domingo, março 31, 2013

1964 - 40 ANOS DO GOLPE - 1964


Da Folha de São Paulo

Coronel da aeronáutica que sobrevoou tropa do general golpista foi cassado pelo AI-1

Aviador teve oportunidade de atrasar ou abortar golpe
RICARDO BONALUME NETO
DA REPORTAGEM LOCAL

O aviador Rui Moreira Lima, 84, veterano de combate da Segunda Guerra Mundial, poderia ter atrasado ou mesmo abortado o golpe em 31 de março de 1964 se em vez de um pacato avião civil estivesse usando um dos caças-bombardeiros aos quais estava habituado.

Moreira Lima sobrevoou no dia 31 as tropas que o general Olympio Mourão Filho trazia de Minas Gerais para o Rio, o estopim do movimento militar. A coluna quase debandou quando Moreira Lima a sobrevoou, e talvez tivesse abandonado o general se fosse alvo de balas e bombas.

Mas ele não recebeu ordem para fazê-lo e portanto não o fez. Pois se algo define esse piloto que cumpriu 94 missões de combate na Itália em 1944-45 é o seu apego pela legalidade.

Em outro 31 de março, o de 1939, seu pai, o juiz Bento Moreira Lima, enviou uma carta ao então cadete da academia militar de Realengo, enfatizando o papel de um soldado honrado. "O povo desarmado merece o respeito das Forças Armadas", disse; "o soldado não conspira contra as instituições pelas quais jurou fidelidade".
Fiel a esses princípios, Moreira Lima, maranhense de Colinas, foi cassado e proibido de voar. Autor de um livro clássico da literatura militar brasileira, "Senta a Pua", sobre o 1º Grupo de Caça na campanha da Itália, com a redemocratização Moreira Lima tornou-se major-brigadeiro da reserva, e hoje é uma figura reverenciada pelos aviadores da Força Aérea Brasileira (FAB).

Ele concedeu entrevista à Folha na sexta-feira passada, um dia ao mesmo tempo triste e feliz. Triste, pois um colega veterano tinha morrido, Fortunato Câmara de Oliveira, o piloto que criou o distintivo de um avestruz belicoso ainda usado pelo Grupo de Caça. E feliz, pois no mesmo dia ganhou mais um bisneto. A seguir, trechos da entrevista.


Folha - O que o senhor fazia e que posto tinha na FAB em março 1964?

Rui Moreira Lima - Era coronel-aviador e comandante da Base Aérea de Santa Cruz, que tinha três unidades sediadas: 1º Grupo de Aviação de Caça, 1º Grupo de Aviação Embarcada e o 1º Esquadrão de Controle e Alarme, que era baseado em um velho radar que nós trouxemos da Itália. Estava fazendo um curso na Alemanha em 1963 quando recebi o convite para comandar a base. Os colegas me disseram: não vem, porque lá todo mundo é contra o Jango Goulart. A mídia toda massacrava o Jango. Os oficiais todos estavam imbuídos daquele espírito de que o comunismo ia tomar conta do Brasil. Eu já tinha curso de estado-maior, curso superior de comando, estava na hora de pegar um grande comando. Se eu não conseguisse comandar Santa Cruz, pedia passagem pra reserva e ia pra casa.

Folha - E teve dificuldade comandando a base? E em 31 de março?

Moreira Lima - Tive, mas não de indisciplina. Foi a única base que passou o comando em forma, ao regulamento da Aeronáutica, não escorraçado, de madrugada, como vários outros. Fui o único oficial das três Forças Armadas que foi preso por telefone, não aceitei que viesse uma patrulha na minha casa me prender. Disse isso ao brigadeiro Melo, que assinou minha cassação.

Folha - Sua cassação aconteceu quando?

Moreira Lima - Foi no Ato Institucional número 1, de 9 de abril.

Folha - E qual o motivo?

Moreira Lima - Eu era suspeito de ser subversivo. Fui preso a primeira vez, fui preso uma segunda vez -quando passei 106 dias preso, e saí com habeas corpus. A primeira vez passei três dias no porão do navio Barroso Pereira. O presidente Castello Branco soube e me mandou transferir para onde estavam outros colegas, no Princesa Leopoldina. Saí depois de 50 dias, respondi ao primeiro inquérito. O segundo inquérito foi logo depois, uns 15 dias depois, aí passei 106 dias preso. Ainda não tinha o AI 5 e o Superior Tribunal Militar concedeu o habeas corpus por unanimidade. Aí fui para o terceiro inquérito. Mudaram a tática, me perguntaram se eu era comunista. Aí eu respondi que na FAB, quando querem destruir a carreira de alguém, dizem que é corno, ladrão, viado ou comunista. Foi a única vez que me chamaram de comunista.

Folha - Por que essa perseguição?

Moreira Lima - Era de alguns colegas que não gostavam de mim. Tinha um, um brigadeiro, cujo nome prefiro não dizer, que tinha uma marcação severa. Ele foi acusado de várias coisas, que eu não posso confirmar porque não vi, que ele jogou gente no mar, que ele torturou.

Folha - Era uma rixa pessoal?

Moreira Lima - Politicamente, eu nunca tinha sido preso, só por indisciplina, por brigar, trocar soco com colega. No episódio Jânio foi a primeira vez que eles prenderam pessoas que não tinham nada a ver com política, eram apenas defensores das instituições. Essa cassação veio se acumulando de vários episódios, da deposição do presidente Vargas, da posse do Juscelino...

Folha - Foi por que o senhor sempre se posicionou pela legalidade?

Moreira Lima - Sempre pela legalidade. Nunca transigi com a carta de meu pai que dizia para mim, és cadete, mais tarde general; tens que estudar muito, deves obediência aos teus superiores e lealdade aos teus companheiros. Lembre que um povo desarmado merece respeito das Forças Armadas. O soldado não pode ser covarde, nem fanfarrão; a honra para ele é um imperativo. O soldado não conspira contra as instituições para as quais jurou fidelidade. A carta é de 31 de março de 1939. Entrei na Força [Aérea], e saí, em 31 de março. Essa carta hoje é lida para os cadetes que entram na escola preparatória.

Folha - E como foi o seu famoso vôo em 31 de março de 1964?

Moreira Lima - A gente não sabia nem onde estava o presidente. Um amigo do Conselho de Segurança falou, por que não decola e não dá um susto nessa coluna, a coluna do general Mourão. Eu falei que não, pois tinha uma cadeia de comando. Meu comandante, ou então o ministro, que daria as ordens. Mas aí, chovia muito, e eu resolvi localizar a coluna. Fui num jatinho Paris da FAB, um avião de turismo -que nós compramos erradamente, tinha pouca autonomia. Não tinha arma, não tinha coisa nenhuma Tinha pilotagem lado a lado. Chamei o comandante do Grupo de Caça para ir comigo, que foi meu aluno, que foi comigo voar jato na Inglaterra, o tenente-coronel Berthier. Era meu amigo à beça, mas era do contra, era pró-revolução. Fui de propósito com ele, pois queria mostrar minha isenção, para ele também tomar conhecimento da coluna do Mourão. Chovia muito, não tinha ninguém no ar. Fui descendo suavemente em espiral. Encontrei a coluna. Foi só gente caindo, correndo, caminhão saindo da rota. Foi só uma passagem, não tinha local pra manobrar, botei o nariz do avião pra cima e fui outra vez pra 17 mil pés, 5.600 metros. Chamei o radar, pedi para me levar de novo pra lá. O Berthier falou: coronel, da primeira vez nós não morremos, mas nessa nós vamos morrer. Era o perigo da montanha, não tinha como se safar. Eu falei, Berthier, na vida só se morre uma vez. Achei um claro, tornei a passar sobre a coluna e voltei a subir, não tinha lugar pra manobras, se entrava na nuvem batia no morro.

Folha - A tropa se assustou de novo?

Moreira Lima - Foi pior ainda. Quando eu subi, o sargento me falou que o brigadeiro Teixeira, comandante da zona, me ordenou pousar no Santos-Dumont. Pousei primeiro em Santa Cruz para deixar o Berthier e fui. Foi outro parto, o tempo estava todo fechado. Cheguei no QG e encontrei o brigadeiro e uma dezena de oficiais do comando, que me falou que a Vila Militar entregou a rapadura. O Rio de Janeiro está entregue ao general Mourão, que está chegando aí. Fomos à casa do ministro da Aeronáutica, brigadeiro Botelho, que disse, emocionado, que não daria ordens, daria sugestões, pois não tinha recebido ordens do presidente, que parecia não querer derramamento de sangue, estava evitando o confronto. A sugestão era que cada um ficasse no seu local, aguardar a nova ordem e passar o comando. Saímos e fomos jantar na base.

Folha - Não havia a sugestão de jogar uma bomba para espantar a coluna?

Moreira Lima - Eu disse pro meu amigo no conselho que parar uma coluna era a coisa mais fácil, eu fiz isso lá na Itália. Você atira na testa da coluna e atira na cauda da coluna, não precisa nem matar ninguém. Quando você passa em cima todo mundo foge. Atira, incendeia um, incendeia outro. Mas pra realizar esse tipo de missão era difícil, a coluna estava no começo da subida da serra, não tinha visibilidade. Eu disse, se tiver ordem, eu cumpro a missão, eu sei fazer essa missão, só fiz isso na guerra. Mas não tinha vontade nenhuma de fazer isso. Eu não me negaria a cumprir a missão, mas juro que não ia matar ninguém.

Folha - E depois do jantar?

Moreira Lima - Voltei à base em um C-47, reuni o pessoal. Disse que tinha acabado de vir da casa do ministro, que falou que não se sabia onde estava o presidente. Me sugeriu passar o comando da base. Falei que não queria ninguém armado ostensivamente, considerava que estariam me testando. Fui dormir. Às duas da manhã chegou o coronel Pires para me substituir. Mas eu não ia passar o comando escorraçado. A passagem do comando foi absolutamente dentro do regulamento de continência. Minha ordem do dia foi parte da carta do meu pai. Enfatizei que eles, do 1º Grupo de Caça, estavam sentados sobre um armamento poderoso, o Gloster Meteor, e que esse avião na Argentina fora usado pelo Péron contra o povo. E falei, pensem bem nessas palavras, o povo desarmado merece o respeito das Forças Armadas.

Folha - E o que aconteceu nos anos seguintes?

Moreira Lima - Seis anos depois me levaram à barra do tribunal. Chamei o promotor de covarde, porque o senhor deve ter assinado uma denúncia feita por um brigadeiro, por um coronel. Queriam cassar minha palavra. Falei que ninguém iria cassar minha palavra, só se fosse com esparadrapo.

Folha - E o que fez profissionalmente depois de 1964?

Moreira Lima - Comecei indo trabalhar em aviação, mas a Aeronáutica negou minha carteira de piloto. Fizeram portaria reservada, nos proibindo de exercer nossa profissão, quatro de nós, um atentado aos direitos humanos, nunca vi uma covardia tão grande. Como eu vi que não podia me empregar em lugar nenhum, até carne seca eu vendi, vendi tratores, apartamento. Fiz uma firma, me especializei em incentivos fiscais no mercado de capitais. Quis ir para a Brinks, onde estavam vários do grupo de caça, mas o SNI não deixou, por que a Brinks tinha carro-forte, eu podia pegar e [fazer] virar um tanque. Essas palhaçadas que a gente deplora.

Folha - E como voltou à Aeronáutica?

Moreira Lima - Voltei à Aeronáutica com a primeira anistia do presidente Figueiredo, em 1979. Quando veio a nova Constituição, em 88, entrei com ação ordinária e fui a major-brigadeiro. No governo Collor, o ministro Sócrates me entregou a carta-patente, as platinas e o decreto num quadro.

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