quarta-feira, setembro 04, 2013

A Síria que os EUA querem destruir

Ataque com armas químicas foi forjado para dar pretexto à agressão, quando o Exército recupera terreno e acumula vitórias.

Pedro Porfírio em seu blog

“O que me move a escrever é o fato de que muito em breve irão ocorrer acontecimentos graves. Não transcorre em nossa época dez ou quinze anos sem que nossa espécie corra perigos reais de extinção. Nem Obama nem ninguém pode garantir outra coisa; digo isso por uma questão de realismo, já que só a verdade nos poderia oferecer um pouco mais de bem-estar e um sopro de esperança. Chegamos na fase da maior idade em relação a nossos conhecimentos. Não temos direitos de enganar nem de nos enganarmos.”

Fidel Castro, Cuba Debate, 27 de agosto de 2013

Confesso que o artigo do líder cubano de 87 anos me fez suar frio. Conheço Fidel desde os tempos da Sierra Maestra. E conheci a Síria em 2002, embora seja um estudioso do mundo árabe desde a década de 1960.

De início diria que é profundamente lamentável o que vem acontecendo em toda aquela região, com o sacrifício de milhares de vidas. O povo árabe, ao contrário da imagem disseminada por uma mídia desonesta, é um povo de paz.

Se tivesse alguns anos de paz, esse povo hospitaleiro estaria usufruindo de um progresso invejável. Quando percorri alguns países lá, em companhia do então colega de Câmara, Rubens Andrade, vi o quanto é precioso para aquela gente poder desenvolver-se num ambiente de tranquilidade: a Síria era um mostruário desse potencial, registrando, então, um crescimento econômico em torno do 8% ao ano e apresentando índices surpreendentes de convívio democrático e religioso.

Naquele ano, lembro, o prefeito de Damasco era cristão e alguns cristãos participavam do governo. Também não se falava de grandes diferenças políticas entre os segmentos islâmicos.

A mística do Partido Baath Árabe Socialista, formalmente laico, preponderava à frente de uma coalizão de nove partidos, entre os quais dois comunistas e alguns tradicionais e regionais. Vi e conversei com autoridades que não consideravam relevante o fato de ser da maioria sunita ou das minorias alauitas e drusas, pilares do islamismo na Síria. Ali as tradicionais diferenças de origem tribal também pareciam superadas.

Curiosamente, a grande divergência que existia era entre a facção síria do Partido Baath, mais à esquerda, e a do Iraque de Sadam Hussein, mais conservadora.

Uma cidade onde se fala aramaico

Visitei a cidade montanhosa de Malula, uma comunidade católica, onde a Igreja Ortodoxa Síria tem um seminário e onde se conserva até hoje o aramaico, a língua falada por Jesus Cristo pelo povo da Judeia há dois mil anos atrás.Com seus quase 20 milhões de habitantes, a Síria sempre foi o país árabe de maior conhecimento político e melhores índices culturais, que teve papel de liderança nas resistências contra o domínio da Turquia e da França.

A guerra civil de hoje tem origem fora do país e faz parte do pacote de intervenções estrangeiras na região do mundo mais rica em petróleo, cuja marca mais gritante foi a derrubada e morte de Kadafi, na Líbia, em outubro de 2011.

Aliados fortes e determinados

É uma conspiração insana que acontece por coincidência diante de acidentes graves com outras fontes de energia, especialmente a nuclear, que levou a Alemanha a fechar todas as suas usinas. Por pelo menos 60 anos o mundo ainda vai depender desesperadamente do petróleo. E muito do petróleo do Oriente Médio.

Só que o cenário hoje é totalmente diferente do que permitiu a intervenção na Líbia. O Irã se considera o alvo imediato de um eventual bombardeio à Síria e dispõe hoje de Forças Armadas bem treinadas com um efetivo de 2 milhões.

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Allaeddine Boroujerdi
No mesmo sábado em que Obama anunciaria o ataque à Síria uma delegação parlamentar iraniana foi a Damasco reafirmar seus compromissos com o governo de Assad. Nessa visita, o chefe da missão, Allaeddine Boroujerdi, declarou que seu país havia alertado oficialmente aos Estados Unidos, em 2012, que os rebeldes sírios tinham armas químicas.

Em entrevista coletiva, Boroujerdi exortou o governo dos EUA a “avançar pelo caminho da solução política na Síria e não brincar com o fogo”. E foi bastante enfático: “se for desencadeada uma guerra, ela ultrapassará as fronteiras da Síria e incendiará todo o Oriente Médio”.

Rússia ameaça ataque à Arábia Saudita

A Rússia, por sua vez, enviou uma flotilha, liderada pelo contratorpedeiro Almirante Chabanenko, com destino ao porto sírio de Tartús (foto abaixo).

Um memorando classificado como urgente, segundo fontes militares russas, foi expedido pelo Gabinete do presidente Vladmir Putin, na quarta-feira, ordenando um ataque imediato da Rússia contra a Arábia Saudita caso forças ocidentais (por enquanto só EUA) ataquem a Síria. A informação conteria instruções semelhantes a uma ordem de guerra, expedida há cerca de um mês pelo regime saudita, na qual teria declarado que, caso a Rússia não aceitasse o bombardeio, os sauditas iriam arregimentar militantes na Chechênia para “aterrorizar” os 22º Jogos Olímpicos de Inverno que a Rússia realizará na cidade de Sóchi.

A Rússia tem interesse direto ao posicionar-me militarmente ao lado da Síria. Isto por que Arábia Saudita, principal aliada do Ocidente no mundo árabe, está bancando as forças insurgentes por que pretende atravessar o território sírio com o seu gasoduto com destino ao mercado europeu, já servido pelos russos, por enquanto, com exclusividade.

China já importa mais petróleo do que EUA

O mais irônico nesse cenário é a posição da China, que há alguns anos vem estreitando relações comerciais com a Arábia Saudita e os demais países reunidas no Conselho de Cooperação do Golfo – clube de seis ricas monarquias do Golfo Pérsico – Arábia Saudita, Qatar, Omã, Kuwait, Bahrain e os Emirados Árabes Unidos, responsáveis por 25% da produção global de petróleo.

Desde 2011, a China importa mais petróleo da Arábia Saudita do que os Estados Unidos. E a projeção é de que em 2025 essas importações sejam três vezes maiores do que as do império. Enquanto a China vende produtos de bens duráveis, os EUA capricham em negócios bélicos.

O que os chineses mais temem é uma guerra que eleve os preços do petróleo e crie embaraços para seus projetos no Oriente Médio. A China também compra petróleo do Irã e paga em sua própria moeda, o Yuan, desprezando a intermediação do dólar. Com os sauditas ainda tem dólar no caminho.

Em outubro de 2011, Washington fechou vendas de armas de US$67 bilhões – o maior negócio bilateral na história dos EUA – para abastecer a Arábia Saudita com monumental coleção de jatos modelos F-15s, Black Hawks, Apaches, bombas explode-bunker, mísseis Patriot-2 e navios de guerra último tipo.

Arsenais de artilharia e infantaria incluídos no pacote abastecem a heterogênea coalizão oposicionista na Síria, da qual fazem parte desde alguns homens de confiança dos EUA, como o xeque Ahmed Moaz Al-Khanaib, presidente da Coalizão Nacional Síria, baseada no Egito, até terroristas da Al Qaeda, sob a liderança de Abu Mohammad al-Golani, da Frente al Nusra, um grupo que monta seus próprios foguetes e que estaria de posse de armas químicas, em conexão com a CIA, embora os Estados Unidos o rejeite em público.

Casa Branca sem apoio brinca com fogo

Finalmente, vale lembrar a disposição de luta das forças militares fiéis ao governo Bashar al-Assad, que têm conseguido avançar sobre os redutos rebeldes e vem colecionando vitórias recentemente, o que levou os Estados Unidos a assumir publicamente o que já fazia por baixo dos panos.

Essa história de armas químicas usadas pelo Exército sírio é mero pretexto e muitos especialistas militares consideram que é mais fácil que tenham sido usadas por terroristas, numa farsa para justificar a ação militar norte-americana.

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A revista Time relata repúdio aos EUA em mais uma guerra.
Pela primeira vez, a Casa Branca está sozinha tanto a nível externo como em relação ao público interno. Os bombardeios seriam mais uma jogada de grana, a serviço da indústria bélica e, curiosamente, a maioria dos republicanos (Sempre belicistas) se juntou a alguns democratas no Congresso na oposição a uma intervenção militar direta dos EUA na Síria.

A revista Time publicou matéria de capa dizendo que Barack Obama foi eleito para tirar os EUA das guerras e não para envolver-se em novos conflitos. No texto, afirma que em todas as pesquisas o povo norte-americano se manifestou contra a intervenção na Síria, o que cria uma saia justa para os congressistas. A última, divulgada sexta-feira pela Reuters/Ipsos, aponta 53% contra a ação militar e 20% a favor. Os demais disseram não ter opinião.

No plano externo, o parlamento da Grã-Bretanha, principal aliada no Afeganistão, votou contra sua participação na aventura. Já na França, apesar da estranha posição beligerante do desgastado presidente “socialista” François Hollande, as enquetes divulgadas neste sábado, 31 de agosto, não deixam dúvida:

Uma pesquisa da BVA publicada pelo Le Parisien-Aujourd’hui na França, mostrou que 64% da população se opõem a uma ação militar, 58% não confiam em Hollande para conduzir a ação, e 35% temem que isso possa “colocar toda a região (do Oriente Médio) em chamas”.

A impressão que o secretário de Estado John Kerry passa é que já foi tudo acertado com a indústria bélica e com o American Israel Public Affairs Committee, que, segundo a revista Time, está cabalando apoio entre os congressistas para a agressão.Obama estaria disposto a bombardear a Síria mesmo sem apoio do Congresso e contra a posição do Conselho de Segurança da ONU. E só não ordenou o ataque no sábado por que quer saber até onde Irã e Rússia podem chegar na defesa do aliado.

Se de fato esse crime se consumar será uma violência contra a história. A bela Damasco – “Cidade do Jasmim” – que já sofre com ações tipicamente terroristas, é a mais antiga do mundo, com seus 10 mil anos de existência e um patrimônio inesgotável.

Tantos anos não podem ser destruídos por império que não pode passar sem uma guerra… na terra dos outros.

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