe de Estado: "Eles queriam o concreto. "Você fica aqui pensando. Daqui a pouco, eu volto e vamos começar uma sessão de tortura". A pior coisa é esperar por tortura".
"Me deram um soco e o dente deslocou-se e apodreceu"
Sandra Kiefer
Belo Horizonte — Dilma chorou. Essa é uma das lembranças mais vivas na memória do filósofo Robson Sávio, que, ao lado de uma outra voluntária do Conselho de Direitos Humanos de Minas Gerais (Conedh-MG), foi ao Rio Grande do Sul coletar o testemunho da então secretária de Minas e Energia daquele estado sobre a tortura que sofrera nos anos de chumbo. Com fama de durona, moradora do Bairro da Tristeza, Dilma tirou a máscara e voltou a ter 22 anos de idade. Revelou, em primeira mão, que as torturas físicas em Juiz de Fora foram acrescidas de ameaças de dano físico deformador: "Geralmente me ameaçavam de ferimentos na face".
Não eram somente ameaças. Segundo fez constar no depoimento pessoal, Dilma revelou, pela primeira vez, ter levado socos no maxilar, que podem explicar o motivo de a presidente ter os dentes levemente projetados para fora. "Minha arcada girou para outro lado, me causando problemas até hoje, problemas no osso do suporte do dente. Me deram um soco e o dente se deslocou e apodreceu", disse. Para passar a dor de dente, ela tomava Novalgina em gotas, de vez em quando, na prisão. "Só mais tarde, quando voltei para São Paulo, o Albernaz (o implacável capitão Alberto Albernaz, do DOI-Codi de São Paulo) completou o serviço com um soco, arrancando o dente", completou.
Mais tarde, durante a campanha presidencial, em 2009, Dilma faria pelo menos três correções de ordem estética para se candidatar, que incluíram uma plástica facial, a troca dos óculos por lentes de contato e a chance de, finalmente, realinhar a arcada dentária. Na mesma época, Dilma combateu e venceu um câncer no sistema linfático. Guerreira, a presidenta suavizou as marcas deixadas pelo passado na pele. Não tocou, porém, nas marcas impressas na alma. "As marcas da tortura sou eu. Fazem parte de mim", definiu Dilma, em 2001, no depoimento emocionado à comissão mineira, 11 anos antes de ser criada a Comissão Nacional da Verdade, em maio, 13 anos depois da Constituição Cidadã de 1988.
Fuga pela Rua Goiás
"Eu comecei a ser procurada em Minas Gerais nos dias seguintes à prisão de Angelo Pessuti. Eu morava no Edifício Solar, com meu marido, Cláudio Galeno de Magalhães Linhares, e numa noite, no final de dezembro de 1968, o apartamento foi cercado e conseguimos fugir, na madrugada. O porteiro disse aos policiais do DOPS de Minas Gerais que não estávamos em casa. Fugimos pela garagem que dá para a rua do fundo, a Rua Goiás"
Ligações com Angelo
"Fui interrogada dentro da Oban por policiais mineiros que interrogavam sobre processo na auditoria de Juiz de Fora e estavam muito interessados em saber meus contatos com Angelo Pessuti, que, segundo eles, já preso, mantinha comigo um conjunto de contatos para que eu viabilizasse sua fuga. Eu não tinha a menor ideia do que se tratava, pois tinha saído de BH no início de 1969 e isso era no início de 1970. Desconhecia as tentativas de fuga de Angelo Pessuti, mas eles supuseram que se tratava de uma mentira, talvez uma das coisas mais difíceis de você ser no interrogatório é inocente. Você não sabe nem do que se trata"
Local da tortura
"Acredito hoje ter sido por isto que fui levada no dia 18 de maio de 1970 para MG, especificamente para Juiz de Fora, sob a alegação de que ia prestar esclarecimentos no processo que ocorria na 4ª CJM. Mas, depois do depoimento, eu fui levada (ou melhor, teria de ser levada para SP), mas fui colocada num local (encapuzada) que sobre ele tinha várias suposições: ou era uma instalação do Exército ou Delegacia de Polícia. Mas acho que não era do Exército, pois depois estive no QG do Exército e não era lá"
"Nesse lugar fiquei sendo interrogada sistematicamente. Não era sobretudo sobre minha militância em MG. Supuseram que, tendo apreendido documentos do Ângelo (Pessuti) que integram o processo, achavam que nossa organização tinha contatos com a PM ou PC mineira que possibilitassem fugas de presos. Acredito ter sido por isso que a tortura foi muito intensa, pois não era presa recente; não tinha "pontos" e "aparelhos" para entregar"
Dente podre
"Uma das coisas que me aconteceu naquela época é que meu dente começou a cair e só foi derrubado posteriormente pela Oban. Minha arcada girou para outro lado, me causando problemas até hoje, problemas no osso do suporte do dente. Me deram um soco e o dente deslocou-se e apodreceu. Tomava de vez em quando Novalgina em gotas para passar a dor. Só mais tarde, quando voltei para SP, o Albernaz (capitão Alberto Albernaz) completou o serviço com um soco, arrancando o dente"
Pau-de-arara
"...Algumas características da tortura. No início, não tinha rotina. Não se distinguia se era dia ou noite. O interrogatório começava. Geralmente, o básico era choque. Começava assim: "em 1968 o que você estava fazendo?" e acabava no Angelo Pessuti e sua fuga, ganhando intensidade, com sessões de pau-de-arara, o que a gente não aguenta muito tempo"
Palmatória
"Se o interrogatório é de longa duração, com interrogador "experiente", ele te bota no pau-de-arara alguns momentos e depois leva para o choque, uma dor que não deixa rastro, só te mina. Muitas vezes também usava palmatória; usava em mim muita palmatória. Em SP usaram pouco esse "método". No fim, quando estava para ir embora, começou uma rotina. No início, não tinha hora. Era de dia e de noite. Emagreci muito, pois não me alimentava direito"
General Sylvio Frota passa a tropa em revista no Palácio da Liberdade, em Belo Horizonte: militar colocou Dilma na lista dos infiltrados no poder público
Tortura psicológica
"Tinha muito esquema de tortura psicológica, ameaças. Eles interrogavam assim: "me dá o contato da organização com a polícia?" Eles queriam o concreto. "Você fica aqui pensando, daqui a pouco eu volto e vamos começar uma sessão de tortura". A pior coisa é esperar por tortura"
Ameaças
"Depois (vinham) as ameaças: "Eu vou esquecer a mão em você. Você vai ficar deformada e ninguém vai te querer. Ninguém vai saber que você está aqui. Você vai virar um "presunto" e ninguém vai saber". Em SP me ameaçaram de fuzilamento e fizeram a encenação. Em Minas não lembro, pois os lugares se confundem um pouco"
Sequelas
"Acho que nenhum de nós consegue explicar a sequela: a gente sempre vai ser diferente. No caso específico da época, acho que ajudou o fato de sermos mais novos; agora, ser mais novo tem uma desvantagem: o impacto é muito grande. Mesmo que a gente consiga suportar a vida melhor quando se é jovem, fisicamente, a médio prazo, o efeito na gente é maior por sermos mais jovens. Quando se tem 20 anos, o efeito é mais profundo, no entanto, é mais fácil aguentar no imediato"
Sozinha na cela
"Dentro da Barão de Mesquita (RJ), ninguém via ninguém. Havia um buraquinho, na porta, por onde se acendia cigarro. Na Oban, as mulheres ficavam junto às celas de tortura. Em MG, sempre ficava sozinha, exceto quando fui a julgamento, quando fiquei com a Terezinha. Na ida e na vinda todas as mulheres presas no Tiradentes sabiam que estavam presas: uma, por exemplo, Maria Celeste Martins, e Idoina de Souza Rangel, de São Paulo"
Visita da mãe
"Em MG, estava sozinha. Não via gente. (A solidão) Era parte integrante da tortura. Mas a minha mãe me visitava às vezes, porém, não nos piores momentos. Minha mãe sabia que estava presa, mas eles não a deixavam me ver. Mas a doutora Rosa Maria Cardoso da Cunha, advogada, me viu em SP, logo após a minha chegada de Minas. Hoje ela mora no Rio e posso contatá-la"
Cena da bomba
"Em MG, fiquei só com a Terezinha. Uma bomba foi jogada na nossa cela. Voltei em janeiro de 1972 para Juiz de Fora (nunca me levaram para BH). Quando voltei para o julgamento, me colocaram numa cela, na 4ª Cia. de Polícia do Exército, 4ª RM, lá apareceu outra vez o Dops que me interrogava. Mas foi um interrogatório bem mais leve. Fiquei esperando o interrogatório bem mais leve. Fiquei esperando o julgamento lá dentro"
Frio de cão
"Um dia, a gente estava nessa cela, sem vidro. Um frio de cão. Eis que entra uma bomba de gás lacrimogênio, pois estavam treinando lá fora. Eu e Terezinha ficamos queimadas nas mucosas e fomos para o hospital. Tive o "prazer" de conhecer o Comandante General Sylvio Frota, que posteriormente, me colocará na lista dos infiltrados no poder público, me levando a perder o emprego"
Motivos
"Quando eu tinha hemorragia, na primeira vez foi na Oban (...) foi uma hemorragia de útero. Me deram uma injeção e disseram para não bater naquele dia. Em MG, quando comecei a ter hemorragia, chamaram alguém que me deu comprimido e depois injeção. Mas me davam choque elétrico e depois paravam. Acho que tem registros disso no final da minha prisão, pois fiz um tratamento no Hospital das Clínicas"
Morte e solidão
"Fiquei presa três anos. O estresse é feroz, inimaginável. Descobri, pela primeira vez, que estava sozinha. Encarei a morte e a solidão. Lembro-me do medo quando minha pele tremeu. Tem um lado que marca a gente o resto da vida"
Marcas da tortura
"As marcas da tortura sou eu. Fazem parte de mim"
Processo à revelia
Num primeiro momento, Dilma se recusou a entrar com pedido de reparação. Só depois, com a insistência de antigos companheiros, decidiu falar sobre a tortura
Sandra Kiefer
O depoimento de Dilma Rousseff é parte do processo aberto em março de 2001 no Conselho dos Direitos Humanos de Minas Gerais (Conedh-MG), criado por determinação do então governador Itamar Franco para indenizar presos políticos mineiros. O nome de Dilma foi o 12º da primeira leva de 53 militantes a receber R$ 30 mil a título de reparação por torturas impostas por agentes do Estado. Na documentação, consta que o valor foi depositado na conta de Dilma em março de 2002, exatos 10 anos e dois meses antes da instalação da Comissão Nacional da Verdade. Recentemente, ainda foi paga a indenização pelo Conedh do Rio de Janeiro, reivindicada em 2004. A presidente divulgou que vai doar a importância de R$ 20 mil ao Tortura Nunca Mais.
O promotor de Justiça de Juiz de Fora (MG), Antônio Aurélio Silva, foi o relator do processo de Dilma por Minas. Avesso a entrevistas, diz apenas que o processo correu à revelia da presidente, que inicialmente resistiu a entrar com pedido de reparação por ter sofrido tortura. Sua inscrição foi feita sob pressão de representantes mineiros do grupo Tortura Nunca Mais. Eles conseguiram colher a assinatura da mãe dela, Dilma Jane. "No primeiro momento, Dilma foi contra, mas depois entendeu a importância histórica do ato e acabou colaborando no processo", afirma.
Até então, o episódio da tortura de Dilma em Minas permanecia desconhecido entre os próprios militantes estudantis de esquerda de Belo Horizonte, acusados de subversão na época da ditadura. "Não sabia que ela tinha sido torturada em Juiz de Fora", surpreende-se Gilberto Vasconcelos, o Ivo, presidente do Diretório Acadêmico da Faculdade de Direito de Uberaba e principal contato da organização Colina na cidade. Em janeiro de 1972, Gilberto foi transferido de São Paulo para Juiz de Fora com Dilma, dentro do mesmo camburão. "Não posso testemunhar sobre a tortura de Dilma em Juiz de Fora, porque, chegando lá, fomos separados e não tive mais contato com ela. Só voltaria a vê-la no dia do julgamento", completa.
Aquele abraço
Gilberto é conterrâneo de Dilma. Na época, ela tinha 22 anos e ele, 23. Ambos militavam no setor estudantil da organização de luta armada Colina, batizada em homenagem às montanhas de Minas. Mais tarde, na clandestinidade, os dois se tornariam amigos de Carlos Alberto Soares de Freitas, o Beto, de codinome Breno, que chegaria a ser dirigente nacional da VAR-Palmares. "Não há melhor lugar para se esconder do que na praia. Ficávamos eu, ela e o Beto sentados na praia, cantando as músicas da revolução. Um dia, chegou o Beto cantando Aquele abraço, do Gilberto Gil, que eu nunca tinha ouvido. Dilma cantou junto. Ela gostava de cantar e isso nos unia além das convicções ideológicas", lembra.
Em fevereiro de 1971, Beto seria morto em combate, assassinado com três tiros na Casa da Morte de Petrópolis, no Rio, segundo consta no livro A vida quer é coragem, lançado em janeiro por Ricardo Amaral, ex-assessor de imprensa de Dilma, que trabalhou em Belo Horizonte como repórter do antigo Diário do Comércio. Em homenagem ao amigo de lutas, Gilberto batizou seus filhos como Beto e Breno.
Duas perguntas para//Gilberto Vasconcelos
Como foi sua passagem por São Paulo?
Eu já estava no presídio Tiradentes. Uns seis meses depois, chegou o Max, codinome do Carlos Franklin Paixão Araújo, pai da filha de Dilma. Nós ficamos presos na mesma cela, no mesmo beliche durante um ano e meio. O Max se comunicava com ela através de bilhetinhos escritos com caneta Bic de ponta fina e enrolados no durex, escondidos na obturação do dente. O dentista era um preso político e fazia a troca dos papeizinhos entre a ala feminina e a masculina. Ele era apaixonado pela Dilma e os dois se gostavam mesmo.
E quanto à jovem militante Dilma?
Não estou cometendo nenhuma inconfidência, pois os dois são grandes amigos até hoje, isso é notório. Max sempre foi um cara extraordinário, de raciocínio rápido. Engraçado como as pessoas mudam pouco com o tempo. Estive com Max no casamento da Paula (filha de Dilma), em Porto Alegre, e ele continua do mesmo jeito. Dilma também. Ela estava cercada de amigos e me tirou para dançar na festa. Apesar de ter uma imagem que não reflete isso, é uma pessoa sensível, carinhosa, afável e uma das pessoas mais generosas que conheço. Muito antes de ela se tornar ministra, de ser presidente, sempre disse isso
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