sexta-feira, setembro 21, 2012

Tropicália na auto-glorificação




Da Época

Sai de “Tropicália” convencido de que assisti a um filme bom mas envelhecido precocemente.

O filme tem imagens inéditas e importantes. Apresenta, por exemplo, fotos de Caetano e Gil quando eram vigiados pela polícia política do regime militar.

Outras imagens mostram seus amigos e os filhos – estes são crianças — durante o exílio, em Londres. É impressionante imaginar que isso tenha acontecido em nosso país. Milhares de brasileiros foram para o exílio naquele tempo. Outros sofreram crueldades ainda maiores. Mas é chocante recordar que artistas de primeira linha, que faziam sucesso na TV e em espetáculos no país inteiro, davam autógrafos, usavam roupas e cabelos que tantas pessoas imitavam, de uma hora para outra podiam ser levados para a cadeia e, sem processo nem sentença judicial, forçados a deixar o país.

A pesquisa do filme é uma coisa tremenda, de qualidade.

A trilha sonora faz justiça à obra.

O problema é que Tropicália não se limita a fazer todos os elogios – merecidíssimos – a Gilberto Gil, Caetano, Mutantes, Tomzé e os outros. Rogério Duarte é recuperado, o que não deixa de ser um mérito adicional.

O filme parte para a glorificação. As entrevistas são na linha: como fomos bons, como fomos bacanas, como é legal falar bem da gente. Há imagens de puro narcisismo, na linha caras e bocas.

Comprei, em sua devida época, os principais álbuns de Caetano, Gil, Tomzé, Gal, Bethânia. Eu era daqueles que ia antes até a loja perguntar quando os discos iriam chegar. Ouvia músicas, aprendia as letras, ia para o bar discutir.

Mas, 45 anos depois, a distancia cobra seus direitos e pede distanciamento.

Por exemplo: é difícil deixar de pensar que o simples nome Tropicalismo ainda não disse muito a que veio, passados tantos anos desde que foi anunciado e, dois anos depois, como Caetano afirma num depoimento do próprio filme, extinto.

O que seus integrantes pretendiam? No que acreditavam? Gostavam de que? O filme não ajuda a pensar sobre isso.

É verdade que Tomzé faz esforço numa cena do filme. Fala que as ideias de Caetano Veloso ajudaram a encarar a Segunda Revolução Industrial. É complicado o suficiente para que pareça profundo.

Mas como Tomzé sempre foi profundamente engraçado, isso não tem importância.

Fazia parte do charme daquela época dizer coisas que ninguém entendia mas fazia cara de inteligente para não ficar chato.

Vivíamos um período de busca permanente às frases definitivas. Eram uma forma de cada um ter seu direito a 15 segundos de celebridade, mesmo que fosse apenas no barzinho perto da faculdade.

De forma direta ou indireta, explícita ou implícita, o filme trata de política o tempo inteiro. Teria sido enriquecedor ouvir pessoas que tinham uma visão crítica de seus protagonistas. Teria ajudado a entender a história no conjunto. Mas não.

A principal cena do filme é conhecida. Mostra o discurso de Caetano Veloso no TUCA, em 1968, quando a plateia não parava de vaiar, apitar e xingar a exibição da música É proibido proibir.

Microfone na mão, Caetano diz uma frase que ninguém iria esquecer: “Se vocês forem em política como são em estética, estamos feitos…”

Também diz outra frase: “Vocês não estão entendendo nada…

Desde 1968 eu me perguntava qual era a política daquela estética.

O filme não oferece todos elementos para que a plateia possa entender a discussão. A turma que apita, xinga e grita contra Caetano era formada por estudantes que se batiam por uma música que expressava a resistência a ditadura militar – Caminhando, de Geraldo Vandré.

Essa plateia é apresentada como autoritária e intolerante e aquele momento tem uma importância considerável para se entender o período e o que veio depois.

O confronto do Tuca não era estético. Nas circunstâncias dadas, era político. Acredite ou não, concorde ou não, a vitória de Caminhando era vista como uma derrota da ditadura, que já se mostrava menos contida e muito mais violenta. Pode parecer absurdo hoje.

Mas, se você recordar que vivíamos num tempo em que as músicas eram censuradas e vários cantores, perseguidos, há de reconhecer que um regime de força tem a capacidade de politizar até aquilo que, em situações de normalidade democrático, poderia ser visto como “uma simples música.”

A canção de Vandré apostava numa força fora de moda naquele regime – o povo – e dizia “quem sabe faz a hora, não espera acontecer.” Era voluntarismo, sim. Continha um apelo sem sutilezas à luta armada.

Mas o golpe dentro do golpe estava em marcha e Caminhando falava em resistir a isso.

Caminhando foi censurada e proibida pouco depois. Geraldo Vandré foi, possivelmente, o mais perseguido dos músicos brasileiros. Durante muitos anos, a censura proibia os jornais de mencionar seu nome.

A vaia “pode ser democrática mas não é civilizada,” disse Therezinha Zerbini, num debate com estudantes que criticavam sua proposta de fazer uma Lei de Anistia que pacificasse adversários e aliados do regime de 64.

Mas em 1968, num país cada vez mais sufocado, a música era um oxigênio. Os estudantes cobravam um engajamento dos compositores nos protestos contra o regime. Você pode dizer que não eram elegantes nem bem educados. Mesmo que seja difícil encontrar alguém educado naqueles tempos, em São Paulo, Paris ou Praga, invadida por tropas da ex-União Soviética, apoiadas por Fidel Castro, vale pergunta: estavam errados? Eu acho que naquele turbilhão de forças e rostos enlouquecidos, estavam sendo coerentes com seu momento. Como seus colegas de maio-68 em Paris, que pararam até o festival de Cannes. Grandes momentos não estão livres de episódios que os sábios do futuro irão classificar como grandes besteiras, transformar em folclore e anedota. Nem sempre é justo. AQuase nunca.

Apesar da observação de Therezinha Zerbini, é claro que o debate não envolve boas maneiras, apenas.

A experiência passada e futura mostra que a resistência a uma ditadura é um dever. Ela é formada por valores e não envolve escolhas puras. Não é uma opção, como escolher entre açúcar ou adoçante na hora de tomar café.

Embora se considere que a palavra-de-ordem É proibido proibir tenha sido inspirada pelo levante estudantil-operário de Paris, em sua tropicalização ela adquiriu outro significado.

A revolta de Paris é considerada um dos últimos levantes anti-capitalistas do mundo desenvolvido.

Falando sobre suas próprias ideias politicas, Caetano expressa outras opiniões. Diz no filme que, ao desembarcar em São Paulo, vindo da Bahia, não concordava com o valor atribuído a Terra em Transe, filme de Glauber Rocha. Aquele filme, um dos maiores da história do cinema brasileiro, em qualquer aspecto, exibe uma belíssima tradução poética-cinematográfica dos impasses e angustias do governo João Goulart, deposto em 64. Favorável a Goulart, é um filme crítico, profundo. Chega a ser sublime.

Caetano também critica o nacionalismo – identificado com Goulart e a oposição ao regime de 64 – e também o anti imperialismo, que tinha um significado semelhante.

Um dos pontos centrais da mobilização dos estudantes –aqueles que foram ao TUCA – era a denúncia dos acordos MEC-Usaid, que pretendiam privatizar o ensino superior brasileiro com o argumento – lançado naquela época – de que só os filhos de famílias ricas conseguiam entrar nas universidades públicas.

Sem entrar nesta polêmica, Caetano diz no filme que sempre gostou muito de “cinema americano.”

Não é preciso dar a essa visão uma importância maior do que ela realmente possui. O próprio Glauber era um admirador de John Ford. A crítica que se fazia ao “cinema americano” envolve o tratamento favorável que o governo dos EUA obteve para exibição dos filmes de Hollywood em outros países, negociando concessões culturais com a agressividade permitida por sua força econômica.

Ampla, irrestrita, a palavra de ordem É proibido proibir se dirigia especialmente aos adversários da ditadura. Essa era a questão.

Grande parte da oposição ao regime militar era formada por stalinistas, castristas, maoístas – uma turma que dificilmente deixaria de ser identificada com autoritarismo, em qualquer dicionário de política. O problema era o contexto, esse cruzamento de geografia e história.

São Paulo sempre esteve muito mais perto de Osasco e São Bernardo do que de Paris e Praga, diferença que exigia um cuidado especial com a chamada antropofagia, não é mesmo?

Os chamados tropicalistas ajudaram o Brasil a viver um 1968 criativo, original, contestador. Mas havia um certo elitismo em sua visão. Eles abusavam da crítica do brega e tratavam o Brasil como algo meio folclórico, um motivo para riso.

Numa cena de uma grande passeata associada a morte de Edson Luiz Lima Souto, executado a tiro de fuzil num restaurante do Rio de Janeiro, a música Coração de Mãe serve de trilha sonora.

É a reinterpretação da reinterpretação. Pelos códigos tropicalistas, o trágico Vicente Celestino fora revisado em tom irônico.

No caminho de casa, depois do filme, eu lembrava que o violão de Geraldo Vandré tocou a musica que colocou o país em movimento. A canção daqueles que não estavam “entendendo nada” tornou-se o hino pela democracia.

Conheço pessoas que chegam a chorar quando lembram dela naqueles momentos em que o centro das grandes cidades tinha cheiro de pólvora e gás lacrimogêneo, os cassetetes vibravam no ar.

Caminhando sequer é mencionada pelo filme, embora tivesse ficado em segundo lugar no mesmo Festival onde É Proibido Proibir acabou desclassificada ali, no Tuca, na noite do discurso tão famoso.

Nos anos seguintes, a música de Vandré era berrada, falando, afinal, com a voz da história.

E até hoje eu me espanto com nossa dificuldade em pensar com duas ideias diferentes ao mesmo tempo.

De certo modo, as duas ideias perderam e ganharam. Mas Tropicália ainda quer enxergar o mundo com uma visão só.

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