segunda-feira, março 11, 2013

Samuel Pinheiro Guimarães: “Dilma e Cristina devem erguer muro contra golpistas”



Samuel Pinheiro Guimarães: Juntas, Dilma e Cristina podem influir poderosamente. Foto: José Cruz/ Agência Brasil

À Carta Maior, o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães fala sobre as incertezas políticas no continente após a morte de Hugo Chávez. Para ele, Brasil e Argentina desempenharão papel fundamental nesse processo. É importante que esses países estejam vigilantes, desestimulando eventuais movimentos golpistas. Por Dario Pignotti.

Dario Pignotti – @DarioPignotti, em Carta Maior

Brasília – Hugo Chávez citava frequentemente Samuel Pinheiro Guimarães para defender a aliança vital com o Brasil ou repudiar as tentativas de anexação por parte dos Estados Unidos sob o manto da Alca.

Chávez conhecia os bastidores do Itamaraty e quando citava Samuel talvez procurasse fortalecê-lo frente àqueles que tentavam afastá-lo da secretaria geral da Chancelaria para restabelecer a diplomacia do Consenso de Washington. O diplomata também foi mencionado pela embaixada dos EUA para quem ele é um “antiamericano virulento”, segundo documento divulgado pelo Wikileaks.

A morte de Chávez, mas sobretudo a tensão estratégica entre Venezuela e Estados Unidos, e o “muro” que Dilma e Cristina Kirchner estariam formando para abortar tentativas golpistas contra Nicolás Maduro foram os temas tratados pelo diplomata nesta enciclopédica entrevista à Carta Maior.

Carta Maior – Washington considerou absurda a suspeita de que Chávez tenha morrido vítima de uma enfermidade inoculada. Certamente a hipótese soa algo exagerada, mas você a descartaria por completo?

Samuel Pinheiro Guimarães – Não estou em condições de falar sobre o que ocorreu concretamente, mas o presidente Maduro falou do tema, segundo ouvi, e prometeu investigar. Ele deve saber porque disse isso e, se houver alguma desconfiança por parte do governo venezuelano, este pode adotar a decisão que lhe pareça mais conveniente. Os estados têm soberania para decidir o que fazer.

Os que colocaram em dúvida o que causou a morte de Arafat (suposto assassinato com substâncias radioativas) foram desqualificados em 2004, quando ele morreu. Passados alguns anos, isso que parecia um absurdo hoje não é mais e os que foram ridicularizados não estavam tão equivocados. O passar do tempo às vezes acaba revelando algumas coisas. Que se investigue.

CM – Maduro falou de um plano sedicioso com participação estadunidense… O jornalista Kennedy Alencar informou que Dilma e Cristina se articulam para frear eventuais golpistas…

SPG – Não tenho informação, mas imagino que haja uma grande preocupação por parte das presidentas para que não haja um golpe de Estado. Isso sempre pode ocorrer, como em 2002. De repente veio o golpe. Um golpe se articula discretamente. Estão corretas em se preocupar se têm informações. Mas creio que isso seja difícil no curto prazo. No médio ou longo prazo, aí já não sei. É importante que Brasil e Argentina estejam vigilantes.

Desestimular eventuais movimentos golpistas é importante. Juntas, elas podem influir poderosamente. O apoio delas ao governo democrático é necessário. Igualmente acredito que a transição para as eleições está assegurada. Haverá estabilidade no curto prazo, o problema é o longo prazo.

CM – Se tiveram coragem de tentar um golpe contra Chávez, porque não tentariam de novo agora, sem ele?

SPG – Claro, isso é lógico. É preciso levar em conta que a sociedade venezuelana está fraturada, os programas sociais levaram à conscientização das massas e, ao mesmo tempo, provocaram uma reação das classes alta e média alta. As minorias sabem que pelas urnas é difícil chegar ao poder e aparece aí a tentação permanente de fazê-lo por fora das urnas.

Não sei com certeza se há setores militares fortes com planos golpistas, mas se há militares que não gostam do chavismo isso não me surpreenderia. Isso ocorre com todas as elites. Por isso, considero importante que existam milícias populares dispostas a defender o governo para compensar o poder dos militares.

CM – O novo secretário de Estado, John Kerry, se veste de pomba. Será ele menos hostil do que Hillary?

SPG – Parece-me quase impossível ser mais hostil que Hillary, mas a política externa dos EUA transcende a característica pessoal de seus funcionários. Há um princípio permanente que é castigar, ainda que muitos anos depois, os países que não se enquadram nos desígnios de Washington. Quando algum país não obedece a esse enquadramento, e a Venezuela fez isso, será vítima de uma política que eu chamaria de vingativa. Lembro quando Bush invadiu o Iraque por muitas coisas. Para ele, havia um sentimento pessoal. Bush chegou a dizer que Saddam quis matar seu pai. O mesmo ocorre com o Irã, porque eles invadiram a embaixada e, pior, os iranianos tiveram a audácia de dar os nomes dos informantes iranianos que trabalhavam com a CIA. Isso Washington nunca perdoou. O mesmo se aplica à Venezuela. Creio que Washington nunca perdoará as atitudes de Chávez.

CM – Soberania equivale à irreverência…

SPG – A Venezuela foi uma província petroleira dos EUA durante décadas. Na II Guerra, foi a maior fornecedora de petróleo dos aliados. Tudo isso deu origem a uma classe dominante muito ligada ao negócio petroleiro e a Washington. Colômbia e Venezuela são fundamentais para o sistema norte-americano, no Mediterrâneo americano. Chávez acabou com tudo isso. Deu as costas aos Estados Unidos e se voltou ao Brasil, ingressou no Mercosul e rechaçou a ALCA. Isso, para os EUA, é imperdoável.

CM – Para a direita, o chavismo morrerá com ele.

SPG – A dimensão de Chávez foi imensa, mas não considero adequado dizer que tudo era fruto do carisma dele. Um autor alemão que viveu nos EUA dizia que as pessoas não chegavam ao poder porque têm carisma, o poder é que lhes dá carisma. Quando Chávez chegou ao poder em 1999, não tinha a grande dimensão internacional que chegou a ter, na medida em que foi desenvolvendo seu projeto. Agora, é preciso ver como Maduro amadurece (risos).

CM – O cesarismo, talvez inevitável, do modelo bolivariano agrava o vazio causado pela morte do líder?

SPG – Os meios de comunicação dão muito valor à atuação do presidente ou do primeiro ministro, supervalorizam a pessoa, como se ela fosse imprescindível. É falso. Ninguém governa sozinho, governa-se porque se representa um conjunto de setores. Isso ocorre nas democracias liberais e nas ditaduras. Portanto, é um equívoco achar que o chavismo é só a presença de Chávez e não ver que esse fenômeno teve um respaldo enorme dos setores populares.

Dizer que Chávez era tudo foi mentira desses meios, que também inventaram que a revolução não é democrática. Na Venezuela de Chávez, houve mais eleições que aqui no Brasil, como Lula observou. Não há notícias de jornalistas ou opositores presos. Se houvesse, seria notícia permanente. Essa imprensa criou a fantasia de que a revolução é um sistema baseado numa pessoa e isso é falso.

CM – A longa agonia de Chávez permitiu que Maduro se afiançasse como seu sucessor?

SPG – Espero que sim. Não é fácil saber qual será sua habilidade para manter dentro do projeto os setores populares, partidos e forças armadas.

CM – Sendo Alto Representante do Mercosul (até julho de 2012), você pode conversar em profundidade com Chávez?

SPG – Com Chávez, falei poucas vezes. Ele citava constantemente um livro meu que ele considerava muito importante.

CM – Parece estar em marcha um ataque preventivo contra Maduro, quando os conservadores anunciam que deverá haver um “inevitável” ajuste do gasto público.

SPG – A mídia internacional e os organismos financeiros internacionais repetem em coro que é preciso fazer um ajuste, controlar a inflação ou então virá uma catástrofe. Tudo isso é falso. Basta olhar para os EUA onde nunca se fala disso e onde há déficits comerciais e fiscais absurdos. Lá não se pede isso, aqui sim. É uma religião disfarçada de discurso econômico global onde toda a política social é chamada de populismo. No Brasil, falam do lulopetismo.

CM – As políticas sociais destes 14 anos de Chávez são conquistas irreversíveis?

SPG – Não creio. No Chile havia um processo avançado e, com o golpe de 73, retrocedeu até na reforma agrária. Na Argentina ocorreu o mesmo com o golpe de 1976. Se a direita volta é para retomar o poder e terminar com as políticas públicas, com a redistribuição de renda. Tudo começa com as campanhas nos meios de comunicação, dizendo que chegou a modernidade, que está tudo melhor, que o populismo está dizendo adeus.

Na Venezuela, esse discurso pode começar a ser utilizado com a volta das classes abastadas, para desqualificar os programas de saúde, os gastos do Estado com alfabetização, para retirar recursos da Universidade das Forças Armadas, das missões (programas sociais do governo).

Capriles (principal opositor nas eleições de outubro de 2012) teve mais de 40% dos votos. Esses votos não são só das elites. Há pessoas pobres beneficiadas pelos programas sociais que são ideologicamente conservadoras. Eu creio que essas conquistas não possam ser entendidas como irreversíveis. Por isso as classes dominantes querem voltar ao governo, para reverter esses avanços.

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