terça-feira, janeiro 28, 2014

Relatório D.C. - Desigualdade

Brasil Econômico

Rogerio Studart (rogerio.studart@brasileconomico.com.br)

Causou certa surpresa, em algumas pessoas, que a desigualdade tenha sido um tema central para Davos

Afinal, dirão alguns, cinicamente, a maioria dos que ali estavam até podem ter preocupações humanitárias com a pobreza e a privação da maioria da humanidade. Mas, por que, para eles, a desigualdade seria um tema tão crucial? O fato é que a desigualdade não é somente um problema ético, mas também pode ser uma ameaça à sustentabilidade de qualquer regime econômico e político. E, no momento em que todas as nações buscam reestabelecer o caminho do crescimento sustentado e da coesão social, o tema não poderia ser mais pertinente. Consideremos dois casos paradigmáticos: o dos Estados Unidos e o da China.

Nos Estados Unidos, nas duas décadas que precederam a crise de 2008, pelo menos três fatores contribuíram para a redução da igualdade. Por um lado, os 1% mais ricos se beneficiaram direta ou indiretamente de uma globalização liderada especialmente pelas finanças internacionais. Enquanto isso, a renda real dos mais pobres cresceu pouco, estagnando-se a partir do começo da década - um fenômeno associado, por um lado, à perda de dinâmica da demanda por trabalho, na medida em que grande parte da produção manufatureira se transfere (ou se "terceiriza") para a China; e, por outro, à retração de poder dos segmentos organizados da classe trabalhadora.

Já na China, assim como em outras economias em desenvolvimento em transição para o capitalismo, o enriquecimento acelerado dos novos empresários era tido como uma fase necessária do processo - algo similar à visão que prevaleceu no Brasil do milagre sobre a conveniência de esperar o bolo crescer para depois distribuir.

Nesses dois países, fenômeno do aumento da desigualdade não gerou conflitos ou perda de coesão social por pelo menos duas razões. Nos Estados Unidos, a expansão acelerada do acesso ao crédito, muito superior ao crescimento dos salários, não só permitiu a expansão do consumo de bens e serviços, como foi mesmo uma das razões centrais da bolha imobiliária - a qual, por sua vez, mantinha aquecida a demanda por empregos, mesmo que estes fossem de baixa qualificação e baixa remuneração.

Em suma, se os 40% mais pobres não estavam ganhando mais, o acesso ao crédito permitia um padrão de vida relativamente alto, ou estável. Na China, o acelerado crescimento do emprego, especialmente nas áreas urbanas, permitiu uma redução impressionante da pobreza absoluta. Some-se a isto o fato de o país possuir um regime de controle político (e econômico), e podemos entender como manteve-se uma certa tranquilidade social ao longo de um dos mais impressionantes processos de concentração de renda e riqueza.

A crise de 2008 mudou tudo isso. Para começar, gerou o desmonte do esquema de expansão do setor financeiro e iniciou um processo de retração do financiamento. Nos Estados Unidos, não fora a intervenção sem precedente do banco central americano, o Fed, esse processo teria gerado uma enorme deflação dos preços de ativos (especialmente no setor imobiliário), um crescimento muito rápido da inadimplência e uma quebradeira generalizada. Na China, por sua vez, o impacto da crise da demanda global só foi evitado por políticas contracíclicas igualmente ousadas, cujo foco central foi a elevação do investimento em infraestrutura e capacidade produtiva.

Neste momento da crise, a desigualdade volta a se tornar um tema central. Nos Estados Unidos, por um lado, a forte intervenção contracíclica não evitou o aumento do desemprego e a deterioração da remuneração paga aos setores do mercado de trabalho menos qualificados - e, portanto, um aumento da pobreza (sim, pobreza!) na maior economia do planeta.

A recuperação norte-americana recente tem se dado pelo aumento do investimento em novas fronteiras de energia e pela pequena recuperação do mercado imobiliário. Mas se isto é suficiente para dar novo folego, não basta para reduzir de forma significativa o desemprego estrutural, que por sua vez ameaça a recuperação - tendo em vista que o consumo continua sendo, de longe, o principal determinante da demanda agregada. Além disto, o aumento da desigualdade e o crescimento do desemprego entre jovens ameaçam o desempenho de longo prazo, já que os jovens (que hoje estão desempregados e sem treinamento) são evidentemente a principal fonte de produtividade e competividade desta economia no futuro.

Na China, já está evidente que não há muito mais espaço para manter o crescimento de dois dígitos simplesmente com políticas anticíclicas baseadas no investimento. Afinal, mesmo em um capitalismo de Estado, uma acumulação tão acelerada de capacidade produtiva, num ambiente de crescimento fraco da demanda global, gera desincentivos ao investimento. Essa talvez seja a principal razão econômica para o governo chinês estar procurando ampliar rapidamente o seu mercado doméstico. Para isso, a redução da desigualdade é fundamental.

Mas a China vive um dilema: parte da sua competitividade se calca nos salários relativamente baixos, e o aumento da produtividade do trabalho vai ser fundamental nessa transição para uma economia de consumo de massa. Sem dúvida isto explica o investimento que se está fazendo em inovação e treinamento da força de trabalho:

A redução da desigualdade é portanto essencial para a recuperação da economia desses dois países, e portanto da economia global. Mas também é fundamental para evitar tensões sociais, exacerbadas pela crise nos mercados de trabalho. E perda de estabilidade política, todos em Davos sabem, gera riscos significativos para o mundo dos negócios. Não por outra razão, no relatório produzido pelos organizadores de Davos sobre Riscos Globais (www.weforum.org/reports/global-risks-2014-report), o aumento do desemprego estrutural e o crescimento da desigualdade aparecem como, respectivamente, o segundo e o quarto entre os dez riscos mais preocupantes da atualidade.

Neste momento que o tema da desigualdade extrapola as considerações éticas e morais, por coincidência, o programa Bolsa Família comemora dez anos de existência. O Banco Mundial organiza aqui, em Washington, um seminário em torno do programa. Participará a atual ministra do desenvolvimento social e combate à fome, Teresa Campello, que fez parte do grupo de trabalho que desenhou o programa.

Ela nos enviou dados impressionantes (e comoventes) sobre o impacto do Bolsa Família que vão muito além da queda da desigualdade - por exemplo: a redução em 40% da mortalidade infantil entre 0 e 5 (20% atribuível ao programa); a queda de 37% de 2008 e 2012 da desigualdade educacional entre os estudantes 20% mais pobres e os demais; a redução em 58% de mortes por desnutrição, nos municípios com alta cobertura; e assim por diante.


Para o público do Banco Mundial bastariam esses dados para justificar o programa. Para o público de Davos, poderíamos lembrar seus efeitos sobre a demanda agregada e a vitalidade dos mercados de trabalho e de bens. Ambos os públicos sabem das dificuldades e desafios que temos pela frente, mas sabem que aprender com a nossa experiência é fundamental para curar um mundo cada mais injusto socialmente, e economicamente mais frágil e incerto.

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