terça-feira, outubro 22, 2013

Entrevista de Lula ao jornal El País

Em entrevista publicada neste domingo (20) pelo jornal espanhol El País, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva voltou a ressaltar a predominância da política como instrumento de conquistas sociais e superação de crises econômicas. Referindo-se aos protestos de junho no Brasil e à crise européia, Lula repetiu que tanto num caso como em outro “não há saída fora da política”.

Para ele, as manifestações de rua ocorridas há quatro meses foram “saudáveis”. Segundo ele, os 10 anos de conquistas dos governos do PT produziram uma sociedade que ‘descobriu que é possível querer mais”. Mas alertou: “Temos que louvar a participação democrática e não permitir que os jovens reneguem a política, porque quando isso acontece, o que vem é o fascismo. Queremos que os jovens discutam abertamente para que sintam que fora dela não há outro caminho”.

Na reportagem, o jornalista Jesús Ruiz Montilla afirma que Lula se converteu em “uma referência da esquerda global civilizada”.

Vou dizer que eu não preparei perguntas… Li páginas e páginas de sua vida e seis milagres e, salvo algo que queria dizer para iniciar a conversa, não trago nada a priori.

Nem eu preparei as respostas…

Começamos bem, então. Só uma coisa dá voltas em minha cabeça. Tanta universidade de prestígio para preparar líderes mundiais, tanto cérebro, muito estudo, para que venha alguém como você, sem qualquer título, formado na dureza das ruas e se convertendo num ícone mundial que quebra recordes.

Políticos devem entender um problema. Nas últimas três décadas, mas principalmente mais tarde, depois de um consenso entre Thatcher e Reagan, o mundo tornou-se governado por uma lógica muito burocrática, técnica, menos política. A economia começou a determinar a direção do governo, e não o inverso. Isso, na minha opinião, é um grande erro. Um grande político será capaz de montar uma boa equipe técnica. Mas se você é um bom técnico, talvez você não seja capaz de tomar boas decisões políticas.

Por quê? As universidades não formam prefeitos, governadores ou presidentes de países. Essa experiência se adquire na relação que você tem com as pessoas, com os grupos políticos com os quais você está comprometido, com sua capacidade de viver democraticamente na diversidade. Um técnico pode se sentar em uma mesa e elaborar um documento extraordinário, mas para um político, se ele não sabe comunicar esta proposta no momento certo para as pessoas certas, e se não conversa com as pessoas envolvidas na sua decisão, as coisas não se concretizam.

Em outras palavras, a política é uma boa combinação de…

Bons políticos precisam de bons técnicos. Tomemos o exemplo de Sebastián Piñera no Chile, um grande empresário que está descobrindo que o exercício do governo, lidar com opositores interesses diversos, é mais difícil tomar uma decisão para sua empresa. Quando você é apresentado a uma crise interna, você tende a buscar técnicos que a resolvam no lugar de políticos. Por exemplo, na Europa, na minha opinião, enfrenta uma situação que afeta o mundo inteiro por falta de decisão política, não econômica. Antes, quando as crises afetavam a Bolívia, o Brasil, o FMI sabia tudo. Por que agora não tem idéia de como resolver a situação?

Isso. Por quê?

Porque é um problema político. As decisões não foram tomadas na hora certa. No fundo se permitiu os mesmos ajustes que são feitos em países pobres. Espanha e Grécia, com suas rendas per capita, poderiam fazer ajustes de mais longo prazo, e não em tão curto, asfixiando a economia, com base em enormes sacrifícios e sem ter em conta o que vai custar às pessoas para se recuperarem.

Técnicos, com a sua lógica de negócios.

Os técnicos especialistas em salvar bancos!

Então, aqui estamos, olhando para a cena política. Porque essa arte deve unir sentido comum e paixão. É o que está faltando a vários técnicos?

Até o momento já foram usados quase 10 bilhões de dólares para resolver o problema da crise. Não conseguiram. Tampouco existem sinais claros no curto prazo. Com esse dinheiro, quanto não se poderia fazer para elevar o padrão de vida dos mais desfavorecidos. Na América Latina, na Europa, na África. Creio que se a política tivesse prevalecido sobre os aspectos técnicos e da burocracia, as pessoas sofreriam menos. No momento em que o mundo precisava de mais comércio, diminui; quando precisávamos de mais empregos, também caíram. E os banqueiros, até agora, ainda não pagaram a conta.



Mas com líderes que temos na Europa…

Devo ser justo, eu sou um grande defensor do que foi alcançado com a construção da Europa. Foi um esforço coletivo histórico. Mas a verdade é que as organizações que a dirigem são frágeis. Eu poderia citar uns quantos líderes capazes de estar no comando da comissão.

Vamos falar sobre isso.

Não posso.

Para quem não preparou respostas, alguém poderia pensar o contrário.

Não digo nomes porque é uma falta de respeito por parte um ex-presidente de um país; poderia ser considerado uma ingerência.

Um pouco de luz, de experiência, nada de ingerência.

Quando o Barcelona Quer ganhar do Real Madrid quer, sabe que tem que usar sua força toal, e vice-versa. Na política, em tempos difíceis, você deve reunir todas as pessoas relevantes para tomar decisões em comum: é preciso ouvir os sindicatos, empresários, especialistas, acadêmicos, sociedade civil e construir uma proposta que contemple a maioria dos representantes do país. Mas se está pensando do ponto de vista estritamente técnico. A impressão que tenho é que a chanceler Merkel assumiu um superpapel na União Europeia e todos dependem dela, vão atrás, quando são 28 países e Alemanha é quem determina seu comportamento, seus ajustes. E agora que ela foi reeleita, qual discurso faz?

Que tudo continue igual.

Trabalhar, controlar os gastos, ao invés de buscar soluções comuns, no âmbito político. Quem sofre na Espanha? Os banqueiros? Os grandes empresários? Não. Os jovens com expectativas de encontrar emprego, estes sim. Com isso, não quero dizer que eu tenho a solução para tudo, mas simplesmente que, sem discutir politicamente o problema, é mais complicado encontrar a saída. Muito mais difícil. Mais ainda num mundo que em que a economia está globalizada e as decisões políticas são tomadas em nível nacional. Precisamos de instituições multilaterais fortes para ajudar a cumprir as medidas. Não como o FMI, que vinha aqui todos os meses e nos dizia o que fazer. Até que a Europa não lhes prestasse atenção, não nos demos conta que não tinham importavam.

Eu o vejo em forma… Mas para quê? Aonde você quer chegar?

Quando uma pessoa completa 60 anos, e eu estou com 68, nossas expectativas futuras são menores. Quando eu tinha 18 anos, o mundo e a vida eram infinitos. Hoje, não. O tempo que me resta é muito mais curto do que aquele deixado para trás, mas não penso nisso o dia todo. Eu me cuido mais do que eu me cuidava.

Talvez a quantidade de tempo seja menor, mas você não desejaria que a qualidade fosse maior? Depois de derrotar a doença, o câncer, eu o vejo querendo voltar para a linha de frente.

Não, não, não. Só tenho vontade de sobreviver. Há algum tempo me operaram de um câncer e graças a Deus me recuperei e tenho trabalhado muito, eu diria que mais do que quando era presidente. (…) O que eu quero fazer realmente é tentar, através do meu instituto, é contribuir para o desenvolvimento na América Latina, na África, com experiências de sucesso que temos alcançado no Brasil, porque sim, é possível cuidar dos pobres, e eles não custam muito dinheiro. Se você lhes dá acesso a recursos, eles se tornam consumidores e aí a indústria produz, o comércio vende, se cria emprego, mais salários, e assim se forma um círculo virtuoso em que se produz, se consome, se estuda, existe acesso à cultura …

Um círculo virtuoso com o qual os jovens no Brasil não parecem satisfeitos. Daí os protestos?

Isso é importante. E damos muito valor. Estes protestos são saudáveis. Um povo com fome não tem vontade de lutar. Quando 40 milhões de pessoas passaram para a classe média, quando em 2007 havia 48 milhões de pessoas que podiam viajar de avião e em 2013 esse número subiu para 103 milhões, um país que produziu 1,5 milhões de carros e agora chega a 3,8 milhões…

Muitos, se olharmos para os engarrafamentos de trânsito aqui em São Paulo. Mais Metrô e menos carros não seria mal.

Um país que era a décima maior economia do mundo.

Vê como tem preparadas as respostas…?

Deixe-me concluir o raciocínio… E que em 2016 será a quinta maior economia do mundo, produziu uma sociedade que quer mais, é normal. A sociedade descobriu que é possível querer mais. Conseguimos em 10 anos passar de 3 milhões de graduados universitários para 7 milhões. Em 10 anos, conseguimos mais do que havíamos conseguidos em todo século 20, e isso desperta na sociedade o fato de querer mais. Temos que louvar a participação democrática e não permitir que os jovens reneguem a política, porque quando isso acontece, o que vem é o fascismo. Queremos que os jovens discutam abertamente para que sintam que fora dela não há outro caminho.

Tenha cuidado com tanto universitário, vão aparecer técnicos demais.

Precisamos de bons profissionais…

Isso sim. O que está claro é que Dilma Rousseff entendeu bem o grito das ruas, tem se mostrado sensível, mas você também tem sido crítico de certas atitudes de seu próprio partido. Não estão sabendo digerir a situação?

O Partido dos Trabalhadores completou 33 anos de vida. Quando se chega a isso, quem começou aos 35 anos deve dar vez a uma nova geração. Este é um partido que foi criado pelos trabalhadores e dirigido por eles, e se tornou o mais importante na esquerda da América Latina.

Você disse hoje “esquerda”, mas em alguns momentos deu a entender que não é.

Você me faz outra pergunta quando não terminei a resposta anterior… Eu digo que o PT é o mais importante da esquerda latino-americana.

Mas não uma esquerda clássica?

Nós o estamos construindo com a nossa própria experiência. O que eu digo é que era um pequeno partido que mais tarde se tornou grande, e como tal, foram aparecendo defeitos. Gente que valoriza muito Parlamento; outros, os cargos públicos…

Com um grande processo de corrupção no meio.

Também, mas quando esse acabar entramosem outro. Queriadizer que as pessoas tendem a esquecer os tempos difíceis em que achávamos bonito carregar pedras. Acreditávamos, era maravilhoso. Um grupo mais ideológico, a gente trabalhava de graça, de manhã, de tarde, de noite. Agora você faz uma campanha e todo mundo quer cobrar. Não quero voltar às origens, mas gostaria que não nos esquecêssemos de para quê fomos criados. Por que queríamos chegar ao governo? Não para fazer igual aos outros, mas para agir de forma diferente.

E para que valha a frase que você repete insistentemente e pela qual o criticam tanto: “Nunca antes na história do Brasil…”. Mas você dizia que, no processo de crescimento…

A corrupção aparece.

Os partidos são como os seres vivos? Vão se deteriorando?

O que eu digo aos companheiros é que só há uma maneira de não ser investigado neste país: não cometer erros. Duvido que exista no mundo um país com o número de auditorias que o Brasil tem. Noventa por cento das denúncias que aparecem são feitas pelo próprio governo. Nós contratamos policiais, reforçamos os serviços secretos, fortalecemos o controle das contas públicas… Quanto mais transparência, melhor. O que não se pode admitir é que, depois que uma pessoa passa por um processo e não se descobre nada, não se peça desculpas. Por isso que eu me preocupo com essas condenações a priori. No caso dos companheiros do PT, já foram previamente condenados. Alguns meios de comunicação fizeram isso, independentemente do julgamento, incluindo prisão perpétua. Alguns nem podem sair na rua. Eu insisto: temos de ser 150% corretos, porque se estamos errados em 1%, aos olhos dos nossos adversários e alguns meios de comunicação, elevarão a uns 1,000%. Às vezes me queixo, mas acho bom que nos controlem. Muitas vezes nos criticam pelo que temos de bom. Como uma árvore, se separa a que não dá bons frutos.

Esta sua tolerância com os meios de comunicação que o atacam não poderia ser transferida a colegas seus da esquerda latino-americana que preferem fechá-los? Correa no Equador, Maduro na Venezuela, Cristina Fernández na Argentina…

Eu sou um democrata. Defendo a liberdade de imprensa. Sou o resultado disso. Nunca a imprensa brasileira falou bem de mim, mas nunca me importei. Nunca pedi favores, nem peço. Quem julga a imprensa são os leitores, o público. Mas em alguns países latino-americanos devemos adaptar as leis aos tempos que vivemos. No Brasil, existem nove famílias que controlam os meios de comunicação, o que mudou um pouco esse panorama foi a Internet. Não se trata de entrar em conteúdos, obviamente, mas sim democratizar, ampliar o acesso.

Você vai se candidatar em 2014?

Não. Eu tenho minha candidata, que é Dilma, e eu vou trabalhar para ela.

Imagine-se voltando e o panorama que se encontra agora. O que mudou na América Latina nas últimas décadas! Até que a Teologia da Libertação entrou no Vaticano de mãos com o papa Francisco. Que coisas!

Ninguém imaginava que na América Latina se produziriam tantas mudanças em tão pouco tempo. Mas isso aumenta a nossa responsabilidade. Quanto mais importante você é, mais obrigações deve assumir.

Verdade.

Voltando à Europa. Qualquer líder que está na oposição sabe as mudanças que devem ser aplicadas ao chegar ao cargo. Hollande, por exemplo, sabia durante a campanha.

Mas parece ter esquecido em alguns aspectos.

Tive uma conversa extraordinária com ele. Eu sou um amigo dele de antes. E lhe disse: você não pode esquecer o seu discurso ao se tornar presidente. Pegue suas propostas, marque-as, coloque-as na cabeceira da cama e não se esqueça nunca de por que te elegeram. A Obama comentei: você tem que limitar-se a mostrar a mesma coragem que mostrou o povo americano ao te eleger presidente.

Alguns podem pensar que tal conselho seriam bem vindos a você quando se tornou presidente e teve uma crise de pragmatismo.

Não, não, não. Tenho sido um político humilde. No meu discurso de posse eu formulei três coisas que mantive em todo meu mandato: primeira, fazer o necessário; depois, o possível; e, por último, quando menos esperamos, estaremos fazendo o impossível. Se ao final consegui que os brasileiros se levantassem e tomassem café, almoçassem e jantassem, cumpri a missão da minha vida.

A utopia possível? Sem nenhum problema?

Fizemos mais do que isso, ao definir o que queríamos.

Vejo o sonho de uma criança comendo pão pela primeira vez quando tinha sete anos. Isso me contaram.

Foi sim.

Como era essa criança?

Uma criança que foi criada por uma mãe que nasceu e morreu sem saber escrever a letra O.

Mas que suponho saber muitas outras coisas.

Como criar oito filhos ensinando-nos a ser perseverantes e a não se queixarem muito, mas sim que poderíamos conseguir cada vez mais. Quando as pessoas estão determinadas a fazer algo, elas fazem. O problema é que é mais fácil se acomodar. Na liturgia de um cargo, por exemplo, você se acomoda. Você se mata para ganhar uma eleição e entra em cerimonial que nem te ouve, cercado por uma equipe de segurança que informa quando, onde e que horas deve ir aos lugares. Pessoas nem sequer votaramem você… Cadagesto é determinado pela lógica da liturgia. Se você entrar nessa, não fará prometeu em campanha.

Como, por exemplo, colocar smoking no Palácio Real de Madrid?

Estava indo para uma recepção diante do Rei e me disseram que tinha de ir vestido assim, mas eu disse que me apresentaria com minha roupa normal porque eu não usava isso. Da mesma maneira, não se pode pedir a um líder africano que vista gravata ou ao rei Juan Carlos que colocou um turbante. Ele gostou, sempre me tratou muito bem. (…) Parece que tudo está escrito. Sei que às vezes essas regras são necessárias, mas não tanto. Marca uma estrutura de poder que sobrevive graças a isso.

Jamais se acostumou?

Não, e havia muitas pessoas que se aborrecia comigo porque eu não cumpria muitas coisas, mas eu me portava bem. Não saía para jantar, não passeava em museus para que a imprensa não dissesse que eu estava fazendo turismo… Valeu a pena.

O homem, um museu nunca é demais.

Sim, mas a imprensa diria de tudo.

Salvo o protocolo, existe algo do cargo que sinta falta?

Sou um homem de muitos relacionamentos. Gosto de política e eu gosto de pessoas. Manter boas relações com os governantes, tento estabelecer intimidade para quebrar essa distância, sempre fui de dar abraços, tenho saudades das amizades que fiz naqueles dias. Eu continuo viajando muito, falando mais… Mas pouco mais.

O que acontece? Há presidentes que não param de interferir em tudo.

Teria de perguntar a Dilma. Eu tomei a decisão de me afastar, viajei muito, depois veio a doença. Agora estou de volta, evito dar entrevistas, mas me sinto bem. Me orgulho de tudo que fiz na vida. Cumpri algo sonhava fazer. Muitas pessoas duvidaram que eu seria capaz de governar sem um diploma universitário, mas respondia que eu queria fazer para provar que ele era capaz de realizar muito mais do que eles.

Para a vida, estava preparado, e, portanto, para a política real, muito mais.

Sim, mas havia muitos preconceitos porque eu não falava Inglês ou Espanhol e, no entanto, o Brasil nunca teve uma política externa como na nossa época.

E sem bomba atômica. Embora você quisesse fortalecer seu país militarmente.

Por quê?

Não, nem tanto, o que acontece é que o Brasil deve ter forças armadas dignas de sua grandeza. Devemos proteger nossos campos de petróleo, nossa floresta, nosso fronteira oceânica e terrestre. Se formou um conselho de defesa para promover uma unidade militar como existe na política. Mas sem armas nucleares. A nossa Constituição proíbe a proliferação de armas nucleares. Não foi o Lula, é a Constituição. Somos pacifistas. Nós gostamos de política, samba, carnaval, mas não de bomba atômica.

Para ler o original em espanhol, clique aqui: http://elpais.com/elpais/2013/10/18/eps/1382107992_999726.html

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