segunda-feira, outubro 01, 2012

América Central se remilitariza para a "guerra contra as drogas" imposta por WashingtonVerdadeiros objetivos podem ser reposicionamento político-militar, uso de recursos naturais e repressão social




Giorgio Trucchi/Opera Mundi

Helicóptero norte-americano em Honduras. Estratégia político-militar dos EUA avança na América Central

Em 7 de agosto de 1987, a assinatura do “Acordo de Esquipulas II” pelos presidentes da Guatemala, de El Salvador, de Honduras, da Nicarágua e da Costa Rica marcou o início de um processo que levou ao fim dos conflitos armados internos. As guerras civis centro-americanas aconteceram no contexto de Guerra Fria e deixaram um saldo de centenas de milhares de vítimas na região.

Esse histórico evento não apenas mostrou, pela primeira vez, um distanciamento dos governos centro-americanos em relação às políticas belicosas das superpotências da época – Estados Unidos e União Soviética –, mas também um despertar para o caminho da pacificação e da desmilitarização da América Central, por meio de uma redução drástica das forças militares e dos armamentos.

Vinte e cinco anos depois, essa mesma região está sendo sacudida por uma onda de violência sem precedentes. O avanço do crime organizado relacionado ao narcotráfico, aliado aos altos índices de pobreza que afetam a grande maioria da população, transformaram os países centro-americanos em corredores do tráfico de drogas para os EUA.
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Em muitos casos, as instituições estão contaminas pelos cartéis da droga e pelos grupos criminosos, esgotando de maneira significativa a já fraca institucionalidade democrática que, com dificuldade, vinha sendo construída no pós-guerra.
Uma situação muito complicada, sobretudo para os países do Triângulo Norte – Guatemala, El Salvador e Honduras –, que atingiram índices de violência e criminalidade entre os mais altos em nível mundial, e uma taxa de homicídios que supera a de vários países em guerra.

Segundo William Brownfield, secretário adjunto de Estado para Assuntos Internacional de Narcóticos, hoje em dia a maior ameaça para os EUA está na América Central, “onde os traficantes e gangues criminosas facilitam o fluxo de até 95% de toda a cocaína que chega” ao território norte-americano. O departamento de Estado dos EUA assegura que mais de 70% desta quantidade transita por Honduras.

Diante desse cenário preocupante e com o objetivo declarado de combater os danos causados pelo tráfico, os EUA voltaram novamente seu olhar em direção à América Central. Por um lado, fomentaram e impulsionaram sua presença militar, o trabalho de inteligência, a capacidade das forças de segurança nacionais, assim como a implementação de técnicas e tecnologia militar de ponta aplicadas a novas táticas de guerra.

Giorgio Trucchi/Opera Mundi

Militares da comunidade de Bajo Aguán, em Honduras, recentemente palco de violações de direitos humanos



Os principais instrumentos dessa nova estratégia de guerra têm sido a Associação de Segurança Cidadã da América Central, lançada pelo presidente Barack Obama em 2011 durante sua visita a El Salvador, e a CARSI (Iniciativa Regional de Segurança para a América Central), a versão centro-americana da Iniciativa Mérida e do Plano Colômbia.
De fato, trata-se da principal estrutura de aplicação e de financiamento dos Estados Unidos na região, com a qual pretende coordenar os países da América Central com instituições financeiras internacionais, o setor privado, a sociedade civil e o SICA (Sistema de Integração Centro-americano) “para formar, profissionalizar e dotar as forças de segurança dos Estados”, assim como apoiar no combate direto ao narcotráfico, sublinha Brownfield.

Remilitarização

Durante sua visita a Honduras, em março do ano em curso, o vice-presidente dos EUA, Joe Biden, acompanhado pelo diretor para Assuntos do Hemisfério Ocidental do Conselho de Segurança Nacional, Dan Restrepo, disse que, apesar da crise econômica, seu país manteria os compromissos assumidos com a região.

Segundo dados do Departamento de Estado, entre 2008 e 2012, a ajuda financeira anual que Washington destinou à região centro-americana para a luta contra o narcotráfico aumentou 75%, alcançando um total de 496 milhões de dólares. Para 2013, a administração Obama solicitou ao Congresso a aprovação de uma nova parcela de 107 milhões.

Um relatório do SIPRI (Instituto Internacional de Investigação da Paz) mostra que, em 2011, a América Central e o Caribe totalizaram um gasto militar conjunto de sete bilhões de dólares, 2,7% a mais que no ano anterior. O terceiro país com maior crescimento foi a Guatemala, com 7,1%. Na liderança dos países que mais investem no setor bélico no mundo continuam os EUA, com 771 bilhões em 2011.
A Guatemala, com o apoio econômico e técnico dos EUA, criará uma força militar para combater o narcotráfico no Oceano Pacífico e na região de San Marcos, fronteiriça com o México. Honduras está fazendo o mesmo com a criação da nova força de segurança Tigres (Tropas de Inteligência e Grupos de Resposta Especial de Segurança). Enquanto isso, os governos do Triângulo Norte, em parceria com o governo norte-americano e com a participação de outros países da América Latina e da Europa, lançaram a “Operação Martillo”, um esforço multinacional que faz parte da nova estratégia de segurança regional do governo norte-americano e da CARSI para combater o crime organizado transnacional.

O Instituto Internacional para Estudos Estratégicos (International Institute for Strategic Studies) registrou que, entre os anos 2009 e 2012, houve um aumento de quase dois mil efetivos nas forças militares da Guatamala e de El Salvador, e se espera fazer o mesmo em Honduras nos próximos anos. Esse crescimento foi menor no restante dos países da região.

Da mesma forma, o Atlas Comparativo da Defesa na América Latina e no Caribe (2010), elaborado pela RESDAL (Rede de Segurança e Defesa da América Latina), evidencia que, de 2006 a 2012, El Salvador passou por um crescimento de quase 20% em seu orçamento de defesa, a Guatemala fez isso em quase 16%, Nicarágua, 9%, enquanto que, em Honduras, o aumento foi de 64%.

No caso particular de Honduras, durante 2011, o Pentágono aumentou seu gasto militar no país em 71% em relação ao ano anterior. Apesar da grave crise econômica, político-institucional e social que acometeu Honduras desde o golpe de Estado de 2009 e das repetidas denúncias de corrupção, de violação de direitos humanos e de aproximação com o crime organizado dirigidas à Polícia Nacional, os EUA contribuíram com 53,8 milhões de dólares e preveem continuar com seus programas.

Ainda que não contem com um exército – mas sim com forças de segurança fortemente militarizadas –, Panamá e Costa Rica não ficaram atrás nessa corrida armamentista. Segundo Roberto Cajina, membro da Junta Diretiva de RESDAL, esse processo de remilitarização se expressa de diferentes formas, como, por exemplo, com a aquisição de novo armamento aéreo, naval e terrestre, e também através da maciça presença de efetivos militares e de equipamentos navais, terrestres e aéreos norte-americanos, e a solicitação de instituições do Estado, como é o caso da Costa Rica.
Em 2010, o Congresso da Costa Rica autorizou a chegada de 46 navios de guerra e de sete mil tropas norte-americanas às costas costarriquenhas para realizar operações militares, missões anti-tráfico e supostas ações humanitárias na região. Em julho deste ano, os deputados autorizaram a entrada, atraque, desembarque e permanência do navio de guerra USS Elrod em suas águas.

A Nicarágua manteve um perfil baixo e uma quantidade escassa de informações acerca da gestão e uso de seu orçamento anual, assim como do investimento militar executado. No entanto, graças ao apoio do governo sandinista e de seus deputados, conseguiu importantes modificações em sua base jurídica mediante aprovação de leis que outorgam importantes cotas de poder e novos e maiores espaços de autonomia.
Militarização da segurança pública outro elemento destacado por Cajina é a crescente participação dos exércitos na “guerra contra as drogas” mencionada anteriormente, que “está conduzindo à militarização das polícias e à 'policialização' dos exércitos”. De fato, nos países do Triângulo Norte, legislou-se para que os militares cumpram tarefas de ordem pública. “Pouco a pouco vai desaparecendo a fina linha vermelha que separa Defesa Nacional e Segurança Pública, uma ameaça emergente real aos fracos processos de construção da institucionalidade democrática na América Central”, diz Cajina.

Com esse propósito, o VI Relatório Centro-americano sobre Direitos Humanos e Conflitividade Social, elaborado por várias instâncias de direitos humanos na região, destaca que a militarização à qual a segurança pública na América Central foi submetida estaria desvirtuando as instituições policiais.
“O próprio fato de deslocar novamente o exército nas cidades centro-americanos não somente não se traduziu na redução dos índices de violência e de criminalidade, como os aumentou, servindo de ferramenta para frear manifestações de origem social contra sistemas opressores que lhes atira à marginalidade social e à pobreza”, consta no documento final.

Como se isso fosse pouco, é preciso lembrar que, na América Central, existe um verdadeiro exército de agentes de segurança privada. Calcula-se que são quase 70 mil os guardas fortemente armados que trabalham em 717 empresas da região, fazendo parte da nova militarização regional que, além disso, tem matizes muito particulares.
“Na nova organização militar centro-americana pós anos 90, a maioria dos exércitos tem dirigido seus passos rumo à administração de empresas produtivas ou de serviços. São os novos empresários, os novos investidores, onde o poder militar e o poder econômico do novo liberalismo dos tempos modernos se unem”, assegura a jornalista Dea María Hidalgo.

EUA enviam tropas

A outra cara do processo de remilitarização na América Central é o reposicionamento militar dos EUA. Os norte-americanos voltaram a pisar em solo centro-americano com suas botas militares, mas, desta vez, com novas técnicas e tecnologias.

Depois de ter reativado a IV Frota em 2008, instalado novas bases militares (Ilha Guanaja e Caratasca) e três bases de Operações de Avanzada (Puerto Castilla, El Aguacate e Morocón) em Honduras e reforçado as bases já existentes, os EUA se aprofundam no trabalho de capacitação e treinamento militar de tropas nacionais, intensifica as manobras militares em torno do Canal do Panamá, promove o uso de empreiteiras para as tarefas de resposta rápida e envia fortes contingentes de agentes especial da DEA (Drug Enforcement Administration).

Todd Robinson, subsecretário adjunto no Escritório de Assuntos Narcóticos Internacionais e da Aplicação da Lei, declarou recentemente em uma entrevista à BBC Mundo que não existe uma guerra contra as drogas, mas sim “uma decisão política para ajudar que estes governos protejam seus cidadãos e que nós protejamos os nossos”.
Torna-se cada dia mais evidente que a administração do presidente Obama está impulsionando e desenvolvendo sua fórmula para um novo modo de guerra norte-americano. Segundo o site TomDispatch, nesta segunda década do novo século, é preciso se esquecer das invasões em grande escala como as do passado recente e pensar em “forças de operações especiais que atuam independentemente, mas que também preparam ou combatem junto de militares aliados em pontos sensíveis de todo o mundo”.

Além disso, é preciso esperar um investimento cada vez mais profundo para a “militarização da espionagem e da inteligência, o uso de drones (aviões não-tripulados), assim como o lançamento de ataques cibernéticos e militarizados”, explica o portal.

Trata-se de “operações militares confusas”, isto é, uma espécie de versão organizativa da guerra na qual “um Pentágono dominante funde suas forças com outras agências governamentais, como a CIA (Agência de Inteligência Central), o Departamento de Estado e a DEA, e forças testa-de-ferro estrangeiras, em complexas missões combinadas”.

É uma estratégia que impactou fortemente as populações e que provocou fortes críticas por parte de amplos setores das sociedades centro-americanas. Segundo eles, não somente a luta contra o narcotráfico fracassou e não resolveu os graves problemas relacionados a este fenômeno, como por trás deste processo de remilitarização da região estariam ocultos os verdadeiros objetivos dos EUA e de seus aliados centro-americanos: seu reposicionamento político-militar na região, o controle da exploração dos principais recursos naturais e a criminalização dos protestos sociais, com um muito provável aumento da violência e da repressão.


"Guerra contra as drogas" é um fracasso, diz diretora do Programa das AméricasPara Laura Carlsen, é preciso que outro modelo seja construído, com o apoio da participação cidadã


O modelo de luta contra o tráfico de drogas e o crime organizado impulsionado pelos EUA na América Central não apenas fracassou ruidosamente, como também acarretou um aprofundamento da violência contra as populações locais e a remilitarização do território, evidenciando interesses ocultos que propõem monitorar e intervir nos processos emancipatórios e unitários dos países da região.

Partindo desta análise, a cientista política e diretora do Programa das Américas do CPI (Centro para a Política Internacional), Laura Carlsen, assegurou em conversa com Opera Mundi que a única maneira de combater e derrotar o tráfico é impulsionando um modelo que se construa de baixo, com a participação cidadã e a recomposição do tecido social, quebrado pelas políticas neoliberais das últimas duas décadas.

Opera Mundi: Quais são as características do modelo de combate ao narcotráfico impulsionado pelos EUA no México e agora exportado para a América Central?
Laura Carlsen: É um modelo baseado na militarização do território e no enfrentamento direto para a interdição e pelo confisco de drogas ilegais, assim como a prisão ou eliminação dos membros dos cartéis da droga. Isso, por definição, implica enfrentar a violência com mais violência e o resultado é o aumento progressivo dos mortos. Até o momento, se calcula que o combate contra o narcotráfico e o crime organizado no México tenha deixado um saldo de mais de 60 mil mortos.

OM: Qual é o balanço deste modelo?
LC: Tem sido um fracasso total. Tem gerado altíssimos índices de violência, não tem detido o fluxo de drogas ilícitas que entram nos EUA e até a prisão dos capos [chefes] da droga não tem servido para frear o 'negócio'. Pelo contrário, sua captura tem desatado uma guerra entre os cartéis para assumir o controle do território, gerando mais violência e morte.

OM: Houve alguma mudança com a administração do presidente Barack Obama?
LC: A Iniciativa Mérida foi iniciada em outubro de 2007 como um plano de três anos. O que Obama fez foi expandi-lo, intensificá-lo e estendê-lo de forma indefinida. Pela primeira vez, os EUA se envolveram diretamente na gestão de aspectos que têm a ver com a segurança nacional do México. É uma mudança estrutural muito preocupante que agora está sendo projetada para a América Central por meio da CARSI (Iniciativa Regional de Segurança para a América Central). Um dos primeiros efeitos que estamos vendo é a remilitarização desses países e uma dinâmica de crescente violência contra a população e de violação de direitos humanos.

OM: Que interesse os EUA teriam em reproduzir um modelo que fracassou?
LC: O país não está disposto nem sequer a analisar o porquê deste fracasso e estão recebendo fortes críticas até dos governos da região. Para nós, essa atitude revela que, por trás da militarização, há interesses muito poderosos.
OM: De quais interesses estamos falando?

LC: Em primeiro lugar, garantir os enormes lucros da 'indústria da guerra', que está radicada majoritariamente nos EUA. São bilhões de dólares que entram no país através da venda de armas e de equipamentos militares, do emprego de empresas de segurança privada, como a Blackwater, e a implementação de sistemas eletrônicos e de espionagem sobre a população.

Em segundo lugar, há um interesse geopolítico. Os EUA querem ter mais controle sobre as estratégias de segurança interna dos países centro-americanos, sobretudo agora que vários governos progressistas ou de esquerda se instalaram na América Latina, governos que já não compartilham das políticas neoliberais e impulsionam processos inovadores. Neste sentido, os EUA buscam fortalecer sua presença militar para enfrentar o que veem como uma ameaça contra sua hegemonia tradicional na região.

OM: Também há um grande interesse pelos recursos destes países...
LC: É outro dos pontos diretamente ligados à militarização e que tem seu precedente na Colômbia, onde, sob o pretexto de combater o tráfico, enviaram mais de cinco milhões de pessoas. E o mais absurdo é que agora o Departamento de Estado norte-americano está apresentando a Colômbia como um exemplo de segurança e um modelo que se deve exportar em todo o continente latino-americano. No México, por exemplo, por meio da Iniciativa Mérida, os EUA militarizaram o TLCAN (Tratado de Livre Comércio da América do Norte) para preservar seus interesses comerciais e proteger o investimento norte-americano em recursos naturais. Por fim, se trata disso: uma militarização que não apenas protege o investimento estrangeiro, como fomenta um processo de deslocamento e despovoamento de regiões onde há riquezas naturais.


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OM: Em vários países da América Central, os protestos sociais contra a exploração de recursos naturais está sendo criminalizados. A senhora compartilha desta preocupação?
LC: Não há dúvidas de que os protestos sociais estão sendo reprimidos, sobretudo nos países do Triângulo Norte. Há uma criminalização acompanhada pela repressão daquelas organizações que lutam contra a mineração, os megaprojetos hidroelétricos e turísticos, a expansão da monocultura em grande escala. Devemos aprofundar a análise e a pesquisa para ter elementos suficientes que nos ajudem a prever para onde essa repressão aponta.

OM: Que papel a DEA (Drug Enforcement Administration) tem e qual é o fluxo de dinheiro que financia a luta contra o narcotráfico na América Central?
LC: Investigamos o movimento de dinheiro que vai para a luta contra o tráfico de drogas, mas tem sido muito difícil devido à falta de transparência. Em alguns países, como Honduras e Guatemala, os agentes da DEA estão autorizados a andar armados e a disparar contra civis, o que é um absurdo e representa uma violação absoluta da soberania nacional e dos direitos humanos internacionais. Além disso, documentamos o sofrimento que a criminalização das manifestações causa e, em particular, o impacto disso sobre as mulheres. Lamentavelmente, esta situação se choca com o total desinteresse mostrado pelo Departamento de Estado norte-americano.

OM: Quais são os impactos desta política sobre as mulheres?
LC: Há índices muito elevados de abuso, tortura e violência sexual. As mulheres com frequência lideram a defesa de suas comunidades e as manifestações sociais diante do processo de militarização e de exploração dos recursos naturais. No caso de Honduras, esta situação coincide com o aumento da violência que surgiu depois do golpe de Estado e que cresceu com o atual regime de Porfírio Lobo.
Também é preciso destacar a repressão iniciada contra os oposicionistas ao golpe e o uso de uma suposta luta contra o narcotráfico para reprimir a oposição política. E tudo isso em meio a uma total impunidade. Em Honduras, os casos que chegam à sentença judicial são menos de 2% e as denúncias de corrupção nas instituições estão na ordem do dia.
Igualmente, na Guatemala, a situação é muito preocupante. As comunidades, que ainda têm na memória os horrores da campanha militar genocida dos anos 80, estão vendo como seus territórios voltam a ser militarizados e sua população, reprimida.

OM: Como combater, então, o tráfico de drogas e o crime organizado?
LC: Não há uma resposta apenas, nem um modelo certo, mas sabemos que a militarização não é a resposta. É importante que este outro modelo se construa de baixo, com a participação cidadã e com uma perspectiva de segurança que tenha como primeiro objetivo a segurança da pessoa, de sua vida.
Além disso, é preciso se focar na recuperação do tecido social, que tem sido destruído pelas políticas neoliberais. É necessário recompô-lo com programas sociais que criem emprego, garantam o desenvolvimento econômico, a saúde, a educação, o respeito aos direitos humanos. É preciso voltar a começar a construir uma sociedade forte, para que se possa resistir às infiltrações do crime organizado, ao recrutamento de jovens e à extorsão.
Além disso, é preciso pressionar as forças políticas para que haja um sistema de justiça a serviço da população, acabando com a impunidade e a corrupção.

Organizações: remilitarização da América Central provocou mais mortes e violênciaSob fogo cruzado, população centro-americana é também alvo de de violações aos direitos humanos


– Jogue-se na água, não pare! - gritou Clara Wood Rivas para o filho, Hasked, enquanto as balas vindas de um helicóptero militar passavam raspando em seu corpo e furavam o pequeno barco. Clara nadou com toda força até chegar à margem do rio Patuca. Voltou-se para buscar seu filho em meio à escuridão. Chamou-o, mas não obteve resposta.

Essa foi a última vez que clara viu o seu pequeno com vida. Hasked Brooks Wood tinha apenas 14 anos e caiu sob as rajadas mortais disparadas por agentes do conjunto operacional do FAST (Equipe de Apoio Consultivo no Estrangeiro), da DEA (Drug Enforcement Administration) e da Equipe de Resposta Tática da Polícia Nacional de Honduras.

Assim como ele, perderam a vida Emerson Martínez Henríquez (21 anos), Juana Jackson Ambrocio (28 anos) e Candelaria Pratt Nelson (48 anos). Mais quatro pessoas foram feridas gravemente. Juana e Candelaria estavam grávidas de cinco meses.
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De acordo com a investigação independente realizada pelo COFADEH (Comitê de Familiares de Presos Desaparecidos em Honduras) na região da Mosquitia, em Honduras, o pequeno barco no qual eram transportadas 16 pessoas foi atacado por agentes hondurenhos e norte-americanos, que acreditaram que a embarcação estava transportando droga descarregada de um pequeno avião uma hora antes.

A investigação também mostrou que, em nenhum momento, houve uma troca de tiros, mas apenas o ataque vindo dos helicópteros e que continuou em terra firme, “submetendo a população civil a detenções ilegais, ameaças de morte, invasões de domicílios, saques de bens, tratamentos cruéis, desumanos e degradantes”, informa o documento.

A DEA negou qualquer tipo de participação de seu efetivo no ataque. Da mesma forma, a embaixadora norte-americana em Honduras, Lisa Kubiske, e o chanceler hondurenho, Arturo Corrales, asseguraram que o efetivo que protagonizou a operação antidroga atuou “de forma devida e em defesa própria”, supostamente para responder a disparos que provinham do pequeno barco.

Giorgio Trucchi/Opera Mundi
“Eu desafio a todas essas instituições que atentaram contra a vida das pessoas que sejam corajosas. Que admitam que se equivocaram, que dispararam contra uma população civil que não tem vínculos com o narcotráfico. Em vez de justificar a morte de mulheres grávidas e crianças, lavando o sangue derramado, deveriam pedir desculpas a todos os familiares das vítimas”, disse a Opera Mundi Bertha Oliva (À ESQUERDA), coordenadora do COFADEH.

Um mês depois (25/6), agentes da DEA mataram a tiros um homem que supostamente participava de um descarregamento de cocaína na área de Brus Laguna. Poucos dias depois, abateram o piloto de um pequeno avião que se espatifou na região de Olancho enquanto tentava fugir de uma operação de combate ao narco. A DEA reconhece que o número global de mortos durante essas operações em território hondurenho nos últimos meses subiu para oito.

“A militarização sempre traz consigo morte e graves violações aos direitos humanos. O que ocorreu na Mosquitia hondurenha é o resultado de uma política de Estado espalhada por toda a região e que está se encaminhando para remilitarizar as sociedades”, apontou Oliva.

Militarização e violência

O processo de remilitarização pelo qual está passando a América Central nos últimos anos, junto com o reposicionamento estratégico-militar dos Estados Unidos na região com o objetivo de combater o narcotráfico, suscitou fortes debates e um profundo mal estar em amplos setores da sociedade.

Segundo várias organizações, a implementação de programas como o CARSI (Iniciativa Regional de Segurança para a América Central) ou a Iniciativa Mérida, assim como a adoção de novas táticas de guerra assimétrica e regular, muito semelhantes às operações militares contrainsurgentes utilizadas por tropas norte-americanas em vários cantos do mundo, seriam pretextos que os EUA usam para reafirmar sua presença na região e assegurar seus interesses. Como já ocorreu durante os conflitos armados nas décadas passadas, a população civil é a mais afetada.

“Nosso território se transformou em um centro de operações e de movimento de capitais controlados pelo crime organizado, e os países do Sica (Sistema de Integração Centro-americana) apoiam a ideia de reproduzir a mesma estratégia fracassada do combate ao narcotráfico adotada na Colômbia e no México. Nesses países, a saída militar não apenas não resolveu o problema, mas o aprofundou”, afirmou Jorge Coronado, membro da Comissão Nacional de Integração da Costa Rica.

Na Costa Rica, o exército foi abolido em 1948. No entanto, nos últimos anos foi incrementada a “militarização” da polícia e a compra de armamento e de unidades de desdobramento rápido. Até foi aplicado um novo imposto sobre as sociedades anônimas para financiar o Ministério da Segurança Pública.

Coronado explicou que os efetivos policiais estão sendo treinados pelo Mossad (Serviço de inteligência e contraespionagem israelense), pelos soldados carabineiros chilenos e pelos tropas especiais dos exércitos colombiano e mexicano. Além disso, a DEA financia toda a área de segurança pública e, junto com assessores da CIA (Agência Central de Inteligência), participa de cada operação. "Estamos à beira de um aumento vertiginoso da militarização e da violência, prontos para abrir as comportas para que se desate uma guerra regional”, alertou o especialista costarriquenho.

No Triângulo Norte – Guatemala, Honduras e El Salvador –, a DEA assumiu o controle das operações antinarcóticos. “Ela é acompanhada por efetivos nacionais justamente para dar uma aparência de legitimidade nas operações encobertas. Ninguém sabe de verdade o que está acontecendo nessas áreas remotas do país”, acusou o sociólogo guatemalteco Gustavo Porras Castejón.

Segundo ele, o reposicionamento militar dos EUA na região responde também a outros interesses, como, por exemplo, a preocupação diante dos processos de fortalecimento e unidade entre os países latino-americanos. O projeto de criação do CDS (Conselho de Defesa Sul-Americano), um mecanismo de cooperação e integração militar impulsionado pelo ex-presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, e assumido em 2008 pela Unasul (União das Nações Sul-Americanas), seria, por exemplo, um dos elementos fundamentais para a decisão dos EUA de implantar sete bases militares na Colômbia, assim como de reforçar suas operações navais no Panamá e de lançar uma escalada militarista na América Central.

Giorgio Trucchi/Opera Mundi
“Definitivamente, o combate ao narcotráfico e ao crime organizado revela a hipocrisia dos EUA. Com a sua política de segurança, está facilitando novos processos de militarização, desloca os cartéis em direção a nossos países e afasta os problemas de seu próprio território. Lá, ninguém está fazendo nada para combater o consumo e o tráfico”, disse María Silvia Guillén (À ESQUERDA), comissário da CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos) e diretora-executiva da FESPAD (Fundação de Estudos para a Aplicação do Direito).

No caso de El Salvador, Guillén alertou sobre a militarização das instituições. “Os militares assumiram postos-chave da segurança pública. Já temos dois generais de reserva controlando o Ministério da Justiça e Segurança e a Polícia Nacional Civil (PCN). Isso viola abertamente a Constituição e os Acordos de Paz”, afirmou. A diretora do FESPAD denunciou inclusive um retorno às execuções extrajudiciais no país, com o envolvimento direto das Forças Armadas. "Estamos voltando ao passado."

No Panamá, o exército foi abolido depois da invasão de 1989 e as bases militares norte-americanas foram fechadas depois da entrega do Canal às autoridades panamenhas no ano 2000. No entanto, a presença militar norte-americana não desapareceu. Ao contrário, está tendo um aumento nunca antes visto.

De fato, durante os últimos anos, foi registrado um aumento desmedido das patrulhas aéreas e navais, das manobras militares conjuntas (Panamax) e da participação norte-americana com reforços militares em todo o país. Até mesmo foi concedida jurisdição para a guarda costeira norte-americana sobre os navios com bandeiras panamenhas.

“Nos últimos três anos, foram gastos 1,5 bilhões de dólares na compra de armamento e o orçamento da Polícia aumentou em 550 milhões. Além disso, estão sendo criadas 14 bases aeronavais que serão orientadas a favorecer a política de segurança impulsionada pelos EUA”, disse Silvestre Díaz, diretor nacional da FRENADESO (Frente Nacional pela Defesa dos Direitos Econômicos e Sociais).

Para muitos, a remilitarização da região centro-americana é parte do grande negócio da venda de armas. Em 2011, as exportações de armas dos EUA triplicaram, alcançando a cifra recorde de 66,3 bilhões de dólares. Segundo Andrew Shapiro, secretário-adjunto de Estado para Assuntos Político-Militares, o complexo militar-industrial norte-americano vendeu 78% das armas do mundo. Em junho de 2012, os EUA já havia ultrapassado os 50 bilhões de dólares com a venda de armas ao exterior.

O caso da Nicarágua

Ainda que a Nicarágua tenha mostrado, nos últimos anos, um ligeiro aumento do orçamento do Exército e da Polícia, e anunciado a implementação de um novo batalhão de tropas navais na Costa Pacífica e uma tropa antidroga “de águas interiores” da Força Naval no rio San Juan, no extremo sudeste do país, sua participação na luta contra o narcotráfico e o crime organizado segue tendo matizes muito particulares.

“O combate à droga deve ser analisado segundo a forma como ocorre em cada país. O modelo nicaraguense é muito eficiente e não deixa sequelas porque nosso Exército e nossa Polícia nascem com a revolução sandinista, das mesmas entranhas do povo, e estão profundamente enraizados na comunidade e com a sua gente”, assinalou a Opera Mundi o ex-presidente do Parlamento Centro-americano e atual deputado sandinista, Jacinto Suarez.

De fato, o modelo policial preventivo, proativo e comunitário, junto com a eficácia do exército nacional, não só está apresentando resultados muito concretos como representa um muro de contenção contra o narcotráfico, cujo destino está sendo estudado em toda a América Latina.

Desde que o líder sandinista Daniel Ortega assumiu a presidência da Nicarágua, o novo governo assumiu uma posição muito clara sobre qual deveria ser o papel dos EUA no país em relação ao combate ao narcotráfico. “Lutar contra o narcotráfico não significa que agora deva vir a DEA querendo se estabelecer aquí com as suas bases, seus helicópteros, suas tropas. De forma alguma! Para isso, temos nosso exército nacional e nossa polícia, que vão pôr em prática operações contra o narcotráfico”, disse o presidente Ortega poucos meses depois de ter assumido o mandato, em 2007.

“Com a DEA teremos um trabalho de cooperação, mas com muito cuidado. Não podemos ser cegos com a DEA porque eles têm seus interesses, que vão muito além da luta contra o narcotráfico. De início, não permitiremos que vão colocando suas tropas no nosso território, pois foram descobertas coisas terríveis nessas operações da DEA”, sentenciou Ortega.

O atual processo que está sendo levado a cabo na Nicarágua contra o empresário nicaraguense Henry Fariñas, o ex-juiz eleitoral Julio Cesar Osuna e outras 22 pessoas, assim como a detenção dos 18 falsos jornalistas da rede mexicana Televisa, detidos com mais de nove milhões de dólares em um posto fronteiriço com Honduras, são exemplos claros da eficácia do modelo nicaraguense.

Fariñas é acusado de lavar mais de nove milhões de dólares, de ter vínculos diretos com os cartéis mexicanos e com o costarriquenho Alejandro Jiménez (“El Palidejo”), principal suspeito de ser o autor do atentado contra Fariñas, no qual o cantor e compositor Facundo Cabral perdeu a vida.

Saque de recursos

Semear incerteza e medo nas populações que se encontram sob fogo cruzado, deslocando-as de seus territórios para abrir caminho à exploração de valiosos recursos naturais do solo e do subsolo é a acusação que várias organizações centro-americanas direcionam contra a estratégia do combate à droga impulsionada pelos EUA.

“Temos denunciando isso há muito tempo. Os EUA, junto com as oligarquias locais e os interesses transnacionais, estão implementando uma estratégia militar para saquear nossos recursos, apropriar-se do nosso território, mudar nossa cultura”, explicou Bertha Cáceres, coordenadora nacional do COPINH (Conselho Cívico de Organizações Populares e Indígenas de Honduras.

“Os povos indígenas e negros estamos sendo criminalizados, estigmatizados e assassinados. Dessa maneira, querem nos deslocar das áreas onde abundam os recursos naturais”, criticou.

Para ela, a escalada militarista é parte da dominação econômica e política sofrida pela região da América Central. “A violência é produto da injustiça e da desigualdade social. Não é mais do que o eixo do sistema político-econômico neoliberal imposto pelos EUA aos países centro-americanos”, acrescentou.

Ethlen Erlinda Wood, coordenadora da organização Ecos da Mosquitia, expressa sua profunda preocupação quanto à reiterada hostilização por parte dos corpos especiais que operam nessa área demora de Honduras. “Depois do massacre de 11 de maio em Ahuas, as tropas hondurenhas e os agentes norte-americanos continuam maltratando os civis e violando os direitos humanos do povo miskito. Todos nós nos tornamos suspeitos de algo e é um fardo psicológico muito pesado. Vamos exigir a retirada imediata de todas as bases militares 'gringas' do território miskito”, assegurou Wood.

Giorgio Trucchi/Opera Mundi
Para os povos garífunas hondurenhos, a tomada de suas terras e sua expulsão de seus territórios é o resultado da voracidade dos poderes que são exercidos à margem das instituições legais, controlando o país, e do capital transnacional para: desenvolver com toda a tranquilidade os megaprojetos hidroelétricos e turísticos; implementar a exploração mineira; e estender o modelo de monocultura em grande escala. “E sim, os militares e a polícia não são suficientes. Há um exército de guardas de segurança privada fortemente armados e sem controle, preparados para defender seus padrões até as últimas consequências”, disse Miriam Miranda (À ESQUERDA), coordenadora da OFRANEH (Organização Fraternal Negra Hondurenha).

Criminalização dos protestos

Neste contexto de convulsão social, a luta impulsionada por várias organizações sociais e populares para fazer oposição é considerada “uma escalada militarista e saqueadora”, e está sendo brutalmente criminalizada e reprimida.

Um dos elementos usados para tratar com rédeas curtas os movimentos sociais é o uso cada vez mais frequente de efetivos militares para cumprir tarefas de segurança pública. Nos países do Triângulo Norte, os Parlamentos legislaram no sentido de outorgar ao exército funções que são próprias da polícia.

“Há uma perseguição sistemática dos dirigentes comunitários e dos líderes dos protestos. Nós vimos isso em Santa Cruz Barilla, em San Juan Zacatepeque, em Nebaj e em todas os lugares onde a população se organizou para combater os megaprojetos e a mineração. Só pelo fato de estarem protestando e de denunciar aquilo que ninguém está levando em conta, o governo acusa os movimentos de delinquentes e terroristas”, disse Juan Pablo Ozaeta, investigador do CER Ixim (Coletivo de Estudos Rurais) da Guatemala.

Nesta luta contra a exploração de recursos por parte das grandes transnacionais norte-americanas e europeias, foram assassinadas várias pessoas. Além disso, foi denunciada a violação sistemática dos direitos humanos, como produto da crescente militarização e do uso de novas técnicas de inteligência militar para interceptar e identificar lideranças comunitárias.

No Panamá, a aprovação de leis antissociais gerou uma forte reação por parte da população. A repressão policial contra os trabalhadores que cultivam banana em Bocas del Toro e o povo Ngöbe Buglé em Chiriquí deixou um saldo de mortos e feridos. Por conta do uso ilegal de perdigones [pequenas balas utilizadas nas escopetas], há dezenas de trabalhadores da banana que ficaram cegos.

“O povo saiu às ruas de maneira combativa, reclamando seus direitos, e a resposta foi mais repressão. Tudo isso no âmbito de uma política de segurança para supostamente combater o narcotráfico, mas que, no final, é utilizada para reprimir os protestos sociais”, reforçou Silvestre Díaz.

Díaz explicou que a criação de unidades especiais relacionadas ao SENAFRONT (Serviço Nacional de Fronteiras) serviu sobretudo para reprimir a população. “Tudo isso nos leva a lembranças muito tristes que pensávamos que haviam ficado no passado”, desabafou.

Mais estado e menos militarização

Segundo amplos setores das sociedades centro-americanas, não é com a militarização nem com a violência que se resolve o grave problema do narcotráfico e do crime organizado. Durante o Fórum “Fortalecimento das instituições democráticas”, Carmen Rosa Villa, representante regional das Nações Unidas para os Direitos Humanos, se pronunciou contra o fato de o Estado aplicar a “mão dura” para combater a delinquência. “O Estado deve recuperar seu papel social, que agora está nas mãos do crime organizado, e os governos devem aplicar políticas preventivas quanto aos fatores de risco da violência, atacando as raízes do problema, como a falta de educação e emprego”, disse.

Segundo Francisco Dall'Anese, ex-procurador-geral da Costa Rica, a falta de oportunidades e o desinteresse em relação a uma distribuição adequada da riqueza levaram a região a esta situação. “Nestes espaços aonde o Estado não leva os serviços, não resolve os problemas de moradia, de saúde, de educação, de trabalho, vem o crime organizado e dá aos cidadãos tudo o que precisam. Esses grupos sociais acabam dando legitimidade a quem lhes trouxe esperança e comida”, explicou.

Também para Jorge Coronado, resolver os problemas da pobreza e da exclusão social é a única forma de atacar na raiz as causas estruturais que fazem com que cada vez mais setores sejam incorporados ao narcotráfico e ao crime organizado. “O ambiente propício para isso está nos grandes cordões de miséria que existem nos países da América Central. Como movimentos sociais, temos o grande desafio de aprofundar nossa análise para fazer uma contraposição à proposta dominante de militarização e violência”, disse Coronado.

Paralelamente aos problemas sociais, o combate à corrupção e à infiltração nas instituições, assim como o fim da impunidade parecem ser outras das medidas urgentes e necessárias para lutar contra o crime. “Precisamos fortalecer a institucionalidade do Estado e revisar o funcionamento das instituições de tal maneira, que tenhamos claro de quem elas estão a serviço, isto é, se é do crime organizado ou dos direitos nacionais”, sugeriu María Silvia Guillén.

A ex-comissária da CIDH explicou que os governos devem se valer de soberania. “Em vez de estarmos cuidando das fronteiras com os EUA, devemos cuidar dos interesses de cada um de nossos países”, sentenciou.

Para a dirigente garífuna Miriam Miranda, há uma política hipócrita contra o narcotráfico. “O crime organizado penetrou as instituições. Todo mundo sabe disso e ninguém diz nada. Preferem criminalizar os povos, hostilizar-nos, dizimar-nos, preparando as condições para abrir as portas ao capital transnacional”.

Além disso, são muitos os que acreditam que o verdadeiro problema não está na América do Norte, mas no Norte. “Por mais vontade e capacidade que se tenha, o problema não será resolvido por nós. Os cartéis não acabam quando chegam à fronteira com os EUA porque lá há quem receba, transporte e distribua a droga. Lá está a demanda e os consumidores. O que os EUA estão fazendo para desarticular esses grupos e combater o consumo?, perguntou Jacinto Suarez.

Uma luta que, definitivamente, deve ser consensual e tem que envolver a população. “Deve envolver as comunidades, buscar estratégias junto com a população, investigar a fundo os grupos econômicos e de poder que estão envolvidos neste fenômeno. Se não se dá um basta à impunidade, se não se ataca a pobreza e a miséria, se não se muda o modelo econômico fracassado que nos levou a esse ponto, não vamos resolver nunca este problema”, concluiu a dirigente indígena Bertha Cáceres.


Escola das Américas traduz política externa dos EUA, diz fundador do SOA WatchA organização gerou "muitos violadores de direitos humanos em seus próprios países, denuncia Roy Bourgeois


Em 16 de novembro de 1989, militares ligados às brigadas especiais contrainsurgentes do Exército salvadorenho cercaram e invadiram as instalações da UCA (Universidade Centro-americana) de San Salvador, massacrando seis padres jesuítas e duas mulheres.

Segundo as investigações realizadas depois da assinatura dos Acordos de Paz em El Salvador (1992), os principais responsável por esse massacre, assim como pelo assassinato do Monsenhor Oscar Amulfo Romero (1980) e das quatro freiras norte-americanas da ordem Maryknoll (1980) e por um sem-número de outros trágicos acontecimentos em toda América Latina, se formaram na famosa Escola das Américas (School of the Americas – SOA, na sigla em inglês).
Giorgio Trucchi/Opera Mundi
A partir de 1990, como reação a esse grave acontecimento, dezenas de milhares de cidadãos norte-americanos se juntaram e fundaram o Observatório da Escola das Américas (SOA Watch), tendo como principal objetivo o fechamento definitivo desta escola de “assassinos, torturadores e golpistas”, disse a Opera Mundi o padre e fundador dessa organização, Roy Bourgeois (À ESQUERDA). Cerca de 180 membros do movimento foram presos por se solidarizarem com os prejudicados pela Escola das Américas. O padre Bourgeois passou mais de quatro anos na cadeia por exigir o fim desta instituição.

Fundada em 1946 no Panamá para treinar soltados latino-americanos em técnicas de guerra e contrainsurgência e trasferida para Fort Benning, Georgia, em 1984, a SOA, hoje rebatizada de WHINSEC (Instituto de Cooperação e Segurança do Hemisfério Ocidental, em inglês Western Hemisphere Institute for Security Cooperation), treinou mais de 64 mil soldados, “muitos dos quais se tornaram destacados violadores de direitos humanos em seus próprios países”, destaca o padre.

Segundo Bourgeois, essa escola representa a máxima expressão da política externa norte-americana, e continua tendo um papel muito importante na estratégia de reposicionamento dos Estados Unidos na América Latina e na remilitarização da América Central num contexto de combate ao tráfico de drogas e ao crime organizado.

Opera Mundi: Como o senhor descreveria a Escola das Américas?
Roy Bourgeois: Como uma escola de assassinos, torturadores e golpistas, que lamentavelmente é muito bem conhecida em toda América Latina. Ali foram treinados mais de 60 mil soldados, a metade deles colombianos. Por mais de 20 anos, acompanhamos a trajetória desses graduados e encontramos centenas de conexões com as mais graves atrocidades cometidas na América Latina durante as ditaduras militares das décadas passadas. Além disso, é um claro símbolo da política externa do meu país [Estados Unidos].

OM: De que maneira representa a política externa dos Estados Unidos?
RB: Os Estados Unidos estão acostumados a se expandir em um continente que consideram seu e fazem isso estendendo suas forças e sua influência para controlar qualquer tipo de processo progressista ou de esquerda na América Latina. Neste sentido, a Escola das Américas sempre foi parte dessa estratégia. Não é por acaso que as tentativas de golpe de Estado feitas nos últimos anos na Venezuela (2002), em Honduras (2009) e no Equador (2010) tenham sido lideradas por pessoas formadas na SOA.
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OM: Há ligações com interesses econômicos, além de políticos e estratégicos, na região?
RB: Claro que há. O Pentágono diz que ali ensinam a democracia e a defesa dos direitos humanos, o que é absurdo e tristemente ridículo. O papel da SOA continua sendo a defesa dos interesses econômicos dos Estados Unidos e de suas multinacionais na América Latina, em fusão com as oligarquias locais.

Por sorte, os povos estão acordando, estão se organizando e se unindo, e estão dizendo ao império que ele já não pode vir a estes países como faziam os “conquistadores” para explorar seus recursos e seus povos. Já há seis países – Venezuela, Bolívia, Argentina, Equador, Uruguai e Nicarágua – que disseram que não vão mais enviar soldados para a Fort Benning. A decisão que o presidente nicaraguense, Daniel Ortega, acaba de tomar, vai ser um exemplo para o resto da região centro-americana.

OM: Como esta situação que o senhor está descrevendo se relaciona com a luta contra o tráfico impulsionada pelos Estados Unidos na América Central?
RB: O processo de remilitarização que está acontecendo na região e a violência que ele acarretou nos preocupa. É parte da mesma dinâmica de controle e de reposicionamento estratégico dos Estados Unidos porque nunca vão parar até deter qualquer processo latino-americano de independência.

Vimos isso recentemente com o golpe de Estado em Honduras e com as tentativas falidas cometidas contra governos pertencentes à Alba (Alternativa Bolivariana para os Povos de Nossa América).

OM: Como continuarão nesta luta para o fim da SOA?
RB: A cada ano são gastos mais de 30 milhões de dólares de nossos impostos para financiar a SOA enquanto cortam o orçamento da educação. As pessoas continuam se juntando na luta e já estamos vendo resultados importantes. Há dezenas de congressistas que assinaram uma petição para o fechamento definitivo. Esperamos que, à medida que mais países latino-americanos se juntarem à iniciativa, mais congressistas se sentirão estimulados a dar esse passo.

OM: O senhor, assim como muitas outras pessoas, já foi preso por levar esta luta adiante...
RB: E vamos continuar fazendo, trabalhando para conscientizar as pessoas e os governos. Conseguir o fechamento deste “monstro” seria algo extraordinário. Desde já convidamos a todas as pessoas que queiram participar de um ato em frente às instalações da Fort Benning em 16 e 17 de novembro.

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