terça-feira, janeiro 19, 2016

Vencer em São Paulo, para renascer no Brasil

Carta Maior


A candidatura de Haddad não disputa apenas a prefeitura de São Paulo, mas um espaço de renascimento da agenda progressista no Brasil. E a direita sabe disso.

por: Saul Leblon

Para jogar a pá de cal no PT em 2018, ou antes, como se alardeia, o conservadorismo terá que passar por um teste de competëncia como coveiro da democracia social brasileira.

A pedra no meio do caminho é a eleição municipal de São Paulo, em 2 de outubro próximo.

A maior cidade do país é também o quartel-general da oposição conservadora; seu bunker político e logístico; o principal partido da direita brasileira, o PSDB, deita suas raízes mais profundas aqui.

Palco recente das maiores manifestações da elite e da classe média contra o governo da presidenta Dilma, a capital abriga o grande aparato da mídia conservadora , seus mais importantes think tanks e o braço financeiro que integra o capitalismo brasileiro à finança global com os interesses aí encastoados.

São Paulo é a principal caixa de ressonância dos imputs emitidos pelo juiz Sergio Moro para pautar a vida política nacional através do manejo discricionário da operação Lava Jato.

Para a direita, em tese, a disputa eleitoral de outubro equivale a uma final de campeonato jogando em casa.

Mais que isso.

A recidiva da crise mundial entrou em campo.

As cotações das commodities estão no nível mais baixo em 16 anos; os preços do barril de petróleo caíram 70% em 18 meses.

O conjunto atrofiou o braço fiscal do Estado brasileiro impondo tarifaços e cortes orçamentários, que repercutiram localmente prejudicando a receita, o investimento, obras, metas e promessas de gestores municipais.

A insatisfação com os preços em alta e com o mercado de trabalho, em baixa, ademais da liquefação da industrialização brasileira nas últimas décadas tem em SP a sua principal usina de reprocessamento político.

Três em cada dez desempregados brasileiros vivem em São Paulo.

Não só.

Na maior cidade brasileira esse torniquete veio se sobrepor a um nó fiscal do qual a administração Haddad já era vítima.

Premido pela emissão conservadora, o governo federal, já no seu primeiro mandato de Dilma, aceitou como verdade a fotomontagem do ‘abismo fiscal’ iminente, alardeada em dueto com a gula rentista.

A consequência para São Paulo é que a chamada Lei de Renegociação da Dívida, aprovada em 2014 --e pela qual o montante do débito da cidade cairia de R$ 63 bi para R$ 36 bi, teve sua vigência seguidamente postergada, até ser adiada para o segundo semestre de 2016.

Em abril do ano passado, Haddad obteve liminar para pagar em juízo a dívida como manda a lei, tendo como referência o IPCA mais juros de 4% ao ano (contra 9% pela regra draconiana vigente desde o governo FHC ).

A diferença significa despender R$ 4 bilhões ao ano com o serviço da dívida ou cortar isso para R$ 2,7 bi.

Para ser mais claro: o saldo anual de R$ 1,3 bi entre um e outro caso equivale praticamente ao total do investimento em drenagem (R$1,4bi) previsto pelo PAC para toda a cidade de São Paulo.

Tendo vencido a queda de braço com a sucursal da ortodoxia no governo Dilma, o prefeito Haddad conseguiu recuperar investimentos em 2015, com um volume recorde de R$ 4,5 bi.

A tradução disso em obras prontas, porém, talvez tenha perdido seu timming eleitoral.

A agenda política da esquerda em São Paulo reúne, portanto, uma síntese das dificuldades enfrentadas em âmbito nacional para se renovar e resistir à ordem unida do ‘ajuste’, recomendada como uma espécie de suicídio assistido, de fora e de dentro do país.

É esse o pano de fundo das eleições municipais em que Fernando Haddad disputará a permanência no cargo.

O assalto conservador será implacável.

A ascensão recente de Maurício Macri na Argentina, incubado por metas e métodos que dão pertinência à expressão ‘terra-arrasada’, serve de amostra da octanagem política necessária à regressão econômica pretendida.

Um bibelô da direita, o animador de auditórios conservadores, João Dória Jr –preferido de Alckmin para disputar a prefeitura pelo PSDB—tem como bandeira ‘privatizar tudo’; fazer de São Paulo uma vitrine do Estado mínimo que os patrões advogam para o Brasil.

Trata-se de um mascote bajulador, mas é um pouco esse o espírito de uma direita que fareja ser esse o seu momento para colocar ‘ordem na casa-grande’ e a partir daí botar o resto da senzala na linha.

Os desdobramentos concretos e simbólicos de uma vitória progressista no núcleo duro da reação brasileira e latino-americana, em contrapartida, não seriam menos contundentes nesse momento.

Podem configurar um divisor de águas, não apenas eleitoral, mas um passo substantivo na superação da encruzilhada vivida pela esquerda brasileira, desafiada a se renovar do ponto de vista estratégico e organizativo para não morrer.

Vencer em São Paulo para renascer no Brasil? Talvez não seja exagerado colocar as coisas nesses termos nos dias que correm.

O tempo é curto.

São nove meses para o parto que inclui rever erros e acertos e negociar alianças em torno de um projeto-vitrine para o maior centro capitalista da América Latina.

Pouca dúvida pode haver: se vencer a batalha de São Paulo, a esquerda brasileira reacenderá a esperança na construção da democracia social em toda a região, liberando energias que vão sacudir a correlação de forças na disputa brasileira de 2018.

Pelas razões mencionadas, Haddad não terá entre as suas armas uma marca de grandes obras para esgrimir o cerco unido dos adversários em 2 de outubro.

Mais que isso: terá em Marta Suplicy um contraponto desfrutável a atacar esse flanco com realizações agora apoiadas por quem sempre as combateu.

O detalhe não negligenciável é que Haddad resistiu, lutou e venceu a disputa contra austericidas fiscais incrustrados no governo federal.

Ao vencer credenciou-se para liderar um conjunto de reformas imperativas, ‘as reformas de base’ da São Paulo do século XXI, tendo preparado o arcabouço legal e cultural para isso.

Fazem parte desse arsenal o novo Plano Diretor da cidade; os corredores de ônibus; as ciclovias; a redução de velocidade que salvou 300 vidas em 2015 e reduziu em 10 mil o números de acidentados, bem como a reapropriação do espaço urbano pela cidadania, um exercício inteligente de progressivo deslocamento da hegemonia do carro no cotidiano e no imaginário da cidade.

Não é pouco considerando-se que vem aliado a uma prometida aceleração na entrega de vagas em creches, na inauguração de 20 ‘hospitais¬dia’, mais 10 hospitais móveis, 3 hospitais gerais, 16 UBS, 15 UPAs, CEUs, a duplicação de vias importantes e obras de drenagem...

‘Vou entregar mais do que qualquer prefeito que me antecedeu, em condições econômicas mais favoráveis’, afirma o prefeito, cobrado por jornalistas.

Não será suficiente, porém, nem se viabilizará de fato sem a contrapartida de uma ligadura histórica forte, que dê coerência, credibilidade e, sobretudo relevância a esses avanços na vida política local e nacional.

Insista-se: a candidatura Haddad não disputa apenas a prefeitura de São Paulo, mas um espaço de renascimento da agenda progressista no Brasil.

E a direita sabe disso. E sabe que precisa derrota-lo por isso.

É o poder na sociedade brasileira que está em jogo.

Sua marca, portanto, não pode ser outra exceto a redistribuição do poder político na cidade, como método e resposta à crise de identidade da própria esquerda, e resistência ao triturador instaurado pela desordem neoliberal na economia, nas referências políticas e na subjetividade social.

Não é uma panaceia. É uma disputa de poder para se ter o direito à cidade e à vida dentro dela.

Vale em ponto maior para o país e para o século 21.

Para o jogral político conservador a vontade da elite será sempre mais procedente que o discernimento popular.

Foi o que sempre norteou a vida de São Paulo, com os resultados sabidos: periferias conflagradas e classe média encapsulada no preconceito e no carro parado no trânsito.

Ser a referência de uma ruptura crível com esse cemitério da cidadania constitui a grande novidade de uma candidatura progressista empenhada, de fato, em enfrentar de maneira transparente os dilemas sociais, psicossociais, culturais, políticos e orçamentários de um adensamento urbano com mais de 12 milhões de habitantes, cerca de 6% da população do país.

Ao contrário do que apregoa o pré-candidato tucano, Dória Jr, não há ‘solução de mercado’ para os desafios contidos em uma cápsula de concreto desse calibre, permanentemente prestes a explodir.

Assim como a encruzilhada do desenvolvimento brasileiro não será superada por fórmulas fiscais rendetoras, mas sim por uma repactuação baseada em grandes acordos para emprego, salários, juros, inflação, tarifas e resultados fiscais, do mesmo modo, a luz no fim do túnel para São Paulo está na democratização das suas grandes decisões.

Haddad tem no amplo debate promovido em torno do Plano Diretor, na eleição de mais de mil representantes de bairros e no projeto de eleição direta dos sub-prefeitos das regionais, uma carteira que o credencia a ser a referência de uma nova forma de gerir São Paulo, em sintonia com a opinião de seus moradores.

Abrir canais para que moradores pobres e os da classe média possam debater problemas comuns e pactuar prioridades é a grande obra da democracia nunca antes tentada na cidade.

Difícil?

Todas as outras fracassaram.

As dimensões superlativas de São Paulo não podem ser evocadas como barreira à democratização do seu comando.

Trata-se de modular o timming das ações para discuti-las antes com a população. É um imperativo opcional à fascistização dos conflitos. Resta providenciar os meios organizativos e tecnológicos para isso.

Não estamos falando de um ponto remoto na galáxia onde se possa recomeçar do zero, mas sim de uma das maiores manchas urbanas do planeta marmorizada de desigualdade e recalques explosivos.

E da qual Fernando Haddad é o prefeito e o candidato.

As promessas do amanhã precisam provar sua pertinência agora.

Imediatamente já.

Por exemplo?

Por exemplo, negociando com os movimentos empenhados no transporte gratuito um referendo democrático para escrutinar o seu apoio e eventuais formas de financiamento.

Em entrevista recente ao jornal Valor, o prefeito informou que para atender as reivindicações do MPL, São Paulo teria de gastar R$ 8 bilhões por ano em subsídios.

Equivale à arrecadação anual de todo o IPTU recolhido em SP.

Ou quatro vezes o subsídio já oferecido (R$ 2 bilhões em 2015 para assegurar transporte gratuito a 530 mil estudantes e idosos).

O que é mais racional, levar esse debate a um escrutínio da cidadania ou transferir a sua mediação à conflagrações periódicas entre a polícia militar de Alckmin e os blacks blocs?

É só um exemplo do calibre das decisões cobradas pelo presente para o futuro da cidade, do país, da democracia e do desenvolvimento.

Confia-las aos métodos convencionais, ou às ‘soluções de mercado’ afundará São Paulo no destino que lhe reservou a elite brasileira branca e plutocrática.

Qual seja, ser um exemplo da viabilidade, replicável, de uma das mais iníquas versões do capitalismo no planeta.

Não é necessário dizer o destino correlato que esse projeto reserva às forças progressistas brasileiras.

Faltam nove meses para essa decisão.

A ver.

Um comentário:

edu disse...

O Prefeito Haddad é um sopro de ar fresco na poluição da política brasileira. Tem uma visão futurista e humana da cidade, seria uma perda inestimável para toda a esquerda brasileira ou quiçá latino americana a não reeleição de Fernando Haddad.