quarta-feira, janeiro 23, 2008

A crise e a esquerda que aprende com a história

Se, hoje, estamos mais preparados para uma provável desaceleração da economia mundial, temos o mais categórico desmentido dos que afirmavam que a economia brasileira não desandava por conta, apenas, de um cenário internacional favorável.

Gilson Caroni Filho

Ainda é cedo para avaliar com precisão quais os reflexos que a crise financeira internacional poderá ter no Brasil. Permanece a tensão nas bolsas de valores de todo o mundo, causada pelo medo de uma recessão nos Estados Unidos e os conhecidos consultores e jornalistas especializados já dão o ar de sua graça. Lembram, como faz o economista Caio Megale, em artigo para a Folha de S.Paulo que “deixamos para trás reformas importantes, como a tributária e a da previdência, cujos frutos fazem falta nestes momentos". Será que o maior feito do governo Lula não foi exatamente o de estabelecer fundamentos para um crescimento sólido sustentável? O que legitima quem pretende deitar cátedra sobre como conduzir a economia se eles são os mesmos que foram a nocaute nas crises dos anos 1990?

Se por um lado continuamos não subscrevendo críticas supostamente radicais, repletas de purismos inconseqüentes, aos rumos da política econômica adotada, por outro não podemos escutar calados os que pregam o velho receituário que levou o país à lona entre 1994 e 2002. Reafirmamos a necessidade de uma reforma fiscal e do controle efetivo do processo inflacionário. Mas perguntamos se há ambiente político para estabelecer, como destacou em artigo publicado no Globo, o ex-ministro Antônio Palloci, "uma agenda de reformas de interesses do país"? Como pactuar com uma oposição que aposta no "quanto pior, melhor?".

Nunca esqueçamos o sucateamento na estrutura produtiva feita pela opção subalterna do governo anterior e a conseqüente redução da margem de manobra da equipe econômica no primeiro mandato do presidente petista. Muito menos o enfraquecimento do Estado Nacional levado a cabo em sintonia com a globalização neoliberal pode ser perdido de vista. Nossa postura está longe da resignação. De vislumbrar, no cenário criado pelos centros hegemônicos de poder, uma inevitabilidade natural à qual só resta uma adesão "inteligente". Justo agora quando o epicentro da crise está na sede da “racionalidade neoliberal”. É no fio da navalha, nos interstícios da ação política, que o soberano submete a fortuna à virtù. É hora de reafirmar os acertos das opções. Sem qualquer receio de críticas à esquerda ou à direita.

Lembrar, por exemplo, que pouco tempo após a primeira eleição de Lula, nos nove primeiros meses de 2004, o Produto Interno Bruto (PIB) cresceu 5,3%, o melhor resultado desde 95. Houve aumento de investimentos e vários setores começaram a reduzir a capacidade ociosa. A equipe econômica soube aproveitar a desvalorização do dólar e captar US$ 500 milhões, através de bônus com vencimento em 2014 e juros extremamente favoráveis. Não era isso o que esperavam os profetas do caos.

A forte queda no risco-Brasil, essa ficção do capital especulativo, para 412 pontos foi motivo de elogios em telejornais e conhecidas colunas de economia. À época, a mídia apostava na continuidade da política macroeconômica tucana. Estávamos, segundo os bravos colunistas, no caminho certo, no cumprimento com louvor dos fundamentos macroeconômicos da gestão anterior. Era a aurora de uma ilusão que, desfeita, se transformaria no mais explícito ódio de classe impresso em numerosas páginas da imprensa.

Vivíamos a era pallociana. Buscava-se estabilidade frente a um colossal endividamento deixado por FHC. A margem para erros era mínima. Não era o que pensavam bons nomes da academia. A professora Maryse Farhi, do Instituto de Economia da Unicamp, em artigo publicado na revista Carta Capital, afirmou que: "o regime de metas de inflação constitui um dos mais importantes obstáculos ao crescimento econômico sustentado no Brasil. Foi adotado após a crise cambial de 1999 e a passagem para o regime de câmbio flutuante". O que soava óbvio para uma estudiosa do cenário econômico brasileiro podia comportar algum equívoco? Quem não se lembra dos que afirmavam que o núcleo do duro do governo petista operava no imediatismo do micro para dele inferir o macro?

Quando o Banco Central anunciou que o Tesouro Nacional captaria US$ 2,352 bilhões no mercado de câmbio para os pagamentos externos no próximo semestre, muita bobagem foi dita. Houve quem afirmasse, naquele já distante 2004, que quando um governo de centro-esquerda anuncia sua persistência em um rumo e o mundo do capital festeja, sob intensos protestos da classe trabalhadora, algo de sólido se desmanchou no ar. A intensidade do protesto, como se viu, era mais uma quimera do que um fato. E se desmanchou na concretude da história.

A pauta dos “progressistas desconsolados" comportava alguns pontos recorrentes: o “crescente aparelhamento do PT”, “a interdição do debate econômico” e a “cumplicidade da mídia conservadora” como sinalizações de chegada perigosa ao ponto de não-retorno. Os movimentos sociais, ainda mantendo apoio ao governo, se ressentiam da ausência de interlocução com setores oficiais. Os mesmos que se mostravam tão solícitos às ponderações de organismos multilaterais de crédito. "Davos venceu Porto Alegre" virou bordão de botequim socialista. Quem se esquece disso?

Acusava-se o governo de exaltar a tendência monetarista da equipe econômica e execrar projetos como os do professor Carlos Lessa, ex-presidente do BNDES. Houve quem apostasse que, a persistir nesse trajeto, a carruagem petista teria perdido a hora da inflexão e pavimentado o caminho de volta do tucanato ao poder. O desmentido veio nas urnas, em 2006.

Se,hoje, estamos mais preparados para uma provável desaceleração da economia mundial, temos o mais categórico desmentido dos que afirmavam que a economia brasileira não desandava por conta, apenas, de um cenário internacional favorável. Contas externas relativamente confortáveis, nível de endividamento cadente, reservas na casa de US$180 bilhões e crescimento em ritmo forte, com peso considerável no mercado interno, reduz consideravelmente nossa dependência externa. Claro que não estamos imunes a uma crise internacional, mas bem distantes do endividamento e do déficit em contas correntes que marcaram o governo FHC.

Ser de esquerda comporta várias definições, mas, à luz do que vivemos nas últimas décadas, talvez a mais preciosa seja a que define como esquerdista quem é capaz de compreender a complexidade do momento. Quem não confunde análise de conjuntura com elaboração de quadros oníricos. Aprender com a história é a herança bendita que Lula deixa para as futuras gerações progressistas.

P.S: “No índice de mortalidade inferior a cinco anos, o avanço foi ainda maior, de 57 por 1 mil nascidos vivos em 1990 para 20 por 1 mil nascidos vivos em 2006. Com isso, o Brasil passou de 86º para 113º lugar no ranking da mortalidade na infância (os primeiros lugares são ocupados pela mortalidade mais elevada) num total de 194 países. Os dados são do relatório Situação Mundial da Infância 2008 - Sobrevivência Infantil, divulgado nesta terça-feira pela Unicef, agência das Nações Unidas para a infância, e referem-se a mortes de crianças com menos de um ano. "O Brasil avançou mais do que a média mundial, o grande problema é a disparidade tanto entre as diferentes regiões como grupos étnicos", afirmou a representante da Unicef no Brasil, Marie-Pierre Poirier. "O Brasil está no caminho certo, mas não saiu do túnel ainda", disse ela”. (Fonte:BBC) Os que sobreviveram agradecem, em grande parte, à esquerda que soube se atualizar.





Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, e colaborador do Jornal do Brasil e Observatório da Imprensa.

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