sexta-feira, dezembro 13, 2013

Michelle Bachelet entre “os mercados” e o clamor das ruas

Frederico Füllgraf

de Santiago do Chile


A poucos dias do segundo turno das eleições presidenciais no Chile, ninguém mais, dentro e fora do país, duvida que Michelle Bachelet será a mandatária do país andino até 1º. de janeiro de 2018.

A direita, que em menos de um ano escalou três candidatos, dos quais dois renunciaram – o último deles, o pinochetista Pablo Longueira, afetado por grave crise de depressão – disputa o páreo com Evelyn Matthei, filha de um general que durante catorze anos integrou a ditadura Pinochet, e que nada fez para impedir a prisão e a morte de seu colega de farda, Brigadeiro Alberto Bachelet, pai da candidata de centro-esquerda, falecido nas masmorras da ditadura chilena em março de 1974. Indiferente à derrota que sua candidata sofrerá no próximo domingo, 15, Sebastián Piñera, dono de patrimônio avaliado em 2,5 bilhões de dólares, retorna aos seus negócios, distribuídos entre línhas aéreas, o clube de futebol Colo Colo, administradora de cartões de crédito e supermercados.

Para Evelyn Matthei o páreo se encerra em 15 de dezembro, já para a virtual Presidente Bachelet a arrumação do país começa no dia seguinte. Seus desafios são enormes: o Chile não apenas vive sob uma democracia amordaçada pelo legado pinochetista, com uma Constituição e leis ordinárias permeadas pelo estado de exceção, mas é também um país assimético, ultra-centralizado em Santiago, com notável dívida à diversidade e autonomia das províncias, e sobretudo um país imensamente desigual.

As 50 medidas dos primeiros 100 dias de governo

A duas semanas de assumir o poder, Bachelet terá que arrebatar a Sebastián Piñera e sua bancada direitista no Congresso, a garantia de disponiblidade orçamentária para financiar as primeiras 50 medidas que pretende implementar nos primeiros 100 dias de seu governo. A grosso modo, seu programa de governo, dilatado em quatro anos, está focado em três grandes eixos: as reformas tributária, do ensino e da Constituição. Contudo, um amplo leque de medidas emergencias tem por objetivo reduzir imediatamente parte da dívida social acumulada. Entre elas estão a entrega dos primeiros 500, de um total de 4.500 novos berçários em todo o Chile; a criação de duas novas universidades públicas regionais, uma delas na explosiva província de Aysén; convênios para criação das 5 primeiros escolas públicas regionais de Formação Técnica; implementação do Fundo Nacional de Medicamentos, conveniado com todas as municipalidades do país; contratação de 750 novos médicos especialistas para o sistema de saúde pública; projeto de lei que cria, a partir de 2014, o Aporte Familiar Permanente, subsídio de combate à pobreza no valor mensal de 40.000 Pesos (equivalente a R$ 175,00) que beneficiará 2,0 milhões de famílias; programa de Formação e Capacitação Profissional para aumentar a participação feminina no mercado de trabalho, beneficiando 300.000 mulheres, e assim por diante.

São medidas com sabor paliativo, poder-se-ia argumentar, porque a expectativa da maioria do eleitorado de Bachelet, situado à esquerda, é de que a Presidente dê mostra de vontade política para desmontar o arcabouço neoliberal inaugurado pela ditadura Pinochet, que catapultou o Chile ao topo das economias latino-americanas de maior crescimento nos últimos vinte anos, mas instalando-o também no ranking dos países socialmente mais desiguais, onde ocupa a nada invejável 6ª posição, um pouco atrás do Brasil.

“Neoliberalismo configurou corações e mentes”

Alberto Mayol, jovem sociólogo da Universidade do Chile e autor de “El derrumbe del modelo. La crisis de la economía de mercado en el Chile contemporáneo” (Editorial LOM), campeão de vendas em 2012, alerta que “a pobreza, efetivamente, é um assunto premente, mas a desigualdade é uma manifestação que não tem semelhança imediata com a pobreza, e no Chile nunca mereceu atenção do poder constituído”.

Comentando o alto índice de abstenção no primeiro turno da eleição presidencial, Mayol assinala que o país chega à disputa “com um ciclo de impugnação agudo, no qual são objetados os valores culturais dominantes e fundamentais desse modelo de sociedade”. Ter elegido em 2010 o bilionário Sebastián Piñera, foi para o sociólogo “o tirunfo cultural do lucro como suposta forma de sociabilidade e mecanismo político”, mas ao final do quatriênio de seu mandato, a percepção dos chilenos seria de que “o lucro é coisa de Satanás”, tamanha a indignação popular com a súbita riqueza e opulência de poucos e a exclusão social de muitos (leia também deste autor, “A face perversa do ´modelo chileno”). Por isso, segundo Mayol, confirmada a tendência de sua vitória no próximo domingo, Michelle Bachelet deveria governar com protagonistas do movimento social, como a comunista Camila Vallejo, ou o deputado da Esquerda Autônoma, Giorgio Jackson, ambos ex-líderes estudantis recém-eleitos deputados.

A rigor, antes de nada mais, a nova presidente deveria promover uma revolução espiritual e cultural, porque “o neoliberalismo não apenas semeou um modelo econômico e político, mas também configurou corações e mentes”, advertiu com pena áspera e doída, Cristian Zúñiga, na edição de 11 de novembro do jornal Clarin, chileno. Segundo o articulista, o senso comum no Chile contemporâneo está contaminado por uma concepção neo-conservadora da vida, onde o individualismo, a competição desenfreada e a violência são pão de cada dia.

Os mercados e os ministeriáveis de Bachelet

Essa subcultura do “quem pode mais, chora menos”, do “vale tudo” legado pelo pínochetismo, foi a marca da transição e impulsionou a formação desenfreada das novas grandes fortunas no país, por isso é motivo de preocupação de influentes pesquisadores e jornalistas chilenos, que suspeitam “mais do mesmo”: a continuação do “modelo” das desigualdades sociais.

É fato que, desde seu retorno ao Chile, no início de 2013, quando abdicou em Nova York ao cargo de Diretora Executiva do Programa ONU-Mulheres, Michelle Bachelet vem sendo assediada por representantes dos grandes grupos econômicos do país, tais como operadores do Grupo Luksic (com 17,4 bilhões de dólares, segundo o ranking Forbes 2013, a maior fortuna do Chile e uma das maiores das Américas), da ONG Paz Ciudadana, fundada por Agustín Edwards como forum conservador que discute e emite propostas da iniciativa privada no combate à criminalidade, e até mesmo personagens de comprometedora reputação política, como Alberto Kassis, membro do Conselho Protetor da Fundação Pinochet.

O assédio é articulado com jantares, encontros privados e declarações de apoio, e sinaliza duas intenções. Reconhecendo em Bachelet a candidatura potencialmente vitoriosa, o grande empresariado quer descolar sua imagem do pinochetismo, mas também exercer sua influência, recomendando “prudência” e “governabilidade”, vocabulário restritivo que já contamina o próprio discurso da candidata socialista.

Carregando nas tintas com o título “Los personajes del terror del nuevo comando de Bachelet”, em sua edição de 14/07/2013 o jornal esquerdista “El Ciudadano” advertiu para um think tank chamado Espacio Público, criado em 2012 por Eduardo Engel, economista e colunista dominical do jornal “La Tercera”, de propriedade do empresário atacadista de origem árabe, Alvaro Saieh, dono de um patrimônio de 3,0 bilhões de dólares (Forbes 2013) e, junto com o Grupo El Mercurio, controlador de 90% da imprensa escrita no Chile.

Na mesma linha, Ernesto Carmona, prestigiado articulista da velha guarda e autor de “Los duenõs de Chile” (Ed. La Huella, Santiago, 2002), assinalou na edição de 24/07/2013 do jornal “Clarin”, chileno, que o próprio comando programático de Bachelet era frequentado por “uma gama de veteranos habituados a atravessar com desenvoltura a porta giratória entre o ´serviço público´e os negócios privados. Os integrantes mais relevantes e de maior influência no time, têm como denominador comum levar em seu DNA a ideología neoliberal”. “No insigne trato editorial de seus jornais, “La Tercera” e “Pulso”, destinado ao setor empresarial, o apoio de Saieh a Bachelet é notório”, dizia Carmona.

O temível “engenheiro da previdência”

Talvez o personagem mais polêmico do comando programático da futura presidente socialista seja mesmo Alberto Arenas, ex-diretor executivo do Orçamento no primeiro governo de Bachelet, onde se desempenhou como artífice de uma reforma previdenciária que, segundo os analistas, não tocou nos interesses dos grandes grupos privados, depois do que Arenas mudou-se para a Grupo Luksic como diretor do Canal 13 de TV, de propriedade do grupo de origem croata.

Em seu ácido artigo de julho, o “El Ciudadano” recorda que “o militante comunista e dirigente estudantil, Alberto Arenas, depois de formar-se em engenharia comercial na Universidade de Chile, abandonou as camisetas com a estampa do Ché Guevara, afrouxou o punho cerrado e em 1991 assumiu a gerência de estudos do Banco Sud Americano. Dos anos depois, fez doutorado na Universidad de Pittsburgh, onde iniciou suas pesquisas sobre a reforma previdenciária realizada por Pinochet”.

Ligado ao senador Camilo Escalona, do Partido Socialista, agora Arenas está de volta como autor do projeto de reforma tributária de Bachelet, que pretende alocar 3% do PIB (aprox. 8,2 bilhões de dólares), extinguir o Fundo de Utilidades Tributáveis (FUT), aumentar o imposto de renda das empresas, de 20% para 25%, e baixar a alíquota máxima para pessos físicas de 40% para 35%.

Os 3% do PIB deverão financiar a reforma da educação, mas Arenas já advertiu em entrevistas que não se alimente ilusões e que tudo seja feito com “prudência”, “seriedade” e“responsabilidade”.

Desde o primeiro governo Bachelet transcorreram cinco anos, e até mesmo Joaquín Vial, ex-presidente do fundo privado de pensões Provida, admitiu em 2012 que 60% dos pensionistas afiliados aos fundos privados, que dominam 90% do “mercado de pensões”, recebem hoje uma aposentadoria abaixo de 150 mil Pesos (aprox. R$ 650) mensais. Segundo a OCDE (2012), em torno de 20% dos chilenos de terceira idade vivem na pobreza, superando a média dos países signatários, que é de 12,8%.

Resistir e impor-se à pressão dos mercados, manter-se fiel ao diálogo com as ruas - eis o maior desafio de Michelle Bachelet

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