José Paulo Kupfer
Com a queda na arrecadação e a perspectiva de redução nas metas anuais de superávit primário, mesmos os fiscalistas carecas estão com os cabelos em pé. Avançam as divisões motorizadas contra os “gastos correntes”, aqueles que, segundo a versão martelada pelos neocons e retransmitida dia e noite pela mídia que os vocaliza, se não forem contidos e decepados, sufocarão os investimentos públicos.
”Gastos correntes”, tratados assim o mais genérico possível, são os primeiros suspeitos de sempre entre os culpados pelos erros da política econômica, na visão desnaturada do neoliberalismo de casaca. Lançada ao ar com a recorrência das mentiras que se tornam verdades, a acusação contra os “gastos correntes” confunde a plebe ignara, que os identifica apenas como a expressão de salários exorbitantes de indistintos servidores públicos. E também de mordomias hollywoodianas. Ou, ainda, de escandalosos desperdícios de recursos.
Sim, sim, tem salários exorbitantes, mas só para uma parte bem pequena do funcionalismo - o grosso trabalha direito e ganha pouco. Tem mesmo mordomias incríveis, mas, de novo, é moleza para uns poucos amigos dos reis e nobres das cortes. Desperdício, idem com batatas, mas desperdiçar recursos públicos não é exatamente a regra.
Uma parte relevante dos “gastos correntes” ou seu sinônimo com roupa ideológica, a “gastança”, nada mais é do que o conjunto de recursos aplicados em áreas essenciais, como saúde pública e educação pública – parte do que chamam, pejorativamente, de “custeio da máquina”, sempre apedrejada sem as necessárias ressalvas. Também fazem parte dos gastos correntes que vão no saco das mordomias e dos aproveitamentos, os programas sociais, a Previdência e subsídios – estes, aliás, um balaio de gatos que inclui um tanto para pobres e, vamos combinar um monte para ricos. É preciso deixar claro: sem gastos correntes, restaria aos desprovidos apenas a proteção social dos viadutos.
Se, então, o analista das políticas fiscais for honesto, se sentirá, antes de qualquer coisa, na obrigação de separar os alhos dos bugalhos. Além disso, saberá observar o campo de uma perspectiva histórica. Por exemplo: por que meta de superávit primário? Boa pergunta que nunca é feita, logo, nunca respondida. Por que, enfim, não meta fiscal nominal, como em todas as economias civilizadas do planeta?
Como define o senso comum, o superávit primário é “a economia feita pelo governo para pagar os juros da dívida pública”. Ele leva em conta as receitas do governo – nas três esferas federativas, incluindo os bancos públicos e as empresas estatais – das quais são descontados gastos correntes. O gasto com juros da dívida pública, o item de maior peso individual no total dos gastos, que não deixa de ser “corrente”, fica fora da conta.
O conceito de superávit primário, que se articula com o da relação dívida pública com o PIB, é um entulho econômico dos tempos dos garrotes do FMI, imposto ao País como condição para novos empréstimos compensatórios, em nome da contenção de uma monumental dívida pública, formada por uma gigantesca dívida externa e uma explosiva dívida interna. Não custa lembrar que a primeira foi potencializada por uma desastrosa política de valorização cambial. E que a segunda – o lado escuro da lustrosa moeda do Plano Real –, ainda que explicável em parte pela absorção de esqueletos fiscais, partiu de pouco mais de 30%, em 1994, e alcançou a vizinhança inédita de 60% do PIB, em 2002.
Com a redução da dívida pública externa a volumes de quase nada (menos que nada, aliás, se considerarmos o acumulado de reservas internacionais) e o controle da dívida interna, em relação ao PIB, as metas de superávit primário perderam toda a sua eventual razão de ser. Mas continuam a estrangular as políticas públicas, afetando, principalmente, as de cunho social, e os investimentos públicos em infraestrutura.
Do mesmo modo que o conceito de meta fiscal operacional, vigente no período em que a correção monetária disseminou-se na economia, foi abandonado com o fim da indexação geral de preços, a aplicação do conceito de meta primária, como base de política econômica, está em desacordo com a realidade do endividamento público e sua manutenção é um crime contra o esforço dos brasileiros em fazer o País progredir. Assim como a meta operacional foi substituída pela meta primária, está mais do que hora de substituir a meta primária pela meta nominal, com a inclusão dos juros das dívidas públicas no conjunto dos gastos de governo a serem controlados e monitoridos.
Se o Brasil almeja, de fato, ocupar um lugar de destaque entre as economias globais, não pode manter em vigor uma jabuticaba desse quilate. Não é nem o caso de falar de uma necessária revisão nos conceitos de dívida pública, mas, simplesmente, de adotar o que todos praticam mundo afora. Não há economia civilizada que opere com metas fiscais primárias.
Com a substituição da meta fiscal primária pela nominal, além de incluir os juros na roda dos gastos a serem controlados, a política fiscal ganharia uma flexibilidade de que hoje não dispõe. Neste exato momento, o governo se contorce em cólicas para cortar gastos correntes e salvar algum para investimentos.
Os sábios se esfalfam no ataque à redução da meta de superávit primário para 3,8% do PIB e reagem com horror à idéia de reduzi-la mais um pouco, para 3,3% do PIB, com o desconto de 0,5% do PIB na meta, referente ao chamado “projeto-piloto de investimentos (PPI), uma mandracaria acertada com o FMI, no início do governo Lula, para permitir, caso necessário, um mínimo de investimento em infraestrutura.
Cálculos conservadores, no entanto, mostram que seria possível reduzir o superávit primário bem além dos 3,3% agora aventados. Até pelo menos um superávit primário de 2,5% do PIB não haveria qualquer efeito negativo no controle fiscal. Mesmo se a economia não crescer mais de 1% em 2009 e os juros básicos médios do ano permanecerem nas alturas de 11,2%, com um superávit primário de 2,5% do PIB, o déficit nominal e a relação dívida/PIB continuarão recuando, na comparação com os anos anteriores.
O economista Amir Khair, um especialista tecnicamente seguro, mas independente do pensamento econômico hegemônico, calcula que o déficit nominal ficaria em 1,5% do PIB (contra 1,6% do PIB, em 2008) e a dívida pública líquida, em 35,4% do PIB (contra 36%, em 2008). Hipóteses também conservadoras mostram que, com crescimento de 2%, em 2010, e juros básicos médios anuais de 9,6%, o mesmo superávit primário de 2,5% do PIB resultaria em déficit nominal de 0,8% do PIB e uma dívida/PIB de 33,7%.
Quando se observa que esses resultados são muito melhores do que os tetos, hoje já ultrapassados, fixados pelo Tratado de Maastricht, para os países da União Europeia (déficit público nominal de 3% e dívida pública de 60% do produto econômico), fica nítido não fazer nenhum sentido insistir no conceito de meta primária. Faz menos sentido ainda se agarrar a superávits desnecessários, com suas conseqüências nefastas para o desenvolvimento econômico do País e a qualidade de vida da população, sobretudo aquela que vive em maior insegurança social.
Gastar mal, é claro, não pode. Mas, economizar mal também não devia poder.
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