quinta-feira, janeiro 29, 2015

A liberdade como expressão do contraditório*

(Por Laerte Fedrigo**)

A Ciência Econômica concebe a economia como sendo o processo de transformação da natureza por meio do trabalho. Por esse caminho, o homem foi se distanciando dos outros animais. Em lugar de colher os frutos oferecidos pela natureza, ele passou a viver em função do trabalho, desenvolvendo características essencialmente humanas, a liberdade criativa e a liberdade de escolha, dando sentido à própria vida. Esse progresso implicou no aumento da capacidade produtiva da sociedade. Quanto mais complexas as ferramentas, maior o domínio do homem sobre a natureza e maior a produtividade do trabalho, o que resultou na geração de excedentes, apropriados por uma classe numericamente reduzida, consubstanciando, na história, os diferentes modos de produção: o modo escravista, o modo feudal e o modo capitalista.

Em cada tempo dessa história foi necessária uma ideologia que justificasse moralmente as contradições do sistema econômico. Para impedir a mobilidade social ascendente, a ética paternalista cristã, ideologia do feudalismo, condenou a usura e obrigou a prática do justo preço, práticas essas que viraram as virtudes do modo capitalista de produção. A burguesia operou esse milagre difundindo os ideais liberais, segundo os quais o indivíduo sabe o melhor destino a dar aos recursos e o faz sempre da forma mais eficiente, devendo, porquanto, ter a liberdade: a livre iniciativa. Nas entrelinhas do texto de Adam Smith, pai do liberalismo, fica evidente que o indivíduo seria o capitalista, que deveria ter a liberdade de explorar o outro, acumulando riquezas em proveito próprio. Como na concepção protestante os homens se justificam pela fé e não pelas boas ações, desde então o indivíduo acumula riquezas, explorando o outro, e no final de semana vai à igreja dar o testemunho da sua fé.

Graças aos impulsos individualistas, o capitalismo se desenvolveu de forma triunfante, mas banalizou a espécie humana. Da primeira revolução industrial à nanotecnologia; do capitalismo concorrencial ao capitalismo globalizado. Do obscurantismo, miramos o espaço; a medicina se renovou e a biogenética prolongou a vida. Não obstante, o capitalismo fragmentou o processo produtivo, extirpando a liberdade criativa dos homens e mulheres. Negando o processo histórico, a criação se tornou obra dos deuses e o trabalho, um movimento repetitivo, um fardo para o trabalhador que, desprovido da noção de totalidade, só se sente feliz nas suas funções animais, em detrimento das funções humanas. Do medo do inferno migramos para o tempo do capital fetiche. Nos padrões anteriores de desenvolvimento do capitalismo, a acumulação produzia, por dentro de suas contradições, iniciativas coletivas e libertárias de enfrentamento. À medida que se desenvolviam as forças produtivas, o movimento social se fortalecia em torno das associações, dos sindicatos e dos partidos. Entre tentativas e erros, abalamos o mundo em diferentes ocasiões. Numa era de extremos, enfrentamos impérios e ditaduras na América, na África, na Ásia e na Europa. No padrão sistêmico de riqueza do capitalismo contemporâneo, porém, as iniciativas são conservadoras, fragmentadas, individualizadas, fetichizadas. Projetar o futuro é um exercício que exige compromisso. Como tudo se modifica rapidamente, todos querem o agora, rápido, sem pesar consequências. Os sonhos se divorciaram e a perspectiva utópica foi prejudicada. A teologia da libertação deu lugar à missa aeróbica, à banalização do humano.

Como a liberdade criativa não pertence mais ao mundo dos homens, o que resta é a ilusão da liberdade de escolha. Se por um lado a apropriação da criatividade é cada vez mais privada, por outro, do ponto de vista do consumo, a sensação é a de que ela é cada vez mais democratizada. A cada instante uma nova tecnologia é apresentada e facilmente difundida para o deleite de homens e mulheres. Essa difusão do uso das novas tecnologias dá a sensação de participação direta nas decisões de poder. Neste contexto, podemos inserir, por exemplo, a primavera árabe. As escolhas, no entanto, deveriam ser resultantes das diferenças, mas o mercado não respeita as diferenças. O que prevalece é a ditadura do consumo. O marketing agressivo camufla a racionalidade dos mortais comuns, levando-os ao consumo por impulso. Apesar de conectados, estamos solitários, numa espécie de transe, onde o afeto se atrela à angústia e se expressa pela ira. O Iphone deixou de ser um desejo de consumo para ser transformado em objeto sexual: no ônibus, no trem ou na sala de aula, os gemidos chamam atenção. Em lugar de possuirmos as coisas, as coisas nos possuem.

Qual seria, então, a perspectiva utópica de futuro? Ao que parece, o tempo histórico da superação da sociedade do trabalho se avizinha. Na era do capitalismo globalizado, a reprodução ampliada do capital passou a se dar na sua forma mais abstrata, como capital financeiro. Mesmo quando passa por outras formas de mercadoria, a produção é cada vez mais intensiva em tecnologia, desdobrando-se na crescente substituição do trabalho presente pelo trabalho pretérito. Não estaria em curso a concepção de uma economia sem a necessidade do emprego de homens e mulheres, abrindo precedentes para a superação da condenação bíblica de se viver com o suor do próprio rosto? A classe trabalhadora estaria impedida de negar o sistema, mas a humanidade não estaria dando o grande salto para o reino da liberdade? Viver não é preciso, mas acreditar que é possível chegar ao paraíso é necessário. Que venha a Sociedade dos Homens Livres.
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* Publicado originalmente no Jornal Tribuna – SC.
**Laerte Fedrigo é mestre em economia política pela PUC/SP.